Ex-diretor do Banco Central, Alexandre Schwartsman avalia que a economia brasileira pode passar a enfrentar problemas com a inflação se mantiver um ritmo de crescimento superior ao seu Produto Interno Bruto (PIB) potencial. “Se a gente continuar crescendo 3% ao ano (o PIB cresceu 2,9%), vamos ter alguma dificuldade com pressão inflacionária”, afirma.
Nas contas de Schwartsman, a capacidade de o País crescer sem gerar inflação está entre 1% e 1,5%. Para 2024, ele espera um crescimento de 1,5% a 2%.
“Quando tem uma economia que está crescendo sistematicamente além do seu potencial, você vai, em algum momento, entrar no conflito de como é que eu entrego a minha taxa de inflação na meta”, diz Schwartsman. “Essa discussão ainda está muito incipiente no País, mas, em algum momento, a gente vai ter de olhar para isso.”
A seguir os principais trechos da entrevista concedida ao Estadão.
Qual é a avaliação que o sr. faz da economia em 2023?
O resultado acabou sendo muito melhor do que a gente imaginava, mas com um perfil temporal claro. Foi muito forte na primeira metade do ano, em particular no primeiro trimestre, e foi um segundo semestre fraco. O peso do setor agro no PIB, sozinho, responde praticamente por um ponto porcentual da surpresa (de crescimento). E entre outras coisas, tivemos o bom desempenho da balança comercial, com a safra gigantesca. A gente teve também, não tanto no primeiro trimestre, mas dali para frente, um desempenho bastante forte do consumo.
E o que explica o bom desempenho do consumo?
Está muito ligado a uma política fiscal extraordinariamente expansiva que houve no ano passado. Foi uma expansão na casa de 2% do PIB e, particularmente, forte no lado das transferências. Houve o aumento do antigo Auxílio Brasil, que virou Bolsa Família, teve o aumento do salário mínimo, impactando a Previdência.
E daqui em diante?
Dificilmente vai haver um desempenho similar no setor agropecuário. A perspectiva de quem entende do assunto é de um pequeno encolhimento do PIB agrícola este ano. Não vai ser um ano ruim, mas não vai ser um ano tão bom como 2023. E tem uma outra parte da história que é a mais complicada para entender, mas é a mais importante. Se você for olhar o que está acontecendo com o PIB do Brasil, a gente vem seguramente crescendo mais rápido que o nosso potencial.
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E o que explica isso?
A taxa de desemprego vem caindo sistematicamente. Quando a economia cresce mais rápido do que o seu potencial, a taxa de desemprego naturalmente cai. E não tem nada de profundamente errado nisso se você sai de uma taxa de desemprego elevada. E saímos de uma taxa de desemprego elevada por causa da pandemia. Havia um montante de recursos ociosos na economia que a gente foi colocando para trabalhar. Você joga mais demanda via política fiscal, o consumo cresce e coloca mais gente para trabalhar. Maravilha. Você vai se aproveitando disso. A questão principal nessa história diz respeito à sustentabilidade. Você não pode ter a taxa de desemprego caindo indefinidamente. Tem um nível a partir do qual, se a taxa de desemprego ficar muito abaixo, a gente começa a ver algumas tensões inflacionárias subindo, aparecendo. E acho que já tem algumas evidências a esse respeito.
Quais são essas evidências?
Quando a gente olha para as medidas de núcleo de inflação, elas pararam de cair. Se a gente olha para a inflação de serviços, a gente vê o mesmo fenômeno - não só parou de cair como acelerou um pouco. Não quer dizer que a inflação vai desviar enormemente da meta, mas, se a gente olha as projeções do mercado ou do Banco Central, elas estão sistematicamente acima da meta. O mercado ainda projeta inflação um pouco abaixo de 4% este ano, e o Banco Central na casa de 3,5%. No ano que vem, o mercado fala em 3,5%, e o Banco Central fala em 3,2%. A ver. O fato é que, quando você tem uma economia que está crescendo sistematicamente além do seu potencial, você vai, em algum momento, entrar no conflito de como é que eu entrego a minha taxa de inflação na meta. Essa discussão ainda está muito incipiente no País, mas, em algum momento, a gente vai ter de olhar para isso. Bom, dá para continuar crescendo 3% ao ano? Acredito que não dá. Se a gente continuar crescendo 3% ao ano, vamos ter alguma dificuldade com pressão inflacionária.
E de quanto deve ser o crescimento este ano?
Eu vejo desacelerando. Deve ser de 1,5%, 2%. Alguma coisa nesse intervalo parece razoável, e a gente precisa ver como é que o mercado de trabalho se comporta. Se a taxa de desemprego continuar caindo, a gente vai ter um problema. Se a taxa de desemprego estabilizar num patamar dessazonalizado, um pouco abaixo de 8%, a gente pode ter uma chance.
A capacidade de o Brasil crescer sem gerar inflação é muito baixa. O sr. tem alguma estimativa?
A minha estimativa é de 1% a 1,5%. Tem toda uma discussão mais complicada. Muita gente boa diz que pode ter havido uma elevação da capacidade de crescimento do PIB potencial. Eu tentei explorar isso de uma forma estatística, quantitativa, mas não acho evidências a esse respeito. Pelo contrário. Parece ter caído um pouco. Mas tem uma discussão acontecendo de que teria havido algum crescimento do PIB potencial por força de reformas que foram adotadas no período Temer, no período Bolsonaro. Eu acho que ainda não tem uma evidência muita sólida apontando nesse sentido. Tem de esperar os dados acontecerem para ver se a tese faz sentido. Eu diria que, hoje, não me parece fazer muito sentido.
E nesse cenário que o sr. desenhou, como vê a condução da política monetária e até onde o Banco Central pode reduzir os juros?
Estou mais ou menos no consenso, em torno de 9%. O Banco Central parece ser um pouco mais agressivo no que diz respeito ao comportamento da política monetária do que foi no passado. O fato é que o BC projeta uma inflação para este ano de 3,5%, ainda acima da meta. Não obstante, ele está reduzindo a taxa de juros. Ele projeta para o próximo ano uma inflação de 3,2%. Não é muito, mas é um pouco acima da meta, e ele segue baixando a taxa de juros. Provavelmente, o BC segue nessa toada de (corte de) 0,50 ponto porcentual até meados deste ano, e a partir daí desacelera e corta em 0,25 ponto e termina o ano em torno de 9%. Se ele fizer, de fato, essa desaceleração, estaria mais parecido com o padrão anterior. Se seguir na toada de 0,50 ponto, eu acho que vai seguir descolado e vai parecer um Banco Central tomando mais risco. O fato é que a gente teve um desvio enorme de inflação, e o BC conseguiu trazer muito desse desvio para baixo. Não vai entregar a inflação nos 3%. O Roberto (Campos Neto, presidente do BC), se não me falhe a memória, nunca entregou a inflação precisamente na meta. Mas ele fez um trabalho bom. Quando a inflação descolou, eles também foram mais agressivos na hora de apertar. Não é uma política monetária nota 10, mas passava bem.
O sr. falou que a economia cresce de 1,5% a 2% neste ano. Além do agro, o que está enxergando nessa desaceleração?
Se a minha leitura sobre o mercado de trabalho estiver correta, você pode jogar mais demanda, mas isso não necessariamente vai se produzir em crescimento do produto. Começa a ter um aumento de importação líquida e vamos ter alguma redução do saldo comercial. Não é um problema, porque houve um mega saldo no ano passado. Mas um pedaço dessa demanda, que você está jogando, vai virar demanda externa, com aumento de importação, porque alguns segmentos não parecem capazes de produzir.
Olha para a indústria. Está com um desempenho pífio. Você tem um caminhão de demanda. E por que a indústria não cresce? A produtividade industrial está caindo. Nos últimos anos, o produto por hora trabalhada no Brasil cresceu de 2016 até 2021. De 2021 para cá, está caindo, não na indústria como um todo, mas na indústria de transformação. Quando você coloca um aumento forte de demanda, numa economia que já está muito próxima do pleno emprego e do seu potencial, em que você pode importar mais ou exportar menos, você vai importar mais ou exportar menos para ajustar. O setor de serviços continua crescendo, mas a indústria tem queda de produtividade. Talvez, a saída fosse um aumento do volume de investimento.
Mas isso não ocorre…
E aí é o paradoxo do crescimento. O investimento segue em queda. A gente investe hoje menos do que a gente investia em 2013. Não estou falando como proporção do PIB, mas como volume físico do investimento. A dificuldade para o crescimento do Brasil vai vir muito mais de restrições pelo lado da oferta do que pelo lado da demanda. A demanda tem aí o governo gastando, o Banco Central vai baixar os juros. Tem uma série de coisas que devem ajudar o consumo, mas não necessariamente o aumento de demanda encontra uma correspondência no aumento da oferta do outro lado. Uma parte vai virar vazamento para o exterior, e um pedaço disso vai virar inflação mais alta.
E por que o investimento está tão ruim?
Se olhar de 2013 para cá, a gente fez muito investimento ruim ao longo de vários anos. Tem também insegurança jurídica, coisas que são malucas. Tem mudanças tributárias. A discussão recente do governo sobre a questão tributária. Não me refiro à reforma, me refiro a mudar a regra do Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais). O governo está fazendo uma agenda para arrecadar mais e as empresas se perguntam o que vai acontecer. Quem investe numa situação como essa? Só esse lado tributário coloca muita gente com o pé atrás. A gente não tem um ambiente favorável para o investimento no País. O investimento nunca foi grande coisa. Dava graças a Deus quando chega a 18% ou 19% do PIB. Quando chegava a 20% do PIB, fazia festa. Agora, está com um volume ainda menor e começo a entender por que a capacidade de crescimento do País é baixa. Ela reflete em boa parte isso, de que institucionalmente isso aqui é uma bagunça. O problema não é só a regra ser ruim. É a incerteza sobre a possibilidade de a regra piorar. E se tem uma coisa que eu aprendi nesses anos de vida, é que a regra sempre pode piorar.
Você poderia detalhar a sua avaliação sobre a política econômica do Haddad e fazer uma comparação com governos anteriores do Lula?
Parte da história não é culpa do Fernando (Haddad). O primeiro governo Lula foi absolutamente by the book. Eu fiz parte. Confesso que tinha um certo ceticismo. Só fui entrar no governo quando as coisas estavam consolidadas, mas, basicamente, herdou o negócio (do Fernando Henrique) razoavelmente arrumado do ponto de vista fiscal. Tinha outros problemas, como pouca reserva e no balanço de pagamentos. Os caras foram tocando e ninguém fez nenhuma barbaridade. A situação atual já começou mais complicada. É verdade que o Paulo Guedes entregou um pequeno superávit no ano passado, mas a gente sabe como ele foi construído. Em parte, porque não pagou precatório e a inflação ajudou. Fazendo as correções, ainda assim, entregou não totalmente ajustado, entregou perto de zero, mas a situação inicial era mais complicada.
Agora, tem uma concepção por trás de que tem de gastar. O ‘gasto é vida’, que a gente ouviu da Dilma - e eu sou um expectador privilegiado porque vi diretamente, ninguém me relatou isso -, é uma coisa presente lá. E não se fala mais gasto. Isso agora se chama investimento. Investe em pessoal, investe em política social, investe em educação. Você não cresce, mas investe em tudo isso. Tem essa visão de que gasto é investimento. E do lado menos purista da história, você precisa gastar porque tem de ganhar a eleição. A preocupação do governo como um todo é que, na hora que tiver a eleição de 2026, não pode estar com a mão amarrada. Diga-se de passagem, o Bolsonaro fez exatamente a mesma coisa. Tinha a mão amarrada pelo teto de gasto e revogaram temporariamente o teto com a PEC Kamikaze. A política fiscal tem um problema por conta disso.
E qual é a avaliação do arcabouço?
É uma piada. Ele é uma regra menos rígida e de implementação mais difícil do ponto de vista técnico do que o teto de gastos, mas ele padece do mesmo pecado original. Você coloca uma restrição de cima para baixo no gasto público, mas não faz nenhuma medida complementar de baixo para cima, ou seja, mudando as regras que determinam a evolução do gasto previdenciário, do gasto social, do gasto com pessoal, das indexações de gastos com receita. Não adianta. Vai ter a mesma dinâmica. Isso vai espremer o gasto discricionário para o comando político do governo olhar e dizer: ‘De jeito nenhum. Eu tenho uma eleição para ganhar’. A única coisa positiva que a gente pode falar do arcabouço fiscal é que ele bateu todos os recordes das regras que tentamos antes. Normalmente, elas duravam uns dois, três anos. O arcabouço conseguiu ser violado antes de entrar em vigor. É um novo recorde.
E a promessa de déficit zero?
A gente sabe que não vai rolar. A arrecadação de janeiro pode segurar as pontas por algum tempo, mas os mais otimistas dizem que vai dar um déficit um pouco acima do limite máximo permitido para este ano. Se for mais realista, estamos falando de um déficit de 0,8%, 0,7% do PIB. Não vão revisar (a meta) agora em março. Vão dizer que está tudo bem. Também segura um pouco as contas até maio, mas a verdade é a seguinte: se tiver de entrar em contigenciamento por conta das revisões, vão abandonar a meta. E vão abandonar para poder gastar mais este ano e porque sabem que, se violarem a meta deste ano, vão ter de compensar no gasto do ano que vem. E eles não querem compensar em gasto. A própria filosofia da coisa, de corrigir isso pelo lado da receita, é só mais uma instância da nossa monumental incapacidade de aprendizado. Temos aumentando a carga tributária nos últimos 30 anos.
O superávit desaparece e aumenta a carga tributária. O que vai acontecer? Vai desaparecer, porque você não está tomando conta do lado da evolução do gasto. É tão simples quanto isso. A incerteza, em particular, na questão tributária, é gigantesca, o gasto do governo não se transforma em crescimento adicional, não vira investimento, não vira capacidade de crescimento no futuro. O País cresce pouco e tem dificuldade de manter a inflação. E aí, em algum momento, eles vão dizer que: ‘Talvez, a gente não vai resolver esse problema e deixar a inflação para lá. Vai ser mais alta mesmo.’ E 2024, vai acabar com uma mudança diante do fim do mandato do Roberto Campos. E aí a gente vai ver qual é o verdadeiro compromisso do governo com a estabilidade de preços.