No curto prazo, será difícil Brasil escapar de alta na carga tributária, diz economista do JP Morgan


Para Cassiana Fernandez, com a reforma, porém, carga pode voltar a cair no médio e longo prazos; ela diz também que governo não deve conseguir zerar o resultado primário em 2024, mas mudar meta fiscal seria ruim para a credibilidade do arcabouço

Por Mariana Carneiro
Atualização:
Foto: JP Morgan
Entrevista comCassiana Fernandezchefe de pesquisa econômica para a América Latina e macroeconomista para o Brasil do JP Morgan

BRASÍLIA – A chefe de pesquisa econômica para a América Latina e macroeconomista chefe para o Brasil do banco americano JP Morgan, Cassiana Fernandez, não acredita, como a maior parte dos analistas de mercado, que a meta do governo de zerar o déficit das contas públicas em 2024 será cumprida. Ainda assim, ela afirma que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, não deveria rever o objetivo, para não colocar em descrédito todo o novo arcabouço fiscal.

“Credibilidade. Esse é um ponto super importante. O arcabouço acabou de ser aprovado; então, mudar a meta em tão pouco tempo seria muito ruim para a credibilidade da nova regra fiscal”, afirmou ela em entrevista ao Estadão.

Na avaliação da economista, o eventual fracasso de Haddad seria menos negativo, aos olhos do mercado, se a meta não fosse alcançada em razão de uma frustração de receitas pela não aprovação das medidas de arrecadação no Congresso. Já se o descumprimento da meta ocorrer pelo aumento de despesas permanentes, será o pior dos mundos.

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“Se essa regra perde a credibilidade em tão pouco tempo, volta a ter um prêmio de risco que (o Brasil) pode entrar numa trajetória explosiva da dívida”, afirma.

Cassiana, JP Morgan Foto: Acervo JP Morgan

Sobre os desafios fiscais do País, Cassiana compara o Brasil com seus pares e afirma que, em termos estruturais, as condições de endividamento são mais favoráveis, uma vez que ele é basicamente em moeda local. Ainda assim, o nível elevado do passivo e uma carga tributária já alta, faz com que o Brasil pareça mais arriscado aos investidores no médio e longo prazo. Mesmo com o arcabouço, ela diz não ver sinal de estabilização da dívida. Para ela, será difícil o País escapar de um aumento de carga tributária no curto prazo, em função das medidas arrecadatórias anunciadas. Mas, com a reforma tributária, haverá um ganho de eficiência e essa carga poderá voltar a cair.

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Questionada, nesta terça-feira, 10, sobre os efeitos da guerra no Oriente Médio sobre o Brasil, Cassiana afirma que o risco se dá pela via do aumento do petróleo, que pode impactar a inflação no País. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Qual o seu diagnóstico sobre o quadro fiscal do País?

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Quando comparamos o Brasil com outros países emergentes similares, o País se destaca por ter uma taxa de crescimento de médio e longo prazo mais baixa do que os nossos principais pares e por ter um nível de dívida pública muito alto. Quando a gente olha do lado positivo, um dos maiores destaques é o fato de o País ter contas externas ajustadas. Não há um problema de balanço de pagamentos, nosso déficit em conta corrente é totalmente financiado por fluxo de investimento direto e o nível de reservas internacionais é perto da casa dos 20% do PIB. Mas do lado fiscal, o nível de dívida é realmente alto. É uma dívida praticamente toda em moeda local, na mão de residentes brasileiros, o que acaba diferenciando o Brasil de algumas outras economias – como Argentina e México – e dá um certo conforto, porque depende muito da confiança dos brasileiros no País.

Isso ajuda?

Por mais que haja um risco muito grande, do lado estrutural, o brasileiro e a elite brasileira ainda investem no Brasil, têm a sua riqueza no território nacional e financiam a dívida pública. Dito isso, o nível de dívida é alto e o custo de carrego dessa dívida também é alto. Quando eu olho a tendência de médio e longo prazos, mesmo colocando o novo arcabouço fiscal, é muito difícil ver essa trajetória se estabilizando no curto prazo. Se o Brasil não tiver um crescimento maior, o nível da dívida em relação ao PIB continuará crescendo nas nossas projeções. Então, por mais que do lado estrutural a gente não tenha tanta preocupação, a tendência é bem ruim.

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Como vê a evolução do problema desde 2014, quando o Brasil entrou no vermelho?

Um ponto bastante relevante é que, se a gente olha o nosso nível de dívida, ele está abaixo do que a gente projetava há dois anos. Saímos de um nível da ordem de 87% (do PIB) no final de 2020 para 74,5%, na nossa projeção, para o fim deste ano – bem abaixo do que chegamos a estimar que poderia acontecer. Tem algumas coisas que não estão contabilizadas nesse número, inclusive toda a discussão sobre precatórios (dívidas judiciais da União) e alguns outros passivos que podem entrar na dívida, mas ainda é um número menor do que a gente viu em 2020 e do que a gente temia ver no final de 2023. Então, a grande preocupação é um nível de dívida alto – e é muito difícil você ver a estabilização dessa dívida, pelo menos no curto e no médio prazos.

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O arcabouço é insuficiente para corrigir a trajetória da dívida?

O arcabouço tem um fator positivo, que foi o de eliminar o risco de o País entrar no curto prazo em uma trajetória explosiva de dívida. Era este o risco que se observava nas projeções logo após a aprovação da PEC da Transição (que ampliou os gastos do governo em R$ 168 bilhões). Agora, o arcabouço não é suficiente para estabilizar a dívida em relação ao PIB. Até porque ele foi feito com base em metas de superávit primário (saldo positivo das contas públicas) que vão ser muito difíceis de serem atingidas.

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Está cética sobre a capacidade de o governo cumprir a meta de zerar o déficit no ano que vem?

Nossa projeção hoje é que, no ano que vem, o Brasil terá um déficit primário de 0,6% do PIB, ou seja abaixo do que o consenso de mercado tem hoje (perto de 1% do PIB) – mas, ainda assim, insuficiente para entregar a meta de zerar o déficit. Mas isso não significa que a gente espera que o governo mude a meta. Pelo menos não no curto prazo. Acho que é muito importante manter essa meta, até pela credibilidade de uma regra que foi aprovada há pouco tempo. Esse é um fator muito importante. E pela defesa dos próprios mecanismos que existem na lei, que controlam um pouco o crescimento dos gastos, uma vez que o governo está apresentando resultados piores em termos fiscais do que o esperado. Estou falando de mecanismos como a possibilidade de se contingenciar (bloquear de forma preventiva) gastos e o de não conceder aumentos para servidores.

Tendo em vista que a sua projeção é de que a meta será descumprida, por que o governo não deveria revê-la? Não é pior manter uma meta em que ninguém acredita?

Credibilidade. Esse é um ponto super importante. O arcabouço acabou de ser aprovado; então, mudar a meta em tão pouco tempo é muito ruim para a credibilidade da nova regra fiscal. E também porque é uma questão de incentivos. Se eu tenho uma meta que, por mais difícil que seja de ser atingida, mas que você tem o governo comprometido no seu cumprimento, isso facilita os resultados. É um incentivo para controlar o crescimento de gastos e também é um incentivo dentro do Congresso, para ajudar o governo em alguma das medidas de aumento de receita que foram propostas. Se de antemão a meta é alterada, não há incentivo nem no Congresso para aprovar as medidas de receita, nem no governo para controlar o crescimento dos gastos públicos. Como eu falei anteriormente, a aprovação do arcabouço fiscal foi importante para reduzir o risco que o mercado via em uma desancoragem muito rápida da trajetória da dívida. Se essa regra perde a credibilidade em tão pouco tempo, volta a ter um prêmio de risco que (o Brasil) pode entrar numa trajetória explosiva da dívida.

Por outro lado, não haveria um custo reputacional para o governo chegar ao fim de 2024 e não cumprir a meta?

Não cumprir a meta é sempre grave. Mas, quando se chega nessas condições, você tem de tentar explicar por que você não cumpriu a meta. Houve uma decepção do lado das receitas porque o governo não conseguiu aprovar no Congresso algumas medidas que foram propostas para aumentar a arrecadação? Ou porque o crescimento decepcionou aquelas expectativas iniciais e a arrecadação ficou mais baixa? Na nossa visão, esse segundo ponto vai ser um dos fatores preponderantes. Temos uma projeção de crescimento em 2024 de 1,2%, abaixo da feita pelo governo. Também acredito que algumas medidas que foram propostas vão enfrentar dificuldades de serem aprovadas. Estes deveriam ser os dois fatores principais (para a explicação do governo). A reação do mercado seria menos negativa se o não cumprimento da meta vier por esse lado. Um fator negativo seria se o não cumprimento vier por medidas de crescimento de gastos permanentes, que vão ficar por muito mais tempo, com base em receitas temporárias.

Como resposta a críticas de que o ajuste vem sendo feito só com o aumento da arrecadação, o governo prometeu rever gastos do INSS e em programas como o Bolsa Família. Isso ajuda a alcançar a meta?

A revisão dos gastos deveria ser uma regra contínua dentro do governo, principalmente para saber o que de fato é mais relevante para as necessidades sociais do País. Quais são os gastos que dão os maiores retornos para o objetivo do governo em reduzir a pobreza e aumentar o crescimento potencial e a eficiência da economia, melhorar a distribuição de renda e o nível de escolaridade? Esse papel que está sendo proposto pelo Ministério do Planejamento é fundamental e deveria ter sido feito há muito tempo. Mas isso é muito mais importante do lado qualitativo do que do lado quantitativo. Para conseguir cortar os gastos com base nessa análise, vai depender muito da visão do governo de usá-la para desenhar políticas públicas. Se chegar à conclusão de que alguns desses programas sociais têm um custo maior e uma efetividade menor em relação aos objetivos, o governo vai ser capaz de cortar esses gastos ou acabar com esses programas? É uma questão de saber se vai ter vontade política dentro do governo, do Congresso e até na sociedade.

E os subsídios?

Há uma lista de subsídios, de subvenções que são dadas a setores específicos. Eu sou cética sobre se a gente vai conseguir usar (essa avaliação) para racionalizar de forma eficiente os gastos públicos. Gostaria muito de que isso acontecesse; mas, olhando toda a discussão política dos últimos anos, é difícil imaginar essa melhora expressiva na alocação do Orçamento público.

Então, temos um encontro marcado com um aumento da carga tributária?

Trazendo de novo a perspectiva global, o Brasil também se destaca por ter uma carga tributária alta, principalmente quando comparada a outros emergentes. É uma carga da ordem de 33%, 34% do PIB – num País que precisa aumentar a produtividade e o investimento privado para aumentar o seu potencial de crescimento. Mas, sim, no curto prazo vai ser difícil a gente escapar de ter um aumento de carga tributária. As próprias medidas que estão sendo propostas, de redução de distorções que existem hoje no sistema tributário, elas por si só levam a um aumento de carga. Mesmo que você esteja simplesmente aumentando em setores que estavam sendo beneficiados de uma forma não eficiente por isenções tributárias, é matemático: a média sobe. Isso não é sustentável a médio e longo prazo. Daí eu sou mais otimista em relação ao impacto que a reforma tributária do consumo vai ter na economia.

Qual impacto?

O Brasil pode ter um ganho de eficiência que permita que, no médio e longo prazo, a carga tributária caia. Ou seja: há um crescimento da carga tributária no curto prazo, em razão das medidas de arrecadação; mas, a médio e longo prazo, a gente pode ter uma normalização, uma volta aos níveis atuais. Quando eu falo em longo prazo, são dez anos. Mas a gente precisa da reforma aprovada, totalmente implementada, todas as leis complementares de regulamentação aprovadas para, daí, ver esse impacto acontecendo.

A aprovação do arcabouço e o início da tramitação da reforma tributária geraram um otimismo no mercado com o Brasil que permitiu a queda da taxa de juros. O que é preciso acontecer agora para uma segunda onda?

A política monetária de curto prazo, principalmente o movimento recente das últimas semanas, é muito menos correlacionada às discussões em relação à política fiscal e muito mais correlacionada com o que está acontecendo no mundo. A abertura (o aumento no rendimento) da Treasury americana (título público dos EUA) é um fator predominante para explicar o que estamos vendo – até o mercado precificando que o Banco Central não consegue cortar tanto a taxa de juros. O mercado está bastante volátil e isso explica a depreciação mais recente da moeda. Até o final de julho, apesar de todo o aumento de taxa de juros nos EUA e na Europa, as moedas das economias da América Latina conseguiram se apreciar (valorizar). Não houve perda de valor (das moedas) porque os bancos centrais da região se anteciparam à aceleração da inflação, subiram a taxa de juros antes e conseguiram absorver o aumento nas taxas de juros dos países desenvolvidos. Por isso, a aprovação do arcabouço fiscal e a desaceleração na inflação ajudaram a criar condições para que o BC pudesse reduzir um pouco o aperto monetário, mesmo em um ambiente em que os países desenvolvidos ainda estão subindo a taxa de juros. Nas últimas semanas, esse cenário mudou.

Mudou como?

O aumento dos juros nos EUA acabou contagiando o mercado e a gente viu uma desvalorização da ordem de 9% (do real) no Brasil. O movimento deveria levar a uma maior cautela do BC; mas, neste momento, não vemos uma mudança suficiente para alterar o ritmo de cortes dos juros. Para mudar esse cenário, são necessárias algumas condições. O BC foi claro na comunicação de que, durante o processo de afrouxamento monetário, a taxa de juros tem que continuar no campo restritivo, porque não tem muita ociosidade na economia e o mercado de trabalho continua forte, as expectativas de inflação estão acima da meta. Então, assim como a meta fiscal, o mercado também não acredita que o BC vá entregar (a meta de) 3% (de inflação). E também porque a política fiscal é expansionista e ninguém prevê que ela vai ficar contracionista. Nossa projeção tem sido que a Selic termina em 10% (ao ano) em meados do ano que vem – ou seja, acima daquilo que você consideraria como o juro neutro da economia. Para voltar a um ciclo mais otimista, eu tenho que mudar alguma dessas condições: ou as taxas de juros globais caem e daí isso permitiria até uma apreciação da moeda ou uma política fiscal mais restritiva do que o mercado acredita hoje que ancore (conduza para a meta) as expectativas de inflação.

A sra. atribui o mesmo peso para as condições financeiras globais e a política fiscal interna?

No curto prazo, até por uma questão de magnitude, sim. Porque a deterioração das condições monetárias lá fora foi tão forte nas últimas semanas que ela dominou o efeito da política fiscal. As mudanças internas foram bem menores e, portanto, menos relevantes para explicar os próximos passos da política monetária do que as condições globais. Mas isso muito no curto prazo, para explicar as próximas decisões do BC. A partir daí, a política fiscal volta a ser um fator predominante.

E como o Brasil tem se comportado em relação a seus pares no exterior, nessa evolução mais recente?

A deterioração dos nossos pares foi maior do que a do Brasil. Não por outra razão, as agências de risco moveram favoravelmente a nota de rating (classificação de risco) do Brasil – e na direção contrária do que aconteceu nos EUA. Quando a gente olha para os outros países e vê uma política fiscal com maior crescimento de gastos e pouco consenso político para a restrição desses gastos ou aumento de receitas, leva a um cenário que a taxa de juros no mundo vai ficar mais alta por mais tempo.

Como a guerra no Oriente Médio pode alterar essa perspectiva?

Para além do aspecto humanitário, que é dramático, a guerra aumenta a incerteza no cenário econômico à frente. Num primeiro momento, pode beneficiar os preços das commodities, sobretudo de energia, uma vez que há o risco de novas rupturas na oferta global de petróleo. Se esse cenário se materializar, teremos um novo repique na inflação global, com impactos desproporcionais entre países exportadores e importadores de petróleo. Mas, sinceramente, é muito difícil, senão impossível, prever nesse momento o desfecho dos acontecimentos.

Qual sua avaliação sobre a reclassificação do governo nos precatórios? Considera uma contabilidade criativa?

Tem um lado que, de fato, o País tem uma dívida que não está sendo contabilizada nas estatísticas oficiais. Então, equacionar esse problema é dar mais transparência. Por outro, voltamos ao problema que havia desde 2016, que é um crescimento não controlado dessas despesas. Por mais que eu aumente a transparência, é muito difícil ter uma visibilidade de qual vai ser o crescimento desse gasto para frente. Essa divisão sobre o que é gasto financeiro e o que está dentro do arcabouço e da meta é uma discussão que poderia ter sido levada de uma outra forma. Mas a maior preocupação é estrutural, é pensar como vamos projetar a tendência desses gastos para frente e o que isso vai implicar na trajetória da dívida. Deveria haver alguma meta, algum incentivo para segurar o crescimento dessas despesas.

BRASÍLIA – A chefe de pesquisa econômica para a América Latina e macroeconomista chefe para o Brasil do banco americano JP Morgan, Cassiana Fernandez, não acredita, como a maior parte dos analistas de mercado, que a meta do governo de zerar o déficit das contas públicas em 2024 será cumprida. Ainda assim, ela afirma que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, não deveria rever o objetivo, para não colocar em descrédito todo o novo arcabouço fiscal.

“Credibilidade. Esse é um ponto super importante. O arcabouço acabou de ser aprovado; então, mudar a meta em tão pouco tempo seria muito ruim para a credibilidade da nova regra fiscal”, afirmou ela em entrevista ao Estadão.

Na avaliação da economista, o eventual fracasso de Haddad seria menos negativo, aos olhos do mercado, se a meta não fosse alcançada em razão de uma frustração de receitas pela não aprovação das medidas de arrecadação no Congresso. Já se o descumprimento da meta ocorrer pelo aumento de despesas permanentes, será o pior dos mundos.

“Se essa regra perde a credibilidade em tão pouco tempo, volta a ter um prêmio de risco que (o Brasil) pode entrar numa trajetória explosiva da dívida”, afirma.

Cassiana, JP Morgan Foto: Acervo JP Morgan

Sobre os desafios fiscais do País, Cassiana compara o Brasil com seus pares e afirma que, em termos estruturais, as condições de endividamento são mais favoráveis, uma vez que ele é basicamente em moeda local. Ainda assim, o nível elevado do passivo e uma carga tributária já alta, faz com que o Brasil pareça mais arriscado aos investidores no médio e longo prazo. Mesmo com o arcabouço, ela diz não ver sinal de estabilização da dívida. Para ela, será difícil o País escapar de um aumento de carga tributária no curto prazo, em função das medidas arrecadatórias anunciadas. Mas, com a reforma tributária, haverá um ganho de eficiência e essa carga poderá voltar a cair.

Questionada, nesta terça-feira, 10, sobre os efeitos da guerra no Oriente Médio sobre o Brasil, Cassiana afirma que o risco se dá pela via do aumento do petróleo, que pode impactar a inflação no País. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Qual o seu diagnóstico sobre o quadro fiscal do País?

Quando comparamos o Brasil com outros países emergentes similares, o País se destaca por ter uma taxa de crescimento de médio e longo prazo mais baixa do que os nossos principais pares e por ter um nível de dívida pública muito alto. Quando a gente olha do lado positivo, um dos maiores destaques é o fato de o País ter contas externas ajustadas. Não há um problema de balanço de pagamentos, nosso déficit em conta corrente é totalmente financiado por fluxo de investimento direto e o nível de reservas internacionais é perto da casa dos 20% do PIB. Mas do lado fiscal, o nível de dívida é realmente alto. É uma dívida praticamente toda em moeda local, na mão de residentes brasileiros, o que acaba diferenciando o Brasil de algumas outras economias – como Argentina e México – e dá um certo conforto, porque depende muito da confiança dos brasileiros no País.

Isso ajuda?

Por mais que haja um risco muito grande, do lado estrutural, o brasileiro e a elite brasileira ainda investem no Brasil, têm a sua riqueza no território nacional e financiam a dívida pública. Dito isso, o nível de dívida é alto e o custo de carrego dessa dívida também é alto. Quando eu olho a tendência de médio e longo prazos, mesmo colocando o novo arcabouço fiscal, é muito difícil ver essa trajetória se estabilizando no curto prazo. Se o Brasil não tiver um crescimento maior, o nível da dívida em relação ao PIB continuará crescendo nas nossas projeções. Então, por mais que do lado estrutural a gente não tenha tanta preocupação, a tendência é bem ruim.

Como vê a evolução do problema desde 2014, quando o Brasil entrou no vermelho?

Um ponto bastante relevante é que, se a gente olha o nosso nível de dívida, ele está abaixo do que a gente projetava há dois anos. Saímos de um nível da ordem de 87% (do PIB) no final de 2020 para 74,5%, na nossa projeção, para o fim deste ano – bem abaixo do que chegamos a estimar que poderia acontecer. Tem algumas coisas que não estão contabilizadas nesse número, inclusive toda a discussão sobre precatórios (dívidas judiciais da União) e alguns outros passivos que podem entrar na dívida, mas ainda é um número menor do que a gente viu em 2020 e do que a gente temia ver no final de 2023. Então, a grande preocupação é um nível de dívida alto – e é muito difícil você ver a estabilização dessa dívida, pelo menos no curto e no médio prazos.

O arcabouço é insuficiente para corrigir a trajetória da dívida?

O arcabouço tem um fator positivo, que foi o de eliminar o risco de o País entrar no curto prazo em uma trajetória explosiva de dívida. Era este o risco que se observava nas projeções logo após a aprovação da PEC da Transição (que ampliou os gastos do governo em R$ 168 bilhões). Agora, o arcabouço não é suficiente para estabilizar a dívida em relação ao PIB. Até porque ele foi feito com base em metas de superávit primário (saldo positivo das contas públicas) que vão ser muito difíceis de serem atingidas.

Está cética sobre a capacidade de o governo cumprir a meta de zerar o déficit no ano que vem?

Nossa projeção hoje é que, no ano que vem, o Brasil terá um déficit primário de 0,6% do PIB, ou seja abaixo do que o consenso de mercado tem hoje (perto de 1% do PIB) – mas, ainda assim, insuficiente para entregar a meta de zerar o déficit. Mas isso não significa que a gente espera que o governo mude a meta. Pelo menos não no curto prazo. Acho que é muito importante manter essa meta, até pela credibilidade de uma regra que foi aprovada há pouco tempo. Esse é um fator muito importante. E pela defesa dos próprios mecanismos que existem na lei, que controlam um pouco o crescimento dos gastos, uma vez que o governo está apresentando resultados piores em termos fiscais do que o esperado. Estou falando de mecanismos como a possibilidade de se contingenciar (bloquear de forma preventiva) gastos e o de não conceder aumentos para servidores.

Tendo em vista que a sua projeção é de que a meta será descumprida, por que o governo não deveria revê-la? Não é pior manter uma meta em que ninguém acredita?

Credibilidade. Esse é um ponto super importante. O arcabouço acabou de ser aprovado; então, mudar a meta em tão pouco tempo é muito ruim para a credibilidade da nova regra fiscal. E também porque é uma questão de incentivos. Se eu tenho uma meta que, por mais difícil que seja de ser atingida, mas que você tem o governo comprometido no seu cumprimento, isso facilita os resultados. É um incentivo para controlar o crescimento de gastos e também é um incentivo dentro do Congresso, para ajudar o governo em alguma das medidas de aumento de receita que foram propostas. Se de antemão a meta é alterada, não há incentivo nem no Congresso para aprovar as medidas de receita, nem no governo para controlar o crescimento dos gastos públicos. Como eu falei anteriormente, a aprovação do arcabouço fiscal foi importante para reduzir o risco que o mercado via em uma desancoragem muito rápida da trajetória da dívida. Se essa regra perde a credibilidade em tão pouco tempo, volta a ter um prêmio de risco que (o Brasil) pode entrar numa trajetória explosiva da dívida.

Por outro lado, não haveria um custo reputacional para o governo chegar ao fim de 2024 e não cumprir a meta?

Não cumprir a meta é sempre grave. Mas, quando se chega nessas condições, você tem de tentar explicar por que você não cumpriu a meta. Houve uma decepção do lado das receitas porque o governo não conseguiu aprovar no Congresso algumas medidas que foram propostas para aumentar a arrecadação? Ou porque o crescimento decepcionou aquelas expectativas iniciais e a arrecadação ficou mais baixa? Na nossa visão, esse segundo ponto vai ser um dos fatores preponderantes. Temos uma projeção de crescimento em 2024 de 1,2%, abaixo da feita pelo governo. Também acredito que algumas medidas que foram propostas vão enfrentar dificuldades de serem aprovadas. Estes deveriam ser os dois fatores principais (para a explicação do governo). A reação do mercado seria menos negativa se o não cumprimento da meta vier por esse lado. Um fator negativo seria se o não cumprimento vier por medidas de crescimento de gastos permanentes, que vão ficar por muito mais tempo, com base em receitas temporárias.

Como resposta a críticas de que o ajuste vem sendo feito só com o aumento da arrecadação, o governo prometeu rever gastos do INSS e em programas como o Bolsa Família. Isso ajuda a alcançar a meta?

A revisão dos gastos deveria ser uma regra contínua dentro do governo, principalmente para saber o que de fato é mais relevante para as necessidades sociais do País. Quais são os gastos que dão os maiores retornos para o objetivo do governo em reduzir a pobreza e aumentar o crescimento potencial e a eficiência da economia, melhorar a distribuição de renda e o nível de escolaridade? Esse papel que está sendo proposto pelo Ministério do Planejamento é fundamental e deveria ter sido feito há muito tempo. Mas isso é muito mais importante do lado qualitativo do que do lado quantitativo. Para conseguir cortar os gastos com base nessa análise, vai depender muito da visão do governo de usá-la para desenhar políticas públicas. Se chegar à conclusão de que alguns desses programas sociais têm um custo maior e uma efetividade menor em relação aos objetivos, o governo vai ser capaz de cortar esses gastos ou acabar com esses programas? É uma questão de saber se vai ter vontade política dentro do governo, do Congresso e até na sociedade.

E os subsídios?

Há uma lista de subsídios, de subvenções que são dadas a setores específicos. Eu sou cética sobre se a gente vai conseguir usar (essa avaliação) para racionalizar de forma eficiente os gastos públicos. Gostaria muito de que isso acontecesse; mas, olhando toda a discussão política dos últimos anos, é difícil imaginar essa melhora expressiva na alocação do Orçamento público.

Então, temos um encontro marcado com um aumento da carga tributária?

Trazendo de novo a perspectiva global, o Brasil também se destaca por ter uma carga tributária alta, principalmente quando comparada a outros emergentes. É uma carga da ordem de 33%, 34% do PIB – num País que precisa aumentar a produtividade e o investimento privado para aumentar o seu potencial de crescimento. Mas, sim, no curto prazo vai ser difícil a gente escapar de ter um aumento de carga tributária. As próprias medidas que estão sendo propostas, de redução de distorções que existem hoje no sistema tributário, elas por si só levam a um aumento de carga. Mesmo que você esteja simplesmente aumentando em setores que estavam sendo beneficiados de uma forma não eficiente por isenções tributárias, é matemático: a média sobe. Isso não é sustentável a médio e longo prazo. Daí eu sou mais otimista em relação ao impacto que a reforma tributária do consumo vai ter na economia.

Qual impacto?

O Brasil pode ter um ganho de eficiência que permita que, no médio e longo prazo, a carga tributária caia. Ou seja: há um crescimento da carga tributária no curto prazo, em razão das medidas de arrecadação; mas, a médio e longo prazo, a gente pode ter uma normalização, uma volta aos níveis atuais. Quando eu falo em longo prazo, são dez anos. Mas a gente precisa da reforma aprovada, totalmente implementada, todas as leis complementares de regulamentação aprovadas para, daí, ver esse impacto acontecendo.

A aprovação do arcabouço e o início da tramitação da reforma tributária geraram um otimismo no mercado com o Brasil que permitiu a queda da taxa de juros. O que é preciso acontecer agora para uma segunda onda?

A política monetária de curto prazo, principalmente o movimento recente das últimas semanas, é muito menos correlacionada às discussões em relação à política fiscal e muito mais correlacionada com o que está acontecendo no mundo. A abertura (o aumento no rendimento) da Treasury americana (título público dos EUA) é um fator predominante para explicar o que estamos vendo – até o mercado precificando que o Banco Central não consegue cortar tanto a taxa de juros. O mercado está bastante volátil e isso explica a depreciação mais recente da moeda. Até o final de julho, apesar de todo o aumento de taxa de juros nos EUA e na Europa, as moedas das economias da América Latina conseguiram se apreciar (valorizar). Não houve perda de valor (das moedas) porque os bancos centrais da região se anteciparam à aceleração da inflação, subiram a taxa de juros antes e conseguiram absorver o aumento nas taxas de juros dos países desenvolvidos. Por isso, a aprovação do arcabouço fiscal e a desaceleração na inflação ajudaram a criar condições para que o BC pudesse reduzir um pouco o aperto monetário, mesmo em um ambiente em que os países desenvolvidos ainda estão subindo a taxa de juros. Nas últimas semanas, esse cenário mudou.

Mudou como?

O aumento dos juros nos EUA acabou contagiando o mercado e a gente viu uma desvalorização da ordem de 9% (do real) no Brasil. O movimento deveria levar a uma maior cautela do BC; mas, neste momento, não vemos uma mudança suficiente para alterar o ritmo de cortes dos juros. Para mudar esse cenário, são necessárias algumas condições. O BC foi claro na comunicação de que, durante o processo de afrouxamento monetário, a taxa de juros tem que continuar no campo restritivo, porque não tem muita ociosidade na economia e o mercado de trabalho continua forte, as expectativas de inflação estão acima da meta. Então, assim como a meta fiscal, o mercado também não acredita que o BC vá entregar (a meta de) 3% (de inflação). E também porque a política fiscal é expansionista e ninguém prevê que ela vai ficar contracionista. Nossa projeção tem sido que a Selic termina em 10% (ao ano) em meados do ano que vem – ou seja, acima daquilo que você consideraria como o juro neutro da economia. Para voltar a um ciclo mais otimista, eu tenho que mudar alguma dessas condições: ou as taxas de juros globais caem e daí isso permitiria até uma apreciação da moeda ou uma política fiscal mais restritiva do que o mercado acredita hoje que ancore (conduza para a meta) as expectativas de inflação.

A sra. atribui o mesmo peso para as condições financeiras globais e a política fiscal interna?

No curto prazo, até por uma questão de magnitude, sim. Porque a deterioração das condições monetárias lá fora foi tão forte nas últimas semanas que ela dominou o efeito da política fiscal. As mudanças internas foram bem menores e, portanto, menos relevantes para explicar os próximos passos da política monetária do que as condições globais. Mas isso muito no curto prazo, para explicar as próximas decisões do BC. A partir daí, a política fiscal volta a ser um fator predominante.

E como o Brasil tem se comportado em relação a seus pares no exterior, nessa evolução mais recente?

A deterioração dos nossos pares foi maior do que a do Brasil. Não por outra razão, as agências de risco moveram favoravelmente a nota de rating (classificação de risco) do Brasil – e na direção contrária do que aconteceu nos EUA. Quando a gente olha para os outros países e vê uma política fiscal com maior crescimento de gastos e pouco consenso político para a restrição desses gastos ou aumento de receitas, leva a um cenário que a taxa de juros no mundo vai ficar mais alta por mais tempo.

Como a guerra no Oriente Médio pode alterar essa perspectiva?

Para além do aspecto humanitário, que é dramático, a guerra aumenta a incerteza no cenário econômico à frente. Num primeiro momento, pode beneficiar os preços das commodities, sobretudo de energia, uma vez que há o risco de novas rupturas na oferta global de petróleo. Se esse cenário se materializar, teremos um novo repique na inflação global, com impactos desproporcionais entre países exportadores e importadores de petróleo. Mas, sinceramente, é muito difícil, senão impossível, prever nesse momento o desfecho dos acontecimentos.

Qual sua avaliação sobre a reclassificação do governo nos precatórios? Considera uma contabilidade criativa?

Tem um lado que, de fato, o País tem uma dívida que não está sendo contabilizada nas estatísticas oficiais. Então, equacionar esse problema é dar mais transparência. Por outro, voltamos ao problema que havia desde 2016, que é um crescimento não controlado dessas despesas. Por mais que eu aumente a transparência, é muito difícil ter uma visibilidade de qual vai ser o crescimento desse gasto para frente. Essa divisão sobre o que é gasto financeiro e o que está dentro do arcabouço e da meta é uma discussão que poderia ter sido levada de uma outra forma. Mas a maior preocupação é estrutural, é pensar como vamos projetar a tendência desses gastos para frente e o que isso vai implicar na trajetória da dívida. Deveria haver alguma meta, algum incentivo para segurar o crescimento dessas despesas.

BRASÍLIA – A chefe de pesquisa econômica para a América Latina e macroeconomista chefe para o Brasil do banco americano JP Morgan, Cassiana Fernandez, não acredita, como a maior parte dos analistas de mercado, que a meta do governo de zerar o déficit das contas públicas em 2024 será cumprida. Ainda assim, ela afirma que o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, não deveria rever o objetivo, para não colocar em descrédito todo o novo arcabouço fiscal.

“Credibilidade. Esse é um ponto super importante. O arcabouço acabou de ser aprovado; então, mudar a meta em tão pouco tempo seria muito ruim para a credibilidade da nova regra fiscal”, afirmou ela em entrevista ao Estadão.

Na avaliação da economista, o eventual fracasso de Haddad seria menos negativo, aos olhos do mercado, se a meta não fosse alcançada em razão de uma frustração de receitas pela não aprovação das medidas de arrecadação no Congresso. Já se o descumprimento da meta ocorrer pelo aumento de despesas permanentes, será o pior dos mundos.

“Se essa regra perde a credibilidade em tão pouco tempo, volta a ter um prêmio de risco que (o Brasil) pode entrar numa trajetória explosiva da dívida”, afirma.

Cassiana, JP Morgan Foto: Acervo JP Morgan

Sobre os desafios fiscais do País, Cassiana compara o Brasil com seus pares e afirma que, em termos estruturais, as condições de endividamento são mais favoráveis, uma vez que ele é basicamente em moeda local. Ainda assim, o nível elevado do passivo e uma carga tributária já alta, faz com que o Brasil pareça mais arriscado aos investidores no médio e longo prazo. Mesmo com o arcabouço, ela diz não ver sinal de estabilização da dívida. Para ela, será difícil o País escapar de um aumento de carga tributária no curto prazo, em função das medidas arrecadatórias anunciadas. Mas, com a reforma tributária, haverá um ganho de eficiência e essa carga poderá voltar a cair.

Questionada, nesta terça-feira, 10, sobre os efeitos da guerra no Oriente Médio sobre o Brasil, Cassiana afirma que o risco se dá pela via do aumento do petróleo, que pode impactar a inflação no País. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Qual o seu diagnóstico sobre o quadro fiscal do País?

Quando comparamos o Brasil com outros países emergentes similares, o País se destaca por ter uma taxa de crescimento de médio e longo prazo mais baixa do que os nossos principais pares e por ter um nível de dívida pública muito alto. Quando a gente olha do lado positivo, um dos maiores destaques é o fato de o País ter contas externas ajustadas. Não há um problema de balanço de pagamentos, nosso déficit em conta corrente é totalmente financiado por fluxo de investimento direto e o nível de reservas internacionais é perto da casa dos 20% do PIB. Mas do lado fiscal, o nível de dívida é realmente alto. É uma dívida praticamente toda em moeda local, na mão de residentes brasileiros, o que acaba diferenciando o Brasil de algumas outras economias – como Argentina e México – e dá um certo conforto, porque depende muito da confiança dos brasileiros no País.

Isso ajuda?

Por mais que haja um risco muito grande, do lado estrutural, o brasileiro e a elite brasileira ainda investem no Brasil, têm a sua riqueza no território nacional e financiam a dívida pública. Dito isso, o nível de dívida é alto e o custo de carrego dessa dívida também é alto. Quando eu olho a tendência de médio e longo prazos, mesmo colocando o novo arcabouço fiscal, é muito difícil ver essa trajetória se estabilizando no curto prazo. Se o Brasil não tiver um crescimento maior, o nível da dívida em relação ao PIB continuará crescendo nas nossas projeções. Então, por mais que do lado estrutural a gente não tenha tanta preocupação, a tendência é bem ruim.

Como vê a evolução do problema desde 2014, quando o Brasil entrou no vermelho?

Um ponto bastante relevante é que, se a gente olha o nosso nível de dívida, ele está abaixo do que a gente projetava há dois anos. Saímos de um nível da ordem de 87% (do PIB) no final de 2020 para 74,5%, na nossa projeção, para o fim deste ano – bem abaixo do que chegamos a estimar que poderia acontecer. Tem algumas coisas que não estão contabilizadas nesse número, inclusive toda a discussão sobre precatórios (dívidas judiciais da União) e alguns outros passivos que podem entrar na dívida, mas ainda é um número menor do que a gente viu em 2020 e do que a gente temia ver no final de 2023. Então, a grande preocupação é um nível de dívida alto – e é muito difícil você ver a estabilização dessa dívida, pelo menos no curto e no médio prazos.

O arcabouço é insuficiente para corrigir a trajetória da dívida?

O arcabouço tem um fator positivo, que foi o de eliminar o risco de o País entrar no curto prazo em uma trajetória explosiva de dívida. Era este o risco que se observava nas projeções logo após a aprovação da PEC da Transição (que ampliou os gastos do governo em R$ 168 bilhões). Agora, o arcabouço não é suficiente para estabilizar a dívida em relação ao PIB. Até porque ele foi feito com base em metas de superávit primário (saldo positivo das contas públicas) que vão ser muito difíceis de serem atingidas.

Está cética sobre a capacidade de o governo cumprir a meta de zerar o déficit no ano que vem?

Nossa projeção hoje é que, no ano que vem, o Brasil terá um déficit primário de 0,6% do PIB, ou seja abaixo do que o consenso de mercado tem hoje (perto de 1% do PIB) – mas, ainda assim, insuficiente para entregar a meta de zerar o déficit. Mas isso não significa que a gente espera que o governo mude a meta. Pelo menos não no curto prazo. Acho que é muito importante manter essa meta, até pela credibilidade de uma regra que foi aprovada há pouco tempo. Esse é um fator muito importante. E pela defesa dos próprios mecanismos que existem na lei, que controlam um pouco o crescimento dos gastos, uma vez que o governo está apresentando resultados piores em termos fiscais do que o esperado. Estou falando de mecanismos como a possibilidade de se contingenciar (bloquear de forma preventiva) gastos e o de não conceder aumentos para servidores.

Tendo em vista que a sua projeção é de que a meta será descumprida, por que o governo não deveria revê-la? Não é pior manter uma meta em que ninguém acredita?

Credibilidade. Esse é um ponto super importante. O arcabouço acabou de ser aprovado; então, mudar a meta em tão pouco tempo é muito ruim para a credibilidade da nova regra fiscal. E também porque é uma questão de incentivos. Se eu tenho uma meta que, por mais difícil que seja de ser atingida, mas que você tem o governo comprometido no seu cumprimento, isso facilita os resultados. É um incentivo para controlar o crescimento de gastos e também é um incentivo dentro do Congresso, para ajudar o governo em alguma das medidas de aumento de receita que foram propostas. Se de antemão a meta é alterada, não há incentivo nem no Congresso para aprovar as medidas de receita, nem no governo para controlar o crescimento dos gastos públicos. Como eu falei anteriormente, a aprovação do arcabouço fiscal foi importante para reduzir o risco que o mercado via em uma desancoragem muito rápida da trajetória da dívida. Se essa regra perde a credibilidade em tão pouco tempo, volta a ter um prêmio de risco que (o Brasil) pode entrar numa trajetória explosiva da dívida.

Por outro lado, não haveria um custo reputacional para o governo chegar ao fim de 2024 e não cumprir a meta?

Não cumprir a meta é sempre grave. Mas, quando se chega nessas condições, você tem de tentar explicar por que você não cumpriu a meta. Houve uma decepção do lado das receitas porque o governo não conseguiu aprovar no Congresso algumas medidas que foram propostas para aumentar a arrecadação? Ou porque o crescimento decepcionou aquelas expectativas iniciais e a arrecadação ficou mais baixa? Na nossa visão, esse segundo ponto vai ser um dos fatores preponderantes. Temos uma projeção de crescimento em 2024 de 1,2%, abaixo da feita pelo governo. Também acredito que algumas medidas que foram propostas vão enfrentar dificuldades de serem aprovadas. Estes deveriam ser os dois fatores principais (para a explicação do governo). A reação do mercado seria menos negativa se o não cumprimento da meta vier por esse lado. Um fator negativo seria se o não cumprimento vier por medidas de crescimento de gastos permanentes, que vão ficar por muito mais tempo, com base em receitas temporárias.

Como resposta a críticas de que o ajuste vem sendo feito só com o aumento da arrecadação, o governo prometeu rever gastos do INSS e em programas como o Bolsa Família. Isso ajuda a alcançar a meta?

A revisão dos gastos deveria ser uma regra contínua dentro do governo, principalmente para saber o que de fato é mais relevante para as necessidades sociais do País. Quais são os gastos que dão os maiores retornos para o objetivo do governo em reduzir a pobreza e aumentar o crescimento potencial e a eficiência da economia, melhorar a distribuição de renda e o nível de escolaridade? Esse papel que está sendo proposto pelo Ministério do Planejamento é fundamental e deveria ter sido feito há muito tempo. Mas isso é muito mais importante do lado qualitativo do que do lado quantitativo. Para conseguir cortar os gastos com base nessa análise, vai depender muito da visão do governo de usá-la para desenhar políticas públicas. Se chegar à conclusão de que alguns desses programas sociais têm um custo maior e uma efetividade menor em relação aos objetivos, o governo vai ser capaz de cortar esses gastos ou acabar com esses programas? É uma questão de saber se vai ter vontade política dentro do governo, do Congresso e até na sociedade.

E os subsídios?

Há uma lista de subsídios, de subvenções que são dadas a setores específicos. Eu sou cética sobre se a gente vai conseguir usar (essa avaliação) para racionalizar de forma eficiente os gastos públicos. Gostaria muito de que isso acontecesse; mas, olhando toda a discussão política dos últimos anos, é difícil imaginar essa melhora expressiva na alocação do Orçamento público.

Então, temos um encontro marcado com um aumento da carga tributária?

Trazendo de novo a perspectiva global, o Brasil também se destaca por ter uma carga tributária alta, principalmente quando comparada a outros emergentes. É uma carga da ordem de 33%, 34% do PIB – num País que precisa aumentar a produtividade e o investimento privado para aumentar o seu potencial de crescimento. Mas, sim, no curto prazo vai ser difícil a gente escapar de ter um aumento de carga tributária. As próprias medidas que estão sendo propostas, de redução de distorções que existem hoje no sistema tributário, elas por si só levam a um aumento de carga. Mesmo que você esteja simplesmente aumentando em setores que estavam sendo beneficiados de uma forma não eficiente por isenções tributárias, é matemático: a média sobe. Isso não é sustentável a médio e longo prazo. Daí eu sou mais otimista em relação ao impacto que a reforma tributária do consumo vai ter na economia.

Qual impacto?

O Brasil pode ter um ganho de eficiência que permita que, no médio e longo prazo, a carga tributária caia. Ou seja: há um crescimento da carga tributária no curto prazo, em razão das medidas de arrecadação; mas, a médio e longo prazo, a gente pode ter uma normalização, uma volta aos níveis atuais. Quando eu falo em longo prazo, são dez anos. Mas a gente precisa da reforma aprovada, totalmente implementada, todas as leis complementares de regulamentação aprovadas para, daí, ver esse impacto acontecendo.

A aprovação do arcabouço e o início da tramitação da reforma tributária geraram um otimismo no mercado com o Brasil que permitiu a queda da taxa de juros. O que é preciso acontecer agora para uma segunda onda?

A política monetária de curto prazo, principalmente o movimento recente das últimas semanas, é muito menos correlacionada às discussões em relação à política fiscal e muito mais correlacionada com o que está acontecendo no mundo. A abertura (o aumento no rendimento) da Treasury americana (título público dos EUA) é um fator predominante para explicar o que estamos vendo – até o mercado precificando que o Banco Central não consegue cortar tanto a taxa de juros. O mercado está bastante volátil e isso explica a depreciação mais recente da moeda. Até o final de julho, apesar de todo o aumento de taxa de juros nos EUA e na Europa, as moedas das economias da América Latina conseguiram se apreciar (valorizar). Não houve perda de valor (das moedas) porque os bancos centrais da região se anteciparam à aceleração da inflação, subiram a taxa de juros antes e conseguiram absorver o aumento nas taxas de juros dos países desenvolvidos. Por isso, a aprovação do arcabouço fiscal e a desaceleração na inflação ajudaram a criar condições para que o BC pudesse reduzir um pouco o aperto monetário, mesmo em um ambiente em que os países desenvolvidos ainda estão subindo a taxa de juros. Nas últimas semanas, esse cenário mudou.

Mudou como?

O aumento dos juros nos EUA acabou contagiando o mercado e a gente viu uma desvalorização da ordem de 9% (do real) no Brasil. O movimento deveria levar a uma maior cautela do BC; mas, neste momento, não vemos uma mudança suficiente para alterar o ritmo de cortes dos juros. Para mudar esse cenário, são necessárias algumas condições. O BC foi claro na comunicação de que, durante o processo de afrouxamento monetário, a taxa de juros tem que continuar no campo restritivo, porque não tem muita ociosidade na economia e o mercado de trabalho continua forte, as expectativas de inflação estão acima da meta. Então, assim como a meta fiscal, o mercado também não acredita que o BC vá entregar (a meta de) 3% (de inflação). E também porque a política fiscal é expansionista e ninguém prevê que ela vai ficar contracionista. Nossa projeção tem sido que a Selic termina em 10% (ao ano) em meados do ano que vem – ou seja, acima daquilo que você consideraria como o juro neutro da economia. Para voltar a um ciclo mais otimista, eu tenho que mudar alguma dessas condições: ou as taxas de juros globais caem e daí isso permitiria até uma apreciação da moeda ou uma política fiscal mais restritiva do que o mercado acredita hoje que ancore (conduza para a meta) as expectativas de inflação.

A sra. atribui o mesmo peso para as condições financeiras globais e a política fiscal interna?

No curto prazo, até por uma questão de magnitude, sim. Porque a deterioração das condições monetárias lá fora foi tão forte nas últimas semanas que ela dominou o efeito da política fiscal. As mudanças internas foram bem menores e, portanto, menos relevantes para explicar os próximos passos da política monetária do que as condições globais. Mas isso muito no curto prazo, para explicar as próximas decisões do BC. A partir daí, a política fiscal volta a ser um fator predominante.

E como o Brasil tem se comportado em relação a seus pares no exterior, nessa evolução mais recente?

A deterioração dos nossos pares foi maior do que a do Brasil. Não por outra razão, as agências de risco moveram favoravelmente a nota de rating (classificação de risco) do Brasil – e na direção contrária do que aconteceu nos EUA. Quando a gente olha para os outros países e vê uma política fiscal com maior crescimento de gastos e pouco consenso político para a restrição desses gastos ou aumento de receitas, leva a um cenário que a taxa de juros no mundo vai ficar mais alta por mais tempo.

Como a guerra no Oriente Médio pode alterar essa perspectiva?

Para além do aspecto humanitário, que é dramático, a guerra aumenta a incerteza no cenário econômico à frente. Num primeiro momento, pode beneficiar os preços das commodities, sobretudo de energia, uma vez que há o risco de novas rupturas na oferta global de petróleo. Se esse cenário se materializar, teremos um novo repique na inflação global, com impactos desproporcionais entre países exportadores e importadores de petróleo. Mas, sinceramente, é muito difícil, senão impossível, prever nesse momento o desfecho dos acontecimentos.

Qual sua avaliação sobre a reclassificação do governo nos precatórios? Considera uma contabilidade criativa?

Tem um lado que, de fato, o País tem uma dívida que não está sendo contabilizada nas estatísticas oficiais. Então, equacionar esse problema é dar mais transparência. Por outro, voltamos ao problema que havia desde 2016, que é um crescimento não controlado dessas despesas. Por mais que eu aumente a transparência, é muito difícil ter uma visibilidade de qual vai ser o crescimento desse gasto para frente. Essa divisão sobre o que é gasto financeiro e o que está dentro do arcabouço e da meta é uma discussão que poderia ter sido levada de uma outra forma. Mas a maior preocupação é estrutural, é pensar como vamos projetar a tendência desses gastos para frente e o que isso vai implicar na trajetória da dívida. Deveria haver alguma meta, algum incentivo para segurar o crescimento dessas despesas.

Entrevista por Mariana Carneiro

Repórter especial de Economia em Brasília. Foi editora da Coluna do Estadão. Graduada em comunicação social pela PUC-Rio, com MBA em mercado financeiro pela B3 e especialização em análise de conjuntura econômica pela UFRJ. Foi correspondente na Argentina (2015) pela Folha de S.Paulo e também trabalhou em O Globo, TV Globo, JB e Jornal do Commercio.

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