Desafio da revisão de gastos é criar incentivos para os gestores, diz ex-secretário do Planejamento


Daniel Couri defende sistema de recompensas que amplie a adesão de ministros e servidores à agenda de avaliação de políticas públicas, que enfrenta resistência no governo

Por Bianca Lima e Anna Carolina Papp
Atualização:
Foto: WILTON JUNIOR
Entrevista comDaniel Couriconsultor legislativo do Senado

BRASÍLIA – O desafio da revisão dos gastos públicos, agenda do Ministério do Planejamento e Orçamento que enfrenta forte resistência na ala política do governo Lula, é gerar incentivos para os gestores das áreas avaliadas, afirma o ex-secretário-adjunto de Orçamento Federal da pasta, Daniel Couri.

O consultor legislativo do Senado, que também foi diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), não nega que a avaliação de políticas públicas tenha um componente fiscal – ou seja, de economia –, mas afirma que é preciso trazer os gestores para perto e incentivar a realocação de recursos de forma mais eficiente, de modo a aumentar a adesão.

“Ninguém de boa vontade vai ficar devolvendo orçamento se só for servir para cortar”, afirma Couri em entrevista ao Estadão. “Não é um diálogo fácil com o executor da política (que está sendo avaliada). Então, de repente, o desafio é você alinhar os incentivos. Por exemplo: se você gerar economia ao combater fraude na Previdência, parte disso pode se reverter em alocações para investimento dentro do órgão.”

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O governo já vem começando a colocar essa ideia em prática. O ministro da Previdência Social, Carlos Lupi, à frente da revisão gastos do INSS – com economia prevista de R$ 10 bilhões neste ano – disse em entrevista ao Estadão que recebeu R$ 250 milhões para investimento em tecnologia de ponta decorrentes de um acordo nesse sentido.

“A minha combinação com o Haddad (ministro da Fazenda) é o seguinte: do que eu economizar, ele me dá uma parte em investimentos para a Previdência”, disse.

O mesmo foi feito ano passado com o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS). Parte da economia com a revisão no Cadastro Único, que poupou bilhões em pagamentos indevidos no Bolsa Família, foi realocada dentro da própria pasta, com inclusão de novos beneficiários que se enquadravam nos critérios.

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A revisão de gastos é um dos pilares da nova Lei de Finanças Públicas, que vem sendo gestada dentro do Ministério do Planejamento, como mostrou o Estadão. A ideia, ao reformular a lei atual, que completou 60 anos neste mês – e, portanto, é anterior à própria Constituição –, é realizar uma reforma no Orçamento como um todo, de modo a torná-lo mais transparente e eficiente.

Couri, que acompanhou o início das discussões quando ainda estava na pasta, é coautor, ao lado do atual secretário de Orçamento Federal, Paulo Bijos, do capítulo “Subsídios para uma reforma orçamentária no Brasil”, do livro “Reconstrução: o Brasil dos anos 20″. O texto é uma das bases da proposta em elaboração pelo governo.

O ex-secretário destaca a importância de modernizar o Orçamento – incluindo, além da revisão de gastos e da simplificação das leis orçamentárias, como a LDO e a LOA, uma visão de médio prazo.

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“É uma lei que pode contribuir muito para a gente romper com a miopia orçamentária, ou seja, ampliar o horizonte. Isso vai fazer com que o impacto daquilo que você está propondo para o ano que vem seja medido mais para frente e, eventualmente, mostre as restrições que você vai ter para tocar determinada agenda”, diz.

A seguir, os principais trechos da entrevista.

Por que o sr. avalia que o Brasil precisa de uma nova lei de finanças públicas?

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Ela é importante porque os instrumentos de gestão fiscal e no campo das finanças públicas se modernizaram nos últimos anos. No caso do Brasil, em particular, houve dois marcos: a LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal) e a Constituição. E é importante que tenhamos uma lei permanente, que valha para todos os órgãos e que esteja atualizada em relação a esses instrumentos. Além disso, eu acho que é uma lei que pode contribuir muito para rompermos com a miopia orçamentária, ou seja, ampliar o horizonte do Orçamento, criar uma forma de passar a pensar o Orçamento em termos plurianuais. Isso vai fazer com que o impacto daquilo que você está propondo para o ano que vem seja medido mais para frente e, eventualmente, mostre as restrições que você vai ter para tocar determinada agenda. Isso qualifica o debate, qualifica o Orçamento em si. E é uma oportunidade de você enxugar a LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) e permitir que o Congresso se debruce sobre aquilo que é o papel da LDO.

Como assim?

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A LDO, na falta de uma norma permanente, virou um verdadeiro laboratório de dispositivos e se transformou numa norma muito extensa. O gigantismo da LDO é ruim porque você dispersa a atenção sobre o que ela deveria mesmo fazer, acaba tratando de muitos temas. Então, você não tem que despender o esforço do Parlamento todo ano para tratar de temas que não precisariam estar ali. Quanto mais a LDO puder focar naquilo que é a atribuição dela, dada pela Constituição mesmo, melhor tende a ser o debate dentro do Congresso. Você não tem de debater todo ano algo que se repete; esses temas poderiam migrar para a nova Lei de Finanças Públicas.

A LOA (Lei Orçamentária Anual) também não tem um detalhamento excessivo?

A questão de você ter mais detalhe não é necessariamente um problema. Mas quando o detalhe fica no nível de uma lei ordinária, isso pode criar uma rigidez, uma falta de flexibilidade, porque você vai, durante o ano, alterar essa lei várias vezes. Em tese, para alterar uma lei, você precisa de uma outra. Muito disso é autorizado por portaria ou por decreto. Mas o fato é esse: é muito positivo você pensar se tudo que está na lei hoje deveria estar dentro da lei – isso sem prejuízo de você deixar de fazer um Orçamento no menor nível de detalhe. Ele pode ser elaborado daquela forma, ele pode ser executado daquela forma, mas não necessariamente todos aqueles atributos têm de estar na lei.

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A nova lei também deve contemplar avaliação de políticas públicas e revisão de gastos. O quanto ela pode avançar nesses pontos?

A gente já avançou recentemente na Constituição. A própria Constituição colocou a avaliação de política pública no centro do debate orçamentário, com a emenda 109, de 2021. E inclusive tem um dispositivo hoje na Constituição que, para mim, é o embrião da revisão de gastos: ele fala que as leis desse artigo – nesse caso, LOA e PPA (Plano Plurianual) –, deverão considerar o resultado das avaliações de políticas públicas no que couber. Isso é a pedra angular para se fazer revisão de gastos. O novo arcabouço fiscal repetiu isso no que se refere ao anexo de metas fiscais da LDO, com a redação quase igual. Isso abre a possibilidade de você conectar o processo da avaliação de política pública com processo orçamentário.

Qual o efeito prático disso?

Uma avaliação de política pública não necessariamente está interessada em saber o impacto fiscal. Às vezes, a avaliação é para dizer se está funcionando ou não. No caso do Bolsa Família, por exemplo, se está reduzindo a pobreza ou não. Onde eu poderia ter economia de despesa? Melhorando isso no processo, evitando aquilo. É um processo avaliativo e específico, que faz essa conexão da política pública com o processo orçamentário. E aí, o que tem hoje na Constituição é o seguinte: na hora de fazer (o Orçamento), você tem de considerar o resultado das avaliações – e ele (o texto) deixa lá uma permissão mais ampla, falando “no que couber”. Mas isso é uma porta que se abre para a gente avançar num instrumento de revisão de gastos propriamente dito, que é uma agenda que está lá também (no escopo da nova lei de finanças públicas) – e que tem o protagonismo do (Sérgio) Firpo (secretário de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas), ao lado do Paulo (Bijos, secretário de Orçamento Federal) também.

'É um governo que tem uma resistência natural a cortar despesa', destaca Couri.  Foto: WILTON JUNIOR

E há ambiente para fazer isso no governo Lula?

É delicado, porque é um governo que tem uma resistência natural a cortar despesa. É claro que existe um discurso de responsabilidade e tudo. E, por exemplo: ninguém é contra diminuir o orçamento do Bolsa Família se for para corrigir uma fraude; ninguém vai ser contra. Agora, não é um diálogo fácil com o executor da política. Por exemplo, o MDS (Ministério do Desenvolvimento Social): ele está super interessado em reduzir fraude, é o nome dele. Mas ele vai querer usar aquela economia para outra coisa; então, todo mundo tem um outro destino para aquilo. Então, esse é um dos desafios do processos de revisão de gastos. Por isso que o Firpo evita – a meu ver, corretamente – falar que é um instrumento feito para cortar despesa, para economizar. Não necessariamente: você pode gerar uma economia aqui e deslocar para outro lugar. Mas o componente fiscal da revisão de gastos existe.

Como avançar com essa agenda?

De repente, o desafio é você alinhar os incentivos. Por exemplo: se você gerar economia ao combater fraude na Previdência, parte dessa economia pode se reverter em alocações para investimento dentro do órgão. É a famosa cenoura: a alegoria do incentivo é essa. Ninguém de boa vontade vai ficar devolvendo orçamento se for só servir para cortar. O natural é você não gostar da avaliação, não querer ser avaliado; quem sabe pode gerar uma crítica, sendo que estamos falando de agentes políticos. Então, ser avaliado não necessariamente é o que o governo quer. Imagina você dar autonomia para um órgão dentro do Executivo avaliar você e autonomia para ele publicar que a política pública “X” é ruim. Esse é um dilema político interno que dificulta e que faz com que muitas avaliações sejam engavetadas. Então, talvez um caminho importante também seja garantir a autonomia necessária dos órgãos responsáveis por avaliar a política pública, para que a gente tenha coragem de olhar e divulgar: “olha, essa política tem um problema”.

Outro pilar é o Orçamento de médio prazo. O que é e qual a importância?

Isso é um exemplo de uma boa prática Internacional hoje que não existia na época da 4.320 (lei atual de finanças públicas). Então, existe esse instrumento, que em inglês a sigla é MTEF (Medium Term Expenditure Framework), que a gente está chamando de Orçamento de médio prazo para simplificar. Não quer dizer que o Orçamento vai autorizar despesas para o médio prazo, ele continua sendo anual. Mas ele passa a ser elaborado sob uma perspectiva plurianual.

Poderia dar um exemplo?

Quando você quiser instituir um bônus para servidor ou aumentar salário, vai ter de mostrar o impacto daquilo ao longo do tempo. E quando você faz isso para todo o Orçamento, você vai conseguir enxergar se aquilo cabe ou não daqui a quatro anos. Se não cabe ou se dificulta muito, isso retroalimenta: “olha, essa proposta até cabe no Orçamento do ano que vem, mas daqui a quatro anos pode gerar uma situação muito difícil” – e aí você rediscute. Então, esse é o objetivo de você ter um Orçamento sendo elaborado no médio prazo. Basicamente, acho que vai ser feito dessa forma: o Orçamento de 2025 vai ser elaborado em termos plurianuais, o que é um baita avanço. A gente vai andar algumas casinhas, porque o Brasil ficou atrasado nisso. Vários países já têm a questão do médio prazo melhor do que o Brasil.

BRASÍLIA – O desafio da revisão dos gastos públicos, agenda do Ministério do Planejamento e Orçamento que enfrenta forte resistência na ala política do governo Lula, é gerar incentivos para os gestores das áreas avaliadas, afirma o ex-secretário-adjunto de Orçamento Federal da pasta, Daniel Couri.

O consultor legislativo do Senado, que também foi diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), não nega que a avaliação de políticas públicas tenha um componente fiscal – ou seja, de economia –, mas afirma que é preciso trazer os gestores para perto e incentivar a realocação de recursos de forma mais eficiente, de modo a aumentar a adesão.

“Ninguém de boa vontade vai ficar devolvendo orçamento se só for servir para cortar”, afirma Couri em entrevista ao Estadão. “Não é um diálogo fácil com o executor da política (que está sendo avaliada). Então, de repente, o desafio é você alinhar os incentivos. Por exemplo: se você gerar economia ao combater fraude na Previdência, parte disso pode se reverter em alocações para investimento dentro do órgão.”

O governo já vem começando a colocar essa ideia em prática. O ministro da Previdência Social, Carlos Lupi, à frente da revisão gastos do INSS – com economia prevista de R$ 10 bilhões neste ano – disse em entrevista ao Estadão que recebeu R$ 250 milhões para investimento em tecnologia de ponta decorrentes de um acordo nesse sentido.

“A minha combinação com o Haddad (ministro da Fazenda) é o seguinte: do que eu economizar, ele me dá uma parte em investimentos para a Previdência”, disse.

O mesmo foi feito ano passado com o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS). Parte da economia com a revisão no Cadastro Único, que poupou bilhões em pagamentos indevidos no Bolsa Família, foi realocada dentro da própria pasta, com inclusão de novos beneficiários que se enquadravam nos critérios.

A revisão de gastos é um dos pilares da nova Lei de Finanças Públicas, que vem sendo gestada dentro do Ministério do Planejamento, como mostrou o Estadão. A ideia, ao reformular a lei atual, que completou 60 anos neste mês – e, portanto, é anterior à própria Constituição –, é realizar uma reforma no Orçamento como um todo, de modo a torná-lo mais transparente e eficiente.

Couri, que acompanhou o início das discussões quando ainda estava na pasta, é coautor, ao lado do atual secretário de Orçamento Federal, Paulo Bijos, do capítulo “Subsídios para uma reforma orçamentária no Brasil”, do livro “Reconstrução: o Brasil dos anos 20″. O texto é uma das bases da proposta em elaboração pelo governo.

O ex-secretário destaca a importância de modernizar o Orçamento – incluindo, além da revisão de gastos e da simplificação das leis orçamentárias, como a LDO e a LOA, uma visão de médio prazo.

“É uma lei que pode contribuir muito para a gente romper com a miopia orçamentária, ou seja, ampliar o horizonte. Isso vai fazer com que o impacto daquilo que você está propondo para o ano que vem seja medido mais para frente e, eventualmente, mostre as restrições que você vai ter para tocar determinada agenda”, diz.

A seguir, os principais trechos da entrevista.

Por que o sr. avalia que o Brasil precisa de uma nova lei de finanças públicas?

Ela é importante porque os instrumentos de gestão fiscal e no campo das finanças públicas se modernizaram nos últimos anos. No caso do Brasil, em particular, houve dois marcos: a LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal) e a Constituição. E é importante que tenhamos uma lei permanente, que valha para todos os órgãos e que esteja atualizada em relação a esses instrumentos. Além disso, eu acho que é uma lei que pode contribuir muito para rompermos com a miopia orçamentária, ou seja, ampliar o horizonte do Orçamento, criar uma forma de passar a pensar o Orçamento em termos plurianuais. Isso vai fazer com que o impacto daquilo que você está propondo para o ano que vem seja medido mais para frente e, eventualmente, mostre as restrições que você vai ter para tocar determinada agenda. Isso qualifica o debate, qualifica o Orçamento em si. E é uma oportunidade de você enxugar a LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) e permitir que o Congresso se debruce sobre aquilo que é o papel da LDO.

Como assim?

A LDO, na falta de uma norma permanente, virou um verdadeiro laboratório de dispositivos e se transformou numa norma muito extensa. O gigantismo da LDO é ruim porque você dispersa a atenção sobre o que ela deveria mesmo fazer, acaba tratando de muitos temas. Então, você não tem que despender o esforço do Parlamento todo ano para tratar de temas que não precisariam estar ali. Quanto mais a LDO puder focar naquilo que é a atribuição dela, dada pela Constituição mesmo, melhor tende a ser o debate dentro do Congresso. Você não tem de debater todo ano algo que se repete; esses temas poderiam migrar para a nova Lei de Finanças Públicas.

A LOA (Lei Orçamentária Anual) também não tem um detalhamento excessivo?

A questão de você ter mais detalhe não é necessariamente um problema. Mas quando o detalhe fica no nível de uma lei ordinária, isso pode criar uma rigidez, uma falta de flexibilidade, porque você vai, durante o ano, alterar essa lei várias vezes. Em tese, para alterar uma lei, você precisa de uma outra. Muito disso é autorizado por portaria ou por decreto. Mas o fato é esse: é muito positivo você pensar se tudo que está na lei hoje deveria estar dentro da lei – isso sem prejuízo de você deixar de fazer um Orçamento no menor nível de detalhe. Ele pode ser elaborado daquela forma, ele pode ser executado daquela forma, mas não necessariamente todos aqueles atributos têm de estar na lei.

A nova lei também deve contemplar avaliação de políticas públicas e revisão de gastos. O quanto ela pode avançar nesses pontos?

A gente já avançou recentemente na Constituição. A própria Constituição colocou a avaliação de política pública no centro do debate orçamentário, com a emenda 109, de 2021. E inclusive tem um dispositivo hoje na Constituição que, para mim, é o embrião da revisão de gastos: ele fala que as leis desse artigo – nesse caso, LOA e PPA (Plano Plurianual) –, deverão considerar o resultado das avaliações de políticas públicas no que couber. Isso é a pedra angular para se fazer revisão de gastos. O novo arcabouço fiscal repetiu isso no que se refere ao anexo de metas fiscais da LDO, com a redação quase igual. Isso abre a possibilidade de você conectar o processo da avaliação de política pública com processo orçamentário.

Qual o efeito prático disso?

Uma avaliação de política pública não necessariamente está interessada em saber o impacto fiscal. Às vezes, a avaliação é para dizer se está funcionando ou não. No caso do Bolsa Família, por exemplo, se está reduzindo a pobreza ou não. Onde eu poderia ter economia de despesa? Melhorando isso no processo, evitando aquilo. É um processo avaliativo e específico, que faz essa conexão da política pública com o processo orçamentário. E aí, o que tem hoje na Constituição é o seguinte: na hora de fazer (o Orçamento), você tem de considerar o resultado das avaliações – e ele (o texto) deixa lá uma permissão mais ampla, falando “no que couber”. Mas isso é uma porta que se abre para a gente avançar num instrumento de revisão de gastos propriamente dito, que é uma agenda que está lá também (no escopo da nova lei de finanças públicas) – e que tem o protagonismo do (Sérgio) Firpo (secretário de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas), ao lado do Paulo (Bijos, secretário de Orçamento Federal) também.

'É um governo que tem uma resistência natural a cortar despesa', destaca Couri.  Foto: WILTON JUNIOR

E há ambiente para fazer isso no governo Lula?

É delicado, porque é um governo que tem uma resistência natural a cortar despesa. É claro que existe um discurso de responsabilidade e tudo. E, por exemplo: ninguém é contra diminuir o orçamento do Bolsa Família se for para corrigir uma fraude; ninguém vai ser contra. Agora, não é um diálogo fácil com o executor da política. Por exemplo, o MDS (Ministério do Desenvolvimento Social): ele está super interessado em reduzir fraude, é o nome dele. Mas ele vai querer usar aquela economia para outra coisa; então, todo mundo tem um outro destino para aquilo. Então, esse é um dos desafios do processos de revisão de gastos. Por isso que o Firpo evita – a meu ver, corretamente – falar que é um instrumento feito para cortar despesa, para economizar. Não necessariamente: você pode gerar uma economia aqui e deslocar para outro lugar. Mas o componente fiscal da revisão de gastos existe.

Como avançar com essa agenda?

De repente, o desafio é você alinhar os incentivos. Por exemplo: se você gerar economia ao combater fraude na Previdência, parte dessa economia pode se reverter em alocações para investimento dentro do órgão. É a famosa cenoura: a alegoria do incentivo é essa. Ninguém de boa vontade vai ficar devolvendo orçamento se for só servir para cortar. O natural é você não gostar da avaliação, não querer ser avaliado; quem sabe pode gerar uma crítica, sendo que estamos falando de agentes políticos. Então, ser avaliado não necessariamente é o que o governo quer. Imagina você dar autonomia para um órgão dentro do Executivo avaliar você e autonomia para ele publicar que a política pública “X” é ruim. Esse é um dilema político interno que dificulta e que faz com que muitas avaliações sejam engavetadas. Então, talvez um caminho importante também seja garantir a autonomia necessária dos órgãos responsáveis por avaliar a política pública, para que a gente tenha coragem de olhar e divulgar: “olha, essa política tem um problema”.

Outro pilar é o Orçamento de médio prazo. O que é e qual a importância?

Isso é um exemplo de uma boa prática Internacional hoje que não existia na época da 4.320 (lei atual de finanças públicas). Então, existe esse instrumento, que em inglês a sigla é MTEF (Medium Term Expenditure Framework), que a gente está chamando de Orçamento de médio prazo para simplificar. Não quer dizer que o Orçamento vai autorizar despesas para o médio prazo, ele continua sendo anual. Mas ele passa a ser elaborado sob uma perspectiva plurianual.

Poderia dar um exemplo?

Quando você quiser instituir um bônus para servidor ou aumentar salário, vai ter de mostrar o impacto daquilo ao longo do tempo. E quando você faz isso para todo o Orçamento, você vai conseguir enxergar se aquilo cabe ou não daqui a quatro anos. Se não cabe ou se dificulta muito, isso retroalimenta: “olha, essa proposta até cabe no Orçamento do ano que vem, mas daqui a quatro anos pode gerar uma situação muito difícil” – e aí você rediscute. Então, esse é o objetivo de você ter um Orçamento sendo elaborado no médio prazo. Basicamente, acho que vai ser feito dessa forma: o Orçamento de 2025 vai ser elaborado em termos plurianuais, o que é um baita avanço. A gente vai andar algumas casinhas, porque o Brasil ficou atrasado nisso. Vários países já têm a questão do médio prazo melhor do que o Brasil.

BRASÍLIA – O desafio da revisão dos gastos públicos, agenda do Ministério do Planejamento e Orçamento que enfrenta forte resistência na ala política do governo Lula, é gerar incentivos para os gestores das áreas avaliadas, afirma o ex-secretário-adjunto de Orçamento Federal da pasta, Daniel Couri.

O consultor legislativo do Senado, que também foi diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), não nega que a avaliação de políticas públicas tenha um componente fiscal – ou seja, de economia –, mas afirma que é preciso trazer os gestores para perto e incentivar a realocação de recursos de forma mais eficiente, de modo a aumentar a adesão.

“Ninguém de boa vontade vai ficar devolvendo orçamento se só for servir para cortar”, afirma Couri em entrevista ao Estadão. “Não é um diálogo fácil com o executor da política (que está sendo avaliada). Então, de repente, o desafio é você alinhar os incentivos. Por exemplo: se você gerar economia ao combater fraude na Previdência, parte disso pode se reverter em alocações para investimento dentro do órgão.”

O governo já vem começando a colocar essa ideia em prática. O ministro da Previdência Social, Carlos Lupi, à frente da revisão gastos do INSS – com economia prevista de R$ 10 bilhões neste ano – disse em entrevista ao Estadão que recebeu R$ 250 milhões para investimento em tecnologia de ponta decorrentes de um acordo nesse sentido.

“A minha combinação com o Haddad (ministro da Fazenda) é o seguinte: do que eu economizar, ele me dá uma parte em investimentos para a Previdência”, disse.

O mesmo foi feito ano passado com o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS). Parte da economia com a revisão no Cadastro Único, que poupou bilhões em pagamentos indevidos no Bolsa Família, foi realocada dentro da própria pasta, com inclusão de novos beneficiários que se enquadravam nos critérios.

A revisão de gastos é um dos pilares da nova Lei de Finanças Públicas, que vem sendo gestada dentro do Ministério do Planejamento, como mostrou o Estadão. A ideia, ao reformular a lei atual, que completou 60 anos neste mês – e, portanto, é anterior à própria Constituição –, é realizar uma reforma no Orçamento como um todo, de modo a torná-lo mais transparente e eficiente.

Couri, que acompanhou o início das discussões quando ainda estava na pasta, é coautor, ao lado do atual secretário de Orçamento Federal, Paulo Bijos, do capítulo “Subsídios para uma reforma orçamentária no Brasil”, do livro “Reconstrução: o Brasil dos anos 20″. O texto é uma das bases da proposta em elaboração pelo governo.

O ex-secretário destaca a importância de modernizar o Orçamento – incluindo, além da revisão de gastos e da simplificação das leis orçamentárias, como a LDO e a LOA, uma visão de médio prazo.

“É uma lei que pode contribuir muito para a gente romper com a miopia orçamentária, ou seja, ampliar o horizonte. Isso vai fazer com que o impacto daquilo que você está propondo para o ano que vem seja medido mais para frente e, eventualmente, mostre as restrições que você vai ter para tocar determinada agenda”, diz.

A seguir, os principais trechos da entrevista.

Por que o sr. avalia que o Brasil precisa de uma nova lei de finanças públicas?

Ela é importante porque os instrumentos de gestão fiscal e no campo das finanças públicas se modernizaram nos últimos anos. No caso do Brasil, em particular, houve dois marcos: a LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal) e a Constituição. E é importante que tenhamos uma lei permanente, que valha para todos os órgãos e que esteja atualizada em relação a esses instrumentos. Além disso, eu acho que é uma lei que pode contribuir muito para rompermos com a miopia orçamentária, ou seja, ampliar o horizonte do Orçamento, criar uma forma de passar a pensar o Orçamento em termos plurianuais. Isso vai fazer com que o impacto daquilo que você está propondo para o ano que vem seja medido mais para frente e, eventualmente, mostre as restrições que você vai ter para tocar determinada agenda. Isso qualifica o debate, qualifica o Orçamento em si. E é uma oportunidade de você enxugar a LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) e permitir que o Congresso se debruce sobre aquilo que é o papel da LDO.

Como assim?

A LDO, na falta de uma norma permanente, virou um verdadeiro laboratório de dispositivos e se transformou numa norma muito extensa. O gigantismo da LDO é ruim porque você dispersa a atenção sobre o que ela deveria mesmo fazer, acaba tratando de muitos temas. Então, você não tem que despender o esforço do Parlamento todo ano para tratar de temas que não precisariam estar ali. Quanto mais a LDO puder focar naquilo que é a atribuição dela, dada pela Constituição mesmo, melhor tende a ser o debate dentro do Congresso. Você não tem de debater todo ano algo que se repete; esses temas poderiam migrar para a nova Lei de Finanças Públicas.

A LOA (Lei Orçamentária Anual) também não tem um detalhamento excessivo?

A questão de você ter mais detalhe não é necessariamente um problema. Mas quando o detalhe fica no nível de uma lei ordinária, isso pode criar uma rigidez, uma falta de flexibilidade, porque você vai, durante o ano, alterar essa lei várias vezes. Em tese, para alterar uma lei, você precisa de uma outra. Muito disso é autorizado por portaria ou por decreto. Mas o fato é esse: é muito positivo você pensar se tudo que está na lei hoje deveria estar dentro da lei – isso sem prejuízo de você deixar de fazer um Orçamento no menor nível de detalhe. Ele pode ser elaborado daquela forma, ele pode ser executado daquela forma, mas não necessariamente todos aqueles atributos têm de estar na lei.

A nova lei também deve contemplar avaliação de políticas públicas e revisão de gastos. O quanto ela pode avançar nesses pontos?

A gente já avançou recentemente na Constituição. A própria Constituição colocou a avaliação de política pública no centro do debate orçamentário, com a emenda 109, de 2021. E inclusive tem um dispositivo hoje na Constituição que, para mim, é o embrião da revisão de gastos: ele fala que as leis desse artigo – nesse caso, LOA e PPA (Plano Plurianual) –, deverão considerar o resultado das avaliações de políticas públicas no que couber. Isso é a pedra angular para se fazer revisão de gastos. O novo arcabouço fiscal repetiu isso no que se refere ao anexo de metas fiscais da LDO, com a redação quase igual. Isso abre a possibilidade de você conectar o processo da avaliação de política pública com processo orçamentário.

Qual o efeito prático disso?

Uma avaliação de política pública não necessariamente está interessada em saber o impacto fiscal. Às vezes, a avaliação é para dizer se está funcionando ou não. No caso do Bolsa Família, por exemplo, se está reduzindo a pobreza ou não. Onde eu poderia ter economia de despesa? Melhorando isso no processo, evitando aquilo. É um processo avaliativo e específico, que faz essa conexão da política pública com o processo orçamentário. E aí, o que tem hoje na Constituição é o seguinte: na hora de fazer (o Orçamento), você tem de considerar o resultado das avaliações – e ele (o texto) deixa lá uma permissão mais ampla, falando “no que couber”. Mas isso é uma porta que se abre para a gente avançar num instrumento de revisão de gastos propriamente dito, que é uma agenda que está lá também (no escopo da nova lei de finanças públicas) – e que tem o protagonismo do (Sérgio) Firpo (secretário de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas), ao lado do Paulo (Bijos, secretário de Orçamento Federal) também.

'É um governo que tem uma resistência natural a cortar despesa', destaca Couri.  Foto: WILTON JUNIOR

E há ambiente para fazer isso no governo Lula?

É delicado, porque é um governo que tem uma resistência natural a cortar despesa. É claro que existe um discurso de responsabilidade e tudo. E, por exemplo: ninguém é contra diminuir o orçamento do Bolsa Família se for para corrigir uma fraude; ninguém vai ser contra. Agora, não é um diálogo fácil com o executor da política. Por exemplo, o MDS (Ministério do Desenvolvimento Social): ele está super interessado em reduzir fraude, é o nome dele. Mas ele vai querer usar aquela economia para outra coisa; então, todo mundo tem um outro destino para aquilo. Então, esse é um dos desafios do processos de revisão de gastos. Por isso que o Firpo evita – a meu ver, corretamente – falar que é um instrumento feito para cortar despesa, para economizar. Não necessariamente: você pode gerar uma economia aqui e deslocar para outro lugar. Mas o componente fiscal da revisão de gastos existe.

Como avançar com essa agenda?

De repente, o desafio é você alinhar os incentivos. Por exemplo: se você gerar economia ao combater fraude na Previdência, parte dessa economia pode se reverter em alocações para investimento dentro do órgão. É a famosa cenoura: a alegoria do incentivo é essa. Ninguém de boa vontade vai ficar devolvendo orçamento se for só servir para cortar. O natural é você não gostar da avaliação, não querer ser avaliado; quem sabe pode gerar uma crítica, sendo que estamos falando de agentes políticos. Então, ser avaliado não necessariamente é o que o governo quer. Imagina você dar autonomia para um órgão dentro do Executivo avaliar você e autonomia para ele publicar que a política pública “X” é ruim. Esse é um dilema político interno que dificulta e que faz com que muitas avaliações sejam engavetadas. Então, talvez um caminho importante também seja garantir a autonomia necessária dos órgãos responsáveis por avaliar a política pública, para que a gente tenha coragem de olhar e divulgar: “olha, essa política tem um problema”.

Outro pilar é o Orçamento de médio prazo. O que é e qual a importância?

Isso é um exemplo de uma boa prática Internacional hoje que não existia na época da 4.320 (lei atual de finanças públicas). Então, existe esse instrumento, que em inglês a sigla é MTEF (Medium Term Expenditure Framework), que a gente está chamando de Orçamento de médio prazo para simplificar. Não quer dizer que o Orçamento vai autorizar despesas para o médio prazo, ele continua sendo anual. Mas ele passa a ser elaborado sob uma perspectiva plurianual.

Poderia dar um exemplo?

Quando você quiser instituir um bônus para servidor ou aumentar salário, vai ter de mostrar o impacto daquilo ao longo do tempo. E quando você faz isso para todo o Orçamento, você vai conseguir enxergar se aquilo cabe ou não daqui a quatro anos. Se não cabe ou se dificulta muito, isso retroalimenta: “olha, essa proposta até cabe no Orçamento do ano que vem, mas daqui a quatro anos pode gerar uma situação muito difícil” – e aí você rediscute. Então, esse é o objetivo de você ter um Orçamento sendo elaborado no médio prazo. Basicamente, acho que vai ser feito dessa forma: o Orçamento de 2025 vai ser elaborado em termos plurianuais, o que é um baita avanço. A gente vai andar algumas casinhas, porque o Brasil ficou atrasado nisso. Vários países já têm a questão do médio prazo melhor do que o Brasil.

BRASÍLIA – O desafio da revisão dos gastos públicos, agenda do Ministério do Planejamento e Orçamento que enfrenta forte resistência na ala política do governo Lula, é gerar incentivos para os gestores das áreas avaliadas, afirma o ex-secretário-adjunto de Orçamento Federal da pasta, Daniel Couri.

O consultor legislativo do Senado, que também foi diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), não nega que a avaliação de políticas públicas tenha um componente fiscal – ou seja, de economia –, mas afirma que é preciso trazer os gestores para perto e incentivar a realocação de recursos de forma mais eficiente, de modo a aumentar a adesão.

“Ninguém de boa vontade vai ficar devolvendo orçamento se só for servir para cortar”, afirma Couri em entrevista ao Estadão. “Não é um diálogo fácil com o executor da política (que está sendo avaliada). Então, de repente, o desafio é você alinhar os incentivos. Por exemplo: se você gerar economia ao combater fraude na Previdência, parte disso pode se reverter em alocações para investimento dentro do órgão.”

O governo já vem começando a colocar essa ideia em prática. O ministro da Previdência Social, Carlos Lupi, à frente da revisão gastos do INSS – com economia prevista de R$ 10 bilhões neste ano – disse em entrevista ao Estadão que recebeu R$ 250 milhões para investimento em tecnologia de ponta decorrentes de um acordo nesse sentido.

“A minha combinação com o Haddad (ministro da Fazenda) é o seguinte: do que eu economizar, ele me dá uma parte em investimentos para a Previdência”, disse.

O mesmo foi feito ano passado com o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS). Parte da economia com a revisão no Cadastro Único, que poupou bilhões em pagamentos indevidos no Bolsa Família, foi realocada dentro da própria pasta, com inclusão de novos beneficiários que se enquadravam nos critérios.

A revisão de gastos é um dos pilares da nova Lei de Finanças Públicas, que vem sendo gestada dentro do Ministério do Planejamento, como mostrou o Estadão. A ideia, ao reformular a lei atual, que completou 60 anos neste mês – e, portanto, é anterior à própria Constituição –, é realizar uma reforma no Orçamento como um todo, de modo a torná-lo mais transparente e eficiente.

Couri, que acompanhou o início das discussões quando ainda estava na pasta, é coautor, ao lado do atual secretário de Orçamento Federal, Paulo Bijos, do capítulo “Subsídios para uma reforma orçamentária no Brasil”, do livro “Reconstrução: o Brasil dos anos 20″. O texto é uma das bases da proposta em elaboração pelo governo.

O ex-secretário destaca a importância de modernizar o Orçamento – incluindo, além da revisão de gastos e da simplificação das leis orçamentárias, como a LDO e a LOA, uma visão de médio prazo.

“É uma lei que pode contribuir muito para a gente romper com a miopia orçamentária, ou seja, ampliar o horizonte. Isso vai fazer com que o impacto daquilo que você está propondo para o ano que vem seja medido mais para frente e, eventualmente, mostre as restrições que você vai ter para tocar determinada agenda”, diz.

A seguir, os principais trechos da entrevista.

Por que o sr. avalia que o Brasil precisa de uma nova lei de finanças públicas?

Ela é importante porque os instrumentos de gestão fiscal e no campo das finanças públicas se modernizaram nos últimos anos. No caso do Brasil, em particular, houve dois marcos: a LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal) e a Constituição. E é importante que tenhamos uma lei permanente, que valha para todos os órgãos e que esteja atualizada em relação a esses instrumentos. Além disso, eu acho que é uma lei que pode contribuir muito para rompermos com a miopia orçamentária, ou seja, ampliar o horizonte do Orçamento, criar uma forma de passar a pensar o Orçamento em termos plurianuais. Isso vai fazer com que o impacto daquilo que você está propondo para o ano que vem seja medido mais para frente e, eventualmente, mostre as restrições que você vai ter para tocar determinada agenda. Isso qualifica o debate, qualifica o Orçamento em si. E é uma oportunidade de você enxugar a LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) e permitir que o Congresso se debruce sobre aquilo que é o papel da LDO.

Como assim?

A LDO, na falta de uma norma permanente, virou um verdadeiro laboratório de dispositivos e se transformou numa norma muito extensa. O gigantismo da LDO é ruim porque você dispersa a atenção sobre o que ela deveria mesmo fazer, acaba tratando de muitos temas. Então, você não tem que despender o esforço do Parlamento todo ano para tratar de temas que não precisariam estar ali. Quanto mais a LDO puder focar naquilo que é a atribuição dela, dada pela Constituição mesmo, melhor tende a ser o debate dentro do Congresso. Você não tem de debater todo ano algo que se repete; esses temas poderiam migrar para a nova Lei de Finanças Públicas.

A LOA (Lei Orçamentária Anual) também não tem um detalhamento excessivo?

A questão de você ter mais detalhe não é necessariamente um problema. Mas quando o detalhe fica no nível de uma lei ordinária, isso pode criar uma rigidez, uma falta de flexibilidade, porque você vai, durante o ano, alterar essa lei várias vezes. Em tese, para alterar uma lei, você precisa de uma outra. Muito disso é autorizado por portaria ou por decreto. Mas o fato é esse: é muito positivo você pensar se tudo que está na lei hoje deveria estar dentro da lei – isso sem prejuízo de você deixar de fazer um Orçamento no menor nível de detalhe. Ele pode ser elaborado daquela forma, ele pode ser executado daquela forma, mas não necessariamente todos aqueles atributos têm de estar na lei.

A nova lei também deve contemplar avaliação de políticas públicas e revisão de gastos. O quanto ela pode avançar nesses pontos?

A gente já avançou recentemente na Constituição. A própria Constituição colocou a avaliação de política pública no centro do debate orçamentário, com a emenda 109, de 2021. E inclusive tem um dispositivo hoje na Constituição que, para mim, é o embrião da revisão de gastos: ele fala que as leis desse artigo – nesse caso, LOA e PPA (Plano Plurianual) –, deverão considerar o resultado das avaliações de políticas públicas no que couber. Isso é a pedra angular para se fazer revisão de gastos. O novo arcabouço fiscal repetiu isso no que se refere ao anexo de metas fiscais da LDO, com a redação quase igual. Isso abre a possibilidade de você conectar o processo da avaliação de política pública com processo orçamentário.

Qual o efeito prático disso?

Uma avaliação de política pública não necessariamente está interessada em saber o impacto fiscal. Às vezes, a avaliação é para dizer se está funcionando ou não. No caso do Bolsa Família, por exemplo, se está reduzindo a pobreza ou não. Onde eu poderia ter economia de despesa? Melhorando isso no processo, evitando aquilo. É um processo avaliativo e específico, que faz essa conexão da política pública com o processo orçamentário. E aí, o que tem hoje na Constituição é o seguinte: na hora de fazer (o Orçamento), você tem de considerar o resultado das avaliações – e ele (o texto) deixa lá uma permissão mais ampla, falando “no que couber”. Mas isso é uma porta que se abre para a gente avançar num instrumento de revisão de gastos propriamente dito, que é uma agenda que está lá também (no escopo da nova lei de finanças públicas) – e que tem o protagonismo do (Sérgio) Firpo (secretário de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas), ao lado do Paulo (Bijos, secretário de Orçamento Federal) também.

'É um governo que tem uma resistência natural a cortar despesa', destaca Couri.  Foto: WILTON JUNIOR

E há ambiente para fazer isso no governo Lula?

É delicado, porque é um governo que tem uma resistência natural a cortar despesa. É claro que existe um discurso de responsabilidade e tudo. E, por exemplo: ninguém é contra diminuir o orçamento do Bolsa Família se for para corrigir uma fraude; ninguém vai ser contra. Agora, não é um diálogo fácil com o executor da política. Por exemplo, o MDS (Ministério do Desenvolvimento Social): ele está super interessado em reduzir fraude, é o nome dele. Mas ele vai querer usar aquela economia para outra coisa; então, todo mundo tem um outro destino para aquilo. Então, esse é um dos desafios do processos de revisão de gastos. Por isso que o Firpo evita – a meu ver, corretamente – falar que é um instrumento feito para cortar despesa, para economizar. Não necessariamente: você pode gerar uma economia aqui e deslocar para outro lugar. Mas o componente fiscal da revisão de gastos existe.

Como avançar com essa agenda?

De repente, o desafio é você alinhar os incentivos. Por exemplo: se você gerar economia ao combater fraude na Previdência, parte dessa economia pode se reverter em alocações para investimento dentro do órgão. É a famosa cenoura: a alegoria do incentivo é essa. Ninguém de boa vontade vai ficar devolvendo orçamento se for só servir para cortar. O natural é você não gostar da avaliação, não querer ser avaliado; quem sabe pode gerar uma crítica, sendo que estamos falando de agentes políticos. Então, ser avaliado não necessariamente é o que o governo quer. Imagina você dar autonomia para um órgão dentro do Executivo avaliar você e autonomia para ele publicar que a política pública “X” é ruim. Esse é um dilema político interno que dificulta e que faz com que muitas avaliações sejam engavetadas. Então, talvez um caminho importante também seja garantir a autonomia necessária dos órgãos responsáveis por avaliar a política pública, para que a gente tenha coragem de olhar e divulgar: “olha, essa política tem um problema”.

Outro pilar é o Orçamento de médio prazo. O que é e qual a importância?

Isso é um exemplo de uma boa prática Internacional hoje que não existia na época da 4.320 (lei atual de finanças públicas). Então, existe esse instrumento, que em inglês a sigla é MTEF (Medium Term Expenditure Framework), que a gente está chamando de Orçamento de médio prazo para simplificar. Não quer dizer que o Orçamento vai autorizar despesas para o médio prazo, ele continua sendo anual. Mas ele passa a ser elaborado sob uma perspectiva plurianual.

Poderia dar um exemplo?

Quando você quiser instituir um bônus para servidor ou aumentar salário, vai ter de mostrar o impacto daquilo ao longo do tempo. E quando você faz isso para todo o Orçamento, você vai conseguir enxergar se aquilo cabe ou não daqui a quatro anos. Se não cabe ou se dificulta muito, isso retroalimenta: “olha, essa proposta até cabe no Orçamento do ano que vem, mas daqui a quatro anos pode gerar uma situação muito difícil” – e aí você rediscute. Então, esse é o objetivo de você ter um Orçamento sendo elaborado no médio prazo. Basicamente, acho que vai ser feito dessa forma: o Orçamento de 2025 vai ser elaborado em termos plurianuais, o que é um baita avanço. A gente vai andar algumas casinhas, porque o Brasil ficou atrasado nisso. Vários países já têm a questão do médio prazo melhor do que o Brasil.

BRASÍLIA – O desafio da revisão dos gastos públicos, agenda do Ministério do Planejamento e Orçamento que enfrenta forte resistência na ala política do governo Lula, é gerar incentivos para os gestores das áreas avaliadas, afirma o ex-secretário-adjunto de Orçamento Federal da pasta, Daniel Couri.

O consultor legislativo do Senado, que também foi diretor-executivo da Instituição Fiscal Independente (IFI), não nega que a avaliação de políticas públicas tenha um componente fiscal – ou seja, de economia –, mas afirma que é preciso trazer os gestores para perto e incentivar a realocação de recursos de forma mais eficiente, de modo a aumentar a adesão.

“Ninguém de boa vontade vai ficar devolvendo orçamento se só for servir para cortar”, afirma Couri em entrevista ao Estadão. “Não é um diálogo fácil com o executor da política (que está sendo avaliada). Então, de repente, o desafio é você alinhar os incentivos. Por exemplo: se você gerar economia ao combater fraude na Previdência, parte disso pode se reverter em alocações para investimento dentro do órgão.”

O governo já vem começando a colocar essa ideia em prática. O ministro da Previdência Social, Carlos Lupi, à frente da revisão gastos do INSS – com economia prevista de R$ 10 bilhões neste ano – disse em entrevista ao Estadão que recebeu R$ 250 milhões para investimento em tecnologia de ponta decorrentes de um acordo nesse sentido.

“A minha combinação com o Haddad (ministro da Fazenda) é o seguinte: do que eu economizar, ele me dá uma parte em investimentos para a Previdência”, disse.

O mesmo foi feito ano passado com o Ministério do Desenvolvimento Social (MDS). Parte da economia com a revisão no Cadastro Único, que poupou bilhões em pagamentos indevidos no Bolsa Família, foi realocada dentro da própria pasta, com inclusão de novos beneficiários que se enquadravam nos critérios.

A revisão de gastos é um dos pilares da nova Lei de Finanças Públicas, que vem sendo gestada dentro do Ministério do Planejamento, como mostrou o Estadão. A ideia, ao reformular a lei atual, que completou 60 anos neste mês – e, portanto, é anterior à própria Constituição –, é realizar uma reforma no Orçamento como um todo, de modo a torná-lo mais transparente e eficiente.

Couri, que acompanhou o início das discussões quando ainda estava na pasta, é coautor, ao lado do atual secretário de Orçamento Federal, Paulo Bijos, do capítulo “Subsídios para uma reforma orçamentária no Brasil”, do livro “Reconstrução: o Brasil dos anos 20″. O texto é uma das bases da proposta em elaboração pelo governo.

O ex-secretário destaca a importância de modernizar o Orçamento – incluindo, além da revisão de gastos e da simplificação das leis orçamentárias, como a LDO e a LOA, uma visão de médio prazo.

“É uma lei que pode contribuir muito para a gente romper com a miopia orçamentária, ou seja, ampliar o horizonte. Isso vai fazer com que o impacto daquilo que você está propondo para o ano que vem seja medido mais para frente e, eventualmente, mostre as restrições que você vai ter para tocar determinada agenda”, diz.

A seguir, os principais trechos da entrevista.

Por que o sr. avalia que o Brasil precisa de uma nova lei de finanças públicas?

Ela é importante porque os instrumentos de gestão fiscal e no campo das finanças públicas se modernizaram nos últimos anos. No caso do Brasil, em particular, houve dois marcos: a LRF (Lei de Responsabilidade Fiscal) e a Constituição. E é importante que tenhamos uma lei permanente, que valha para todos os órgãos e que esteja atualizada em relação a esses instrumentos. Além disso, eu acho que é uma lei que pode contribuir muito para rompermos com a miopia orçamentária, ou seja, ampliar o horizonte do Orçamento, criar uma forma de passar a pensar o Orçamento em termos plurianuais. Isso vai fazer com que o impacto daquilo que você está propondo para o ano que vem seja medido mais para frente e, eventualmente, mostre as restrições que você vai ter para tocar determinada agenda. Isso qualifica o debate, qualifica o Orçamento em si. E é uma oportunidade de você enxugar a LDO (Lei de Diretrizes Orçamentárias) e permitir que o Congresso se debruce sobre aquilo que é o papel da LDO.

Como assim?

A LDO, na falta de uma norma permanente, virou um verdadeiro laboratório de dispositivos e se transformou numa norma muito extensa. O gigantismo da LDO é ruim porque você dispersa a atenção sobre o que ela deveria mesmo fazer, acaba tratando de muitos temas. Então, você não tem que despender o esforço do Parlamento todo ano para tratar de temas que não precisariam estar ali. Quanto mais a LDO puder focar naquilo que é a atribuição dela, dada pela Constituição mesmo, melhor tende a ser o debate dentro do Congresso. Você não tem de debater todo ano algo que se repete; esses temas poderiam migrar para a nova Lei de Finanças Públicas.

A LOA (Lei Orçamentária Anual) também não tem um detalhamento excessivo?

A questão de você ter mais detalhe não é necessariamente um problema. Mas quando o detalhe fica no nível de uma lei ordinária, isso pode criar uma rigidez, uma falta de flexibilidade, porque você vai, durante o ano, alterar essa lei várias vezes. Em tese, para alterar uma lei, você precisa de uma outra. Muito disso é autorizado por portaria ou por decreto. Mas o fato é esse: é muito positivo você pensar se tudo que está na lei hoje deveria estar dentro da lei – isso sem prejuízo de você deixar de fazer um Orçamento no menor nível de detalhe. Ele pode ser elaborado daquela forma, ele pode ser executado daquela forma, mas não necessariamente todos aqueles atributos têm de estar na lei.

A nova lei também deve contemplar avaliação de políticas públicas e revisão de gastos. O quanto ela pode avançar nesses pontos?

A gente já avançou recentemente na Constituição. A própria Constituição colocou a avaliação de política pública no centro do debate orçamentário, com a emenda 109, de 2021. E inclusive tem um dispositivo hoje na Constituição que, para mim, é o embrião da revisão de gastos: ele fala que as leis desse artigo – nesse caso, LOA e PPA (Plano Plurianual) –, deverão considerar o resultado das avaliações de políticas públicas no que couber. Isso é a pedra angular para se fazer revisão de gastos. O novo arcabouço fiscal repetiu isso no que se refere ao anexo de metas fiscais da LDO, com a redação quase igual. Isso abre a possibilidade de você conectar o processo da avaliação de política pública com processo orçamentário.

Qual o efeito prático disso?

Uma avaliação de política pública não necessariamente está interessada em saber o impacto fiscal. Às vezes, a avaliação é para dizer se está funcionando ou não. No caso do Bolsa Família, por exemplo, se está reduzindo a pobreza ou não. Onde eu poderia ter economia de despesa? Melhorando isso no processo, evitando aquilo. É um processo avaliativo e específico, que faz essa conexão da política pública com o processo orçamentário. E aí, o que tem hoje na Constituição é o seguinte: na hora de fazer (o Orçamento), você tem de considerar o resultado das avaliações – e ele (o texto) deixa lá uma permissão mais ampla, falando “no que couber”. Mas isso é uma porta que se abre para a gente avançar num instrumento de revisão de gastos propriamente dito, que é uma agenda que está lá também (no escopo da nova lei de finanças públicas) – e que tem o protagonismo do (Sérgio) Firpo (secretário de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas), ao lado do Paulo (Bijos, secretário de Orçamento Federal) também.

'É um governo que tem uma resistência natural a cortar despesa', destaca Couri.  Foto: WILTON JUNIOR

E há ambiente para fazer isso no governo Lula?

É delicado, porque é um governo que tem uma resistência natural a cortar despesa. É claro que existe um discurso de responsabilidade e tudo. E, por exemplo: ninguém é contra diminuir o orçamento do Bolsa Família se for para corrigir uma fraude; ninguém vai ser contra. Agora, não é um diálogo fácil com o executor da política. Por exemplo, o MDS (Ministério do Desenvolvimento Social): ele está super interessado em reduzir fraude, é o nome dele. Mas ele vai querer usar aquela economia para outra coisa; então, todo mundo tem um outro destino para aquilo. Então, esse é um dos desafios do processos de revisão de gastos. Por isso que o Firpo evita – a meu ver, corretamente – falar que é um instrumento feito para cortar despesa, para economizar. Não necessariamente: você pode gerar uma economia aqui e deslocar para outro lugar. Mas o componente fiscal da revisão de gastos existe.

Como avançar com essa agenda?

De repente, o desafio é você alinhar os incentivos. Por exemplo: se você gerar economia ao combater fraude na Previdência, parte dessa economia pode se reverter em alocações para investimento dentro do órgão. É a famosa cenoura: a alegoria do incentivo é essa. Ninguém de boa vontade vai ficar devolvendo orçamento se for só servir para cortar. O natural é você não gostar da avaliação, não querer ser avaliado; quem sabe pode gerar uma crítica, sendo que estamos falando de agentes políticos. Então, ser avaliado não necessariamente é o que o governo quer. Imagina você dar autonomia para um órgão dentro do Executivo avaliar você e autonomia para ele publicar que a política pública “X” é ruim. Esse é um dilema político interno que dificulta e que faz com que muitas avaliações sejam engavetadas. Então, talvez um caminho importante também seja garantir a autonomia necessária dos órgãos responsáveis por avaliar a política pública, para que a gente tenha coragem de olhar e divulgar: “olha, essa política tem um problema”.

Outro pilar é o Orçamento de médio prazo. O que é e qual a importância?

Isso é um exemplo de uma boa prática Internacional hoje que não existia na época da 4.320 (lei atual de finanças públicas). Então, existe esse instrumento, que em inglês a sigla é MTEF (Medium Term Expenditure Framework), que a gente está chamando de Orçamento de médio prazo para simplificar. Não quer dizer que o Orçamento vai autorizar despesas para o médio prazo, ele continua sendo anual. Mas ele passa a ser elaborado sob uma perspectiva plurianual.

Poderia dar um exemplo?

Quando você quiser instituir um bônus para servidor ou aumentar salário, vai ter de mostrar o impacto daquilo ao longo do tempo. E quando você faz isso para todo o Orçamento, você vai conseguir enxergar se aquilo cabe ou não daqui a quatro anos. Se não cabe ou se dificulta muito, isso retroalimenta: “olha, essa proposta até cabe no Orçamento do ano que vem, mas daqui a quatro anos pode gerar uma situação muito difícil” – e aí você rediscute. Então, esse é o objetivo de você ter um Orçamento sendo elaborado no médio prazo. Basicamente, acho que vai ser feito dessa forma: o Orçamento de 2025 vai ser elaborado em termos plurianuais, o que é um baita avanço. A gente vai andar algumas casinhas, porque o Brasil ficou atrasado nisso. Vários países já têm a questão do médio prazo melhor do que o Brasil.

Entrevista por Bianca Lima

Repórter especial do Estadão em Brasília, com experiência em macroeconomia, contas públicas e tributação. Foi repórter da GloboNews e do g1 e bolsista do International Center for Journalists (ICFJ), com sede em Washington. Tem MBA em economia e mercado financeiro pela B3. Vencedora dos prêmios CNH, Abecip, FNP e Estadão.

Anna Carolina Papp

Editora e coordenadora de Economia do Estadão em Brasília. Paulista, graduada em jornalismo pela USP e com MBA em economia e mercado financeiro pela B3. Foi editora de Economia na GloboNews no Rio e repórter do Estadão em São Paulo. Vencedora dos prêmios CNH, Andef, C6 Bank e Estadão.

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