BRASÍLIA – Ex-secretário de Fazenda do Estado de São Paulo, o economista Felipe Salto avaliou que a reforma tributária está “caminhando para um monstrengo” com o parecer do relator, deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB).
Ao Estadão, Salto critica as exceções e a criação do Conselho Federativo, que será instituído para a gestão do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), que substituirá o ICMS dos Estados e o ISS dos municípios. ”Existe agora uma feira onde se está debatendo o varejão dos pedidos que chegam”, diz o ex-secretário, atual economista-chefe da Warren Rena.
Para ele, o conselho será uma “estranha estrutura”, mais poderosa do que qualquer governador ou governadora de Estado na gestão tributária. Na sua avaliação, a guerra fiscal vai continuar, só que agora, bancada com recursos da União. A postura crítica aos termos da reforma tem levado a embates públicos com os defensores do texto do relator. A seguir, os principais trechos da entrevista.
Qual a sua avaliação sobre o parecer da reforma tributária divulgado na semana passada?
Entendo que o substitutivo confirmou as piores expectativas. A promessa de uma reforma para criar o IVA (Imposto sobre Valor Agregado), no padrão internacional, vai caminhando para um monstrengo, algo que só existirá aqui no Brasil. Veja: vamos ter, no caso do IBS, o imposto subnacional que unirá o ICMS ao ISS, uma série de exceções, possibilidades de redução de alíquota de 50% a 100%, além de uma lista a ser publicada por lei complementar, conforme o próprio artigo oitavo sugere. Além disso, o Conselho Federativo é uma verdadeira aberração. Ele terá poderes até mesmo para iniciativa de lei complementar, conforme mudança proposta no artigo 61 da Constituição Federal. Vai arrecadar, distribuir, normatizar, cuidar dos créditos e ainda operar todo o regime. Isso é uma sandice, não vejo outro termo.
A alíquota terá de ser maior por causa de tanta exceção?
O resultado final, temo, é uma alíquota bem mais alta que a “estimada”, de 25%. Aliás, ninguém poderá garantir alíquota alguma. A alíquota de referência será fixada anualmente pelo Senado e o Tribunal de Contas da União vai subsidiar o processo, com vistas a garantir certo cenário de referência estimado para a arrecadação. O Conselho vai meter o bedelho nisso também, provendo informações. Imagine o grau de judicialização. Vejo isso com muito receio. Confio em técnicos de alto gabarito, como Bernard Appy, cujo trabalho conheço há muito tempo e que inclusive foi membro do Conselho da Instituição Fiscal Independente do Senado a meu convite. Mas isso não anula as críticas que eu, como especialista, tenho de fazer. Ao contrário, preciso alertá-los de que sua proposta original, a PEC 45, já não existe mais. Existe agora uma feira onde se está debatendo o varejão dos pedidos que chegam e, consequentemente, o conjunto de ajustes e mudanças no texto. Veja que, de saída, há uma lista de exceções.
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Mas você não respondeu sobre a calibragem da alíquota...
A lógica desse sistema proposto é tão ruim que a calibragem das alíquotas será feita uma vez por ano e, se houver erro, será azar de quem perdeu e sorte de quem ganhou. Como se trata de estimativa, a chance de haver erro é altíssima; é o cenário mais provável. A incerteza para o setor produtivo é muito elevada. Mas o que mais preocupa – e poucos têm discutido – é a garantia dos créditos por meio da tal Conta Centralizadora, a cargo do Conselhão Federativo, uma estranha estrutura mais poderosa do que qualquer governador ou governadora de Estado, nos moldes propostos no substitutivo. Se os créditos forem destinados automaticamente a quem de direito, isto é, a quem tiver adquirido o direito a eles ao longo das etapas intermediárias de produção, quem será responsável por verificá-los? E se forem derivados de notas fraudadas? Como será esse processo? Vende-se gato por lebre. Fui secretário da Fazenda e não acredito nem por um minuto em um modelo que surrupie poder dos Estados e entregue de mão beijada a uma estrutura incerta, que vai ainda ser desenhada por lei complementar. Quem vota? Quem decide? Isso não tem cabimento
A proposta não replica os incentivos fiscais ao permitir que os Estados usem recursos do fundo de compensação de benefícios fiscais para bancar subsídios, ou seja, incentivos?
A mudança maior da reforma não era justamente acabar com a guerra fiscal? Não acabará. Vai perpetuá-la, mas agora com dinheiro da União. Os incentivos vão perdurar, mas agora bancados com o chapéu da União. E o fundo dos incentivos, criado especialmente para isso, vai receber aportes já a partir de 2025, enquanto o IBS só será instituído em 2029, com transição até 2032. O Fundo de Desenvolvimento Regional faz sentido, mas este outro, para substituir os incentivos dados atualmente, que alimentam a guerra fiscal, é um disparate. Ele vai, na prática, manter o que há de pior no ICMS. Lá em 2032, mesmo depois de uma década, haverá ainda o risco de se desejar manter os incentivos por mais e mais anos.
A reforma não deveria acabar com esse problema?
Sim, justamente porque a migração ao destino (tributar onde o produto é consumido) produz ganhos econômicos para todos. Não pode a discussão ser tocada dessa maneira, como se fosse uma verdadeira feira livre de pleitos e atendimentos via mudanças no texto legal. Pessoalmente, acho muito preocupante.
A reforma traz risco de aumento da carga tributária?
Sobre a carga tributária, não há qualquer garantia de que ficará estável. Isso é conversa mole, até porque se está criando um imposto cuja alíquota é simplesmente desconhecida. Vamos nos entender: essa reforma é temerária. Ao mesmo tempo em que o arcabouço foi um golaço do ministro (da Fazenda) Fernando Haddad – e eu fui o primeiro a dizer isso, com base em estudo técnico e avaliação, como sempre fiz –, tenho a mesma tranquilidade de dizer que esse texto da reforma tributária precisa urgentemente ser corrigido. Estamos marchando com celeridade para o abismo.
Você era um defensor da reforma e agora adotou uma crítica muito dura. Mudou de lado?
Estou do lado em que sempre estive, sobretudo, desde que me posicionei, como Secretário da Fazenda e Planejamento de São Paulo, a favor de uma proposta que transferisse o ICMS ao destino, com uma transição curta, deixando-se o problema do ISS, isto é, das bases apartadas de serviços e bens, para um segundo momento. Na IFI, estudamos bastante o tema e produzimos boas análises, que estão disponíveis para acesso público, por meio de notas técnicas e estudos. Lá, no entanto, não cabia hastear bandeiras, pois tínhamos o mandato da independência técnica, para mostrar as consequências das propostas de reforma, como fizemos pioneiramente com a reforma da previdência e também a PEC dos Precatórios.
Mas essa postura reflete sua passagem pela secretaria?
Antes de assumir como Secretário da Fazenda e Planejamento de São Paulo, eu havia comandado, pela IFI, a publicação de diversos estudos. Acho boa, sim, a ideia do IVA e a tributação no destino. Estes são princípios muito interessantes, mas a PEC 45 e, pior, o seu substitutivo, não constituem as últimas bolachas do pacote, como os seus defensores querem fazer crer. Eu sou extremamente – repito – extremamente grato aos servidores da Secretaria. Os auditores fiscais da receita estadual são profissionais do mais alto gabarito, com quem aprendi muito e que ajudaram, apenas no período de pouco menos de um ano em que fiquei por lá e que posso testemunhar, a recuperar bilhões e bilhões de reais para o Erário.