‘Há uma ginástica nos números para se manter a meta fiscal no papel’, diz economista da ARX


Gabriel de Barros, economista-chefe da ARX Investimentos que usou o termo ‘matemágica fiscal’, cobra transparência da Receita e do Tesouro e diz que ‘a bola está com o governo’ para recuperar a credibilidade

Por Alvaro Gribel
Atualização:
Foto: Carol Carquejeiro/divu
Entrevista comGabriel de BarrosEconomista-chefe da ARX Investimentos, ex-diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI)

BRASÍLIA – O economista Gabriel de Barros, da ARX Investimentos e ex-diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI), usou o termo “matemágica fiscal” para descrever o último relatório de receitas e despesas divulgado pela equipe econômica – que anunciou a liberação de R$ 1,7 bilhão do Orçamento. A explicação, diz, é que os “números foram torturados” para se entregar um resultado fictício de cumprimento da meta fiscal.

Ele cita o recado dado pelo Banco Central na ata desta terça-feira, 24, quando a autoridade monetária falou em maior “transparência”, e diz que há muitas informações incompletas nas divulgações da Receita Federal e do Tesouro Nacional – tanto pelo lado da despesa quanto pelo lado da receita.

“Há um problema grande de transparência, ainda que o governo venha negando. Há uma ginástica nos números para conseguir manter a meta no papel e, assim, evitar contenções de gastos”, afirmou em entrevista ao Estadão.

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Ele avalia que algumas medidas lembram a Nova Matriz Macroeconômica do governo Dilma Rousseff, diz que o indicador de resultado primário está perdendo relevância e que tem ficado cada vez mais difícil acompanhar, de fato, o que está acontecendo com os indicadores das contas públicas. A seguir, os principais trechos da entrevista.

O sr. usou o termo ‘matemágica fiscal’ depois do último relatório bimestral de receitas e despesas. Qual foi a razão?

Os números foram torturados para entregar um cenário fictício de cumprimento da meta – e, por isso, usei esse termo. O governo aproveitou o aumento nas projeções do PIB e da inflação, que ajudam no crescimento da arrecadação, para revisar para baixo as estimativas com o Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), que estavam vexatórias. Eles também contaram com receita extraordinária de dividendos antecipados do BNDES e com receitas incertas da desoneração da folha. Muito difícil ter essa confiança de que o governo vai arrecadar tudo que colocou nessas compensações. É uma ginástica nos números para conseguir manter a meta no papel, com o cumprimento da meta no limite inferior (que permite um déficit de até R$ 28,8 bilhões).

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E as despesas?

Mesmo na parte do gasto, o que teve de aumento de Previdência foi muito relacionado a precatórios (dívidas judiciais da União). Não teve revisão para cima de despesas por conta de mais benefícios – continua subestimada essa despesa. E, para fechar com chave de ouro, teve o descontingenciamento de R$ 1,7 bilhão. Eles argumentaram que estão seguindo a lei, mas o TCU já alertou que perseguir o limite inferior da meta não é prudente.

Gabriel Leal de Barros diz que ‘a bola está com o governo’ para recuperar a credibilidade. Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado
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O Banco Central, na ata do Copom, falou que há preocupação do mercado com a transparência dos números. Onde estão os problemas?

A gente já vem falando sobre a falta de transparência com que o Tesouro e a Receita vêm tratando as contas públicas, principalmente nessa linha de receita. A gente não sabe o quanto efetivamente foi arrecadado em cada uma das medidas que o governo anunciou desde o ano passado. Há um problema grande de transparência, que o governo vinha negando e que, no último relatório bimestral, ficou claro que eles foram obrigados a reconhecer que a receita não estava entrando – principalmente no Carf.

O sr. citou Tesouro e Receita. O que falta na divulgação desses dados?

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Há duas opções. O estado da arte seria a Receita, no relatório mensal de arrecadação, dizer o quanto está entrando de grana em cada uma das medidas: Carf, transação tributária, da Receita, da PGFN (Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional), por exemplo. Deveriam fazer uma tabelinha com cada um, bem objetivo, mês a mês. E aí, no relatório bimestral, faz um compilado. Importante citar o Tesouro, porque há medidas que podem não bater na Receita, mas aparecem na métrica do Tesouro. Ele também é responsável por essa transparência.

Pode dar um exemplo?

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Os efeitos da MP (medida provisória) 1202, que limitou a compensação de crédito tributário por decisão judicial. Parece que isso está tendo efeito grande na arrecadação, que sobe 9% em termos reais (acima da inflação), e parece que no PIS/Cofins, para jogar para cima. Mas a gente não sabe o quanto aumentou, mês a mês, só por conta dessa MP. Ninguém faz a menor ideia. Aumento do cigarro, que é recente, vai bater agora; não tem transparência, não estão dizendo item por item. O (ministro da Fazenda, Fernando) Haddad tem feito a crítica de que o mercado precisa dar o benefício da dúvida. Mas não dá para cobrar isso se o governo não dá transparência para os números realizados. Como o mercado vai formar expectativa para frente, se para trás ele não sabe?

O que pode ser feito?

A bola está com o governo, que precisa dar transparência. Se é tão bem sucedido, por que não abre os números? Por que precisa da criatividade para classificar os recursos não sacados, de pequenos valores? Se o próprio governo no arcabouço diz que a meta é (responsabilidade de verificação) do Banco Central, que segue metodologia do FMI (Fundo Monetário Internacional)?

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Revisar para baixo mais cedo a projeção de receita do Carf teria a consequência de exigir contingenciamentos. Na sua visão, isso não ocorreu por esse motivo?

Sim, é o que eles tentaram não fazer (contingenciar). Por isso, mantiveram superestimadas essas receitas, para postergar esse custo de contingenciar boa parte das despesas discricionárias (não obrigatórias, como investimentos e custeio) e também das emendas. Essa foi a ideia deles em atrasar. Só fizeram isso quando o PIB surpreendeu – e aí jogaram receita recorrente para cima. O PIB foi mais forte, fato, não dá para brigar com número; mas teve contribuição de estoques, que são voláteis, praticamente boi e grão. Não dá para contar que vai ser sempre nesse mesmo ritmo. PIB do segundo semestre deve ser bem diferente do primeiro.

Por quê?

Porque houve muito estímulo, um choque fiscal expansionista concentrado no primeiro semestre e que não vai se repetir. Pagamento de precatórios, ajuda ao Rio Grande do Sul. Antecipação de abono, 13º.

Qual a importância desse alerta do Banco Central?

O Banco Central reconhece com atraso o que o mercado já vinha dizendo, que é que o fiscal está tendo problemas. Isso acontece mesmo com a receita crescendo mais de 9%. Há um problema de gasto, não de arrecadação. Num cenário de desaceleração, os problemas que já existem hoje ficarão mais críticos. O BC vinha postergando incorporar o fiscal no balanço de risco, numa espécie de boa vontade que vinha tendo com a equipe econômica. Mas, dado o tamanho da deterioração, reconheceram. Antes tarde do que nunca. Bota pressão na Fazenda para ter alguma agenda com entregas mais concretas.

O BC falou que isso poderia levar a uma taxa neutra de juros mais elevada...

Exatamente. E importante dizer que o BC também citou o parafiscal: estamos tendo gastos fora do Orçamento. O fato de o BC ter colocado isso também significa uma pressão grande. Ou voltam para os trilhos ou a política monetária vai ter de ser muito mais contracionista para compensar.

Quais as principais medidas parafiscais? Uso de fundos, por exemplo, como mostrou o Estadão?

Fundo social do pré-sal, que começaram a aumentar para o BNDES liberar recursos no Rio Grande do Sul, mas não parou por aí. Fundo Nacional de Ciência e Tecnologia, fundo Nacional de Aviação Civil. O BNDES voltou a colocar dinheiro na indústria naval, mais uma vez. A defesa disso vi até uma entrevista do Nelson Barbosa no Estadão, de que é pequeno, no sentido “não se preocupe, estamos fazendo, mas é pequeno como porcentual do PIB e tamanho do mercado de crédito”. O ponto é que o tamanho atual já é negativo o suficiente para atrapalhar a potência da política monetária e a formação das expectativas. A percepção disso faz preço, a curva de juros fica empinada. Tem um sentimento de déjàvu. A nova matriz macroeconômica começou assim, devagarinho. A direção é ruim, e há um debate sobre a velocidade da piora. E tem outra coisa que ainda não está batendo, mas tem também fiscal expansionista por meio de Estados e municípios.

Como é isso?

O secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, no começo de 2023, colocou em audiência pública o novo ciclo de cooperação federativa. Esse novo ciclo basicamente facilitou a tomada de dívida por parte de Estados e municípios. Baixou a barra para endividamento desses entes, muito parecido com o que o Arno Agostin (secretário do Tesouro no governo Dilma Rousseff) fez lá atrás. Aprovou no segundo semestre de 2023, e já estamos vendo piora nas dívidas dos Estados e municípios. Isso junto do pacote “Juros por Educação” – que depois virou tudo: saúde, segurança, infraestrutura. Perdão de dívida, é outro problema relevante. Estados vão passar a pagar zero de juros reais. Então, a despesa financeira vai virar despesa primária. Pode ter um aumento de PIB por isso. Tudo isso conversa muito com o que a gente viu na nova matriz macroeconômica.

O que o governo precisa fazer para recuperar a credibilidade?

Deveria fazer algo estrutural, mas é difícil imaginar que vão entregar. O pente-fino (nas despesas obrigatórias) está devagar. Está solto por aí, não tem atualizações materiais. Jogaram no ventilador que vão fazer, mas ninguém saber a evolução, e ninguém sabe como está.

Mas o poderiam fazer?

Se fossem fazer, há vários candidatos. Tem reforma administrativa, que já deveria estar madura porque se discute isso desde 2017, desde que o Banco Mundial soltou relatório. Só falta escolher a medida e trabalhar no Congresso. Tem os limites para (gastos com) saúde e educação, que também seriam algo mais estrutural. E uma terceira, menos estrutural, que tem algum valor, que seria fazer fusão de programas sociais, como Lula já fez no seu primeiro mandato. Deveriam, por exemplo, juntar programas e fazer um Bolsa Família 2.0. O Banco Mundial falou em sobreposição de pelo menos 20% nas políticas sociais.

A equipe econômica demonstrou incômodo com as críticas, uma vez que a meta fiscal deve ser cumprida. Por que persiste a reclamação dos investidores?

O governo fez contorcionismo para manter a meta de déficit zero no papel. Frustrou expectativa, ao descontingenciar os R$ 3,8 bilhões. E o bloqueio de R$ 2,1 bilhões foi muito aquém do que todo mundo tinha de projeção. Se fosse pegar a mediana, o que deveria ser feito era algo na casa de R$ 10 bilhões a R$ 15 bilhões – ainda que o secretário Ceron tenha falado que seria abaixo de R$ 5 bilhões. Ele não foi na coletiva explicar. Ele tentou ancorar o mercado para um valor baixo e deu problema.

O resultado primário está deixando de ser referência?

O déficit primário deixou de ser referencia útil para o mercado sobre a direção da política fiscal. Esse “vale tudo” para dizer que está cumprindo a meta, de tirar despesas do regramento fiscal – isso tira a credibilidade da meta de resultado primário (saldo entre receitas e despesas, sem contar os juros da dívida). Muito parecido com a nova matriz econômica que aconteceu lá atrás. Eles começaram a criar deduções da meta, que deixou de ser termômetro útil. Isso está se repetindo.

E o mercado vai olhar para onde?

Vamos ter de olhar outras variáveis, vai dar mais trabalho. Vamos ter de olhar dívida bruta, dívida líquida, esses fundos por fora do Orçamento, que não batem em lugar nenhum, nem na dívida. Está mais difícil acompanhar esses canais de transmissão do fiscal e parafiscal. Isso desancora as expectativas e aumenta O prêmio de risco.

BRASÍLIA – O economista Gabriel de Barros, da ARX Investimentos e ex-diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI), usou o termo “matemágica fiscal” para descrever o último relatório de receitas e despesas divulgado pela equipe econômica – que anunciou a liberação de R$ 1,7 bilhão do Orçamento. A explicação, diz, é que os “números foram torturados” para se entregar um resultado fictício de cumprimento da meta fiscal.

Ele cita o recado dado pelo Banco Central na ata desta terça-feira, 24, quando a autoridade monetária falou em maior “transparência”, e diz que há muitas informações incompletas nas divulgações da Receita Federal e do Tesouro Nacional – tanto pelo lado da despesa quanto pelo lado da receita.

“Há um problema grande de transparência, ainda que o governo venha negando. Há uma ginástica nos números para conseguir manter a meta no papel e, assim, evitar contenções de gastos”, afirmou em entrevista ao Estadão.

Ele avalia que algumas medidas lembram a Nova Matriz Macroeconômica do governo Dilma Rousseff, diz que o indicador de resultado primário está perdendo relevância e que tem ficado cada vez mais difícil acompanhar, de fato, o que está acontecendo com os indicadores das contas públicas. A seguir, os principais trechos da entrevista.

O sr. usou o termo ‘matemágica fiscal’ depois do último relatório bimestral de receitas e despesas. Qual foi a razão?

Os números foram torturados para entregar um cenário fictício de cumprimento da meta – e, por isso, usei esse termo. O governo aproveitou o aumento nas projeções do PIB e da inflação, que ajudam no crescimento da arrecadação, para revisar para baixo as estimativas com o Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), que estavam vexatórias. Eles também contaram com receita extraordinária de dividendos antecipados do BNDES e com receitas incertas da desoneração da folha. Muito difícil ter essa confiança de que o governo vai arrecadar tudo que colocou nessas compensações. É uma ginástica nos números para conseguir manter a meta no papel, com o cumprimento da meta no limite inferior (que permite um déficit de até R$ 28,8 bilhões).

E as despesas?

Mesmo na parte do gasto, o que teve de aumento de Previdência foi muito relacionado a precatórios (dívidas judiciais da União). Não teve revisão para cima de despesas por conta de mais benefícios – continua subestimada essa despesa. E, para fechar com chave de ouro, teve o descontingenciamento de R$ 1,7 bilhão. Eles argumentaram que estão seguindo a lei, mas o TCU já alertou que perseguir o limite inferior da meta não é prudente.

Gabriel Leal de Barros diz que ‘a bola está com o governo’ para recuperar a credibilidade. Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

O Banco Central, na ata do Copom, falou que há preocupação do mercado com a transparência dos números. Onde estão os problemas?

A gente já vem falando sobre a falta de transparência com que o Tesouro e a Receita vêm tratando as contas públicas, principalmente nessa linha de receita. A gente não sabe o quanto efetivamente foi arrecadado em cada uma das medidas que o governo anunciou desde o ano passado. Há um problema grande de transparência, que o governo vinha negando e que, no último relatório bimestral, ficou claro que eles foram obrigados a reconhecer que a receita não estava entrando – principalmente no Carf.

O sr. citou Tesouro e Receita. O que falta na divulgação desses dados?

Há duas opções. O estado da arte seria a Receita, no relatório mensal de arrecadação, dizer o quanto está entrando de grana em cada uma das medidas: Carf, transação tributária, da Receita, da PGFN (Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional), por exemplo. Deveriam fazer uma tabelinha com cada um, bem objetivo, mês a mês. E aí, no relatório bimestral, faz um compilado. Importante citar o Tesouro, porque há medidas que podem não bater na Receita, mas aparecem na métrica do Tesouro. Ele também é responsável por essa transparência.

Pode dar um exemplo?

Os efeitos da MP (medida provisória) 1202, que limitou a compensação de crédito tributário por decisão judicial. Parece que isso está tendo efeito grande na arrecadação, que sobe 9% em termos reais (acima da inflação), e parece que no PIS/Cofins, para jogar para cima. Mas a gente não sabe o quanto aumentou, mês a mês, só por conta dessa MP. Ninguém faz a menor ideia. Aumento do cigarro, que é recente, vai bater agora; não tem transparência, não estão dizendo item por item. O (ministro da Fazenda, Fernando) Haddad tem feito a crítica de que o mercado precisa dar o benefício da dúvida. Mas não dá para cobrar isso se o governo não dá transparência para os números realizados. Como o mercado vai formar expectativa para frente, se para trás ele não sabe?

O que pode ser feito?

A bola está com o governo, que precisa dar transparência. Se é tão bem sucedido, por que não abre os números? Por que precisa da criatividade para classificar os recursos não sacados, de pequenos valores? Se o próprio governo no arcabouço diz que a meta é (responsabilidade de verificação) do Banco Central, que segue metodologia do FMI (Fundo Monetário Internacional)?

Revisar para baixo mais cedo a projeção de receita do Carf teria a consequência de exigir contingenciamentos. Na sua visão, isso não ocorreu por esse motivo?

Sim, é o que eles tentaram não fazer (contingenciar). Por isso, mantiveram superestimadas essas receitas, para postergar esse custo de contingenciar boa parte das despesas discricionárias (não obrigatórias, como investimentos e custeio) e também das emendas. Essa foi a ideia deles em atrasar. Só fizeram isso quando o PIB surpreendeu – e aí jogaram receita recorrente para cima. O PIB foi mais forte, fato, não dá para brigar com número; mas teve contribuição de estoques, que são voláteis, praticamente boi e grão. Não dá para contar que vai ser sempre nesse mesmo ritmo. PIB do segundo semestre deve ser bem diferente do primeiro.

Por quê?

Porque houve muito estímulo, um choque fiscal expansionista concentrado no primeiro semestre e que não vai se repetir. Pagamento de precatórios, ajuda ao Rio Grande do Sul. Antecipação de abono, 13º.

Qual a importância desse alerta do Banco Central?

O Banco Central reconhece com atraso o que o mercado já vinha dizendo, que é que o fiscal está tendo problemas. Isso acontece mesmo com a receita crescendo mais de 9%. Há um problema de gasto, não de arrecadação. Num cenário de desaceleração, os problemas que já existem hoje ficarão mais críticos. O BC vinha postergando incorporar o fiscal no balanço de risco, numa espécie de boa vontade que vinha tendo com a equipe econômica. Mas, dado o tamanho da deterioração, reconheceram. Antes tarde do que nunca. Bota pressão na Fazenda para ter alguma agenda com entregas mais concretas.

O BC falou que isso poderia levar a uma taxa neutra de juros mais elevada...

Exatamente. E importante dizer que o BC também citou o parafiscal: estamos tendo gastos fora do Orçamento. O fato de o BC ter colocado isso também significa uma pressão grande. Ou voltam para os trilhos ou a política monetária vai ter de ser muito mais contracionista para compensar.

Quais as principais medidas parafiscais? Uso de fundos, por exemplo, como mostrou o Estadão?

Fundo social do pré-sal, que começaram a aumentar para o BNDES liberar recursos no Rio Grande do Sul, mas não parou por aí. Fundo Nacional de Ciência e Tecnologia, fundo Nacional de Aviação Civil. O BNDES voltou a colocar dinheiro na indústria naval, mais uma vez. A defesa disso vi até uma entrevista do Nelson Barbosa no Estadão, de que é pequeno, no sentido “não se preocupe, estamos fazendo, mas é pequeno como porcentual do PIB e tamanho do mercado de crédito”. O ponto é que o tamanho atual já é negativo o suficiente para atrapalhar a potência da política monetária e a formação das expectativas. A percepção disso faz preço, a curva de juros fica empinada. Tem um sentimento de déjàvu. A nova matriz macroeconômica começou assim, devagarinho. A direção é ruim, e há um debate sobre a velocidade da piora. E tem outra coisa que ainda não está batendo, mas tem também fiscal expansionista por meio de Estados e municípios.

Como é isso?

O secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, no começo de 2023, colocou em audiência pública o novo ciclo de cooperação federativa. Esse novo ciclo basicamente facilitou a tomada de dívida por parte de Estados e municípios. Baixou a barra para endividamento desses entes, muito parecido com o que o Arno Agostin (secretário do Tesouro no governo Dilma Rousseff) fez lá atrás. Aprovou no segundo semestre de 2023, e já estamos vendo piora nas dívidas dos Estados e municípios. Isso junto do pacote “Juros por Educação” – que depois virou tudo: saúde, segurança, infraestrutura. Perdão de dívida, é outro problema relevante. Estados vão passar a pagar zero de juros reais. Então, a despesa financeira vai virar despesa primária. Pode ter um aumento de PIB por isso. Tudo isso conversa muito com o que a gente viu na nova matriz macroeconômica.

O que o governo precisa fazer para recuperar a credibilidade?

Deveria fazer algo estrutural, mas é difícil imaginar que vão entregar. O pente-fino (nas despesas obrigatórias) está devagar. Está solto por aí, não tem atualizações materiais. Jogaram no ventilador que vão fazer, mas ninguém saber a evolução, e ninguém sabe como está.

Mas o poderiam fazer?

Se fossem fazer, há vários candidatos. Tem reforma administrativa, que já deveria estar madura porque se discute isso desde 2017, desde que o Banco Mundial soltou relatório. Só falta escolher a medida e trabalhar no Congresso. Tem os limites para (gastos com) saúde e educação, que também seriam algo mais estrutural. E uma terceira, menos estrutural, que tem algum valor, que seria fazer fusão de programas sociais, como Lula já fez no seu primeiro mandato. Deveriam, por exemplo, juntar programas e fazer um Bolsa Família 2.0. O Banco Mundial falou em sobreposição de pelo menos 20% nas políticas sociais.

A equipe econômica demonstrou incômodo com as críticas, uma vez que a meta fiscal deve ser cumprida. Por que persiste a reclamação dos investidores?

O governo fez contorcionismo para manter a meta de déficit zero no papel. Frustrou expectativa, ao descontingenciar os R$ 3,8 bilhões. E o bloqueio de R$ 2,1 bilhões foi muito aquém do que todo mundo tinha de projeção. Se fosse pegar a mediana, o que deveria ser feito era algo na casa de R$ 10 bilhões a R$ 15 bilhões – ainda que o secretário Ceron tenha falado que seria abaixo de R$ 5 bilhões. Ele não foi na coletiva explicar. Ele tentou ancorar o mercado para um valor baixo e deu problema.

O resultado primário está deixando de ser referência?

O déficit primário deixou de ser referencia útil para o mercado sobre a direção da política fiscal. Esse “vale tudo” para dizer que está cumprindo a meta, de tirar despesas do regramento fiscal – isso tira a credibilidade da meta de resultado primário (saldo entre receitas e despesas, sem contar os juros da dívida). Muito parecido com a nova matriz econômica que aconteceu lá atrás. Eles começaram a criar deduções da meta, que deixou de ser termômetro útil. Isso está se repetindo.

E o mercado vai olhar para onde?

Vamos ter de olhar outras variáveis, vai dar mais trabalho. Vamos ter de olhar dívida bruta, dívida líquida, esses fundos por fora do Orçamento, que não batem em lugar nenhum, nem na dívida. Está mais difícil acompanhar esses canais de transmissão do fiscal e parafiscal. Isso desancora as expectativas e aumenta O prêmio de risco.

BRASÍLIA – O economista Gabriel de Barros, da ARX Investimentos e ex-diretor da Instituição Fiscal Independente (IFI), usou o termo “matemágica fiscal” para descrever o último relatório de receitas e despesas divulgado pela equipe econômica – que anunciou a liberação de R$ 1,7 bilhão do Orçamento. A explicação, diz, é que os “números foram torturados” para se entregar um resultado fictício de cumprimento da meta fiscal.

Ele cita o recado dado pelo Banco Central na ata desta terça-feira, 24, quando a autoridade monetária falou em maior “transparência”, e diz que há muitas informações incompletas nas divulgações da Receita Federal e do Tesouro Nacional – tanto pelo lado da despesa quanto pelo lado da receita.

“Há um problema grande de transparência, ainda que o governo venha negando. Há uma ginástica nos números para conseguir manter a meta no papel e, assim, evitar contenções de gastos”, afirmou em entrevista ao Estadão.

Ele avalia que algumas medidas lembram a Nova Matriz Macroeconômica do governo Dilma Rousseff, diz que o indicador de resultado primário está perdendo relevância e que tem ficado cada vez mais difícil acompanhar, de fato, o que está acontecendo com os indicadores das contas públicas. A seguir, os principais trechos da entrevista.

O sr. usou o termo ‘matemágica fiscal’ depois do último relatório bimestral de receitas e despesas. Qual foi a razão?

Os números foram torturados para entregar um cenário fictício de cumprimento da meta – e, por isso, usei esse termo. O governo aproveitou o aumento nas projeções do PIB e da inflação, que ajudam no crescimento da arrecadação, para revisar para baixo as estimativas com o Carf (Conselho Administrativo de Recursos Fiscais), que estavam vexatórias. Eles também contaram com receita extraordinária de dividendos antecipados do BNDES e com receitas incertas da desoneração da folha. Muito difícil ter essa confiança de que o governo vai arrecadar tudo que colocou nessas compensações. É uma ginástica nos números para conseguir manter a meta no papel, com o cumprimento da meta no limite inferior (que permite um déficit de até R$ 28,8 bilhões).

E as despesas?

Mesmo na parte do gasto, o que teve de aumento de Previdência foi muito relacionado a precatórios (dívidas judiciais da União). Não teve revisão para cima de despesas por conta de mais benefícios – continua subestimada essa despesa. E, para fechar com chave de ouro, teve o descontingenciamento de R$ 1,7 bilhão. Eles argumentaram que estão seguindo a lei, mas o TCU já alertou que perseguir o limite inferior da meta não é prudente.

Gabriel Leal de Barros diz que ‘a bola está com o governo’ para recuperar a credibilidade. Foto: Marcos Oliveira/Agência Senado

O Banco Central, na ata do Copom, falou que há preocupação do mercado com a transparência dos números. Onde estão os problemas?

A gente já vem falando sobre a falta de transparência com que o Tesouro e a Receita vêm tratando as contas públicas, principalmente nessa linha de receita. A gente não sabe o quanto efetivamente foi arrecadado em cada uma das medidas que o governo anunciou desde o ano passado. Há um problema grande de transparência, que o governo vinha negando e que, no último relatório bimestral, ficou claro que eles foram obrigados a reconhecer que a receita não estava entrando – principalmente no Carf.

O sr. citou Tesouro e Receita. O que falta na divulgação desses dados?

Há duas opções. O estado da arte seria a Receita, no relatório mensal de arrecadação, dizer o quanto está entrando de grana em cada uma das medidas: Carf, transação tributária, da Receita, da PGFN (Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional), por exemplo. Deveriam fazer uma tabelinha com cada um, bem objetivo, mês a mês. E aí, no relatório bimestral, faz um compilado. Importante citar o Tesouro, porque há medidas que podem não bater na Receita, mas aparecem na métrica do Tesouro. Ele também é responsável por essa transparência.

Pode dar um exemplo?

Os efeitos da MP (medida provisória) 1202, que limitou a compensação de crédito tributário por decisão judicial. Parece que isso está tendo efeito grande na arrecadação, que sobe 9% em termos reais (acima da inflação), e parece que no PIS/Cofins, para jogar para cima. Mas a gente não sabe o quanto aumentou, mês a mês, só por conta dessa MP. Ninguém faz a menor ideia. Aumento do cigarro, que é recente, vai bater agora; não tem transparência, não estão dizendo item por item. O (ministro da Fazenda, Fernando) Haddad tem feito a crítica de que o mercado precisa dar o benefício da dúvida. Mas não dá para cobrar isso se o governo não dá transparência para os números realizados. Como o mercado vai formar expectativa para frente, se para trás ele não sabe?

O que pode ser feito?

A bola está com o governo, que precisa dar transparência. Se é tão bem sucedido, por que não abre os números? Por que precisa da criatividade para classificar os recursos não sacados, de pequenos valores? Se o próprio governo no arcabouço diz que a meta é (responsabilidade de verificação) do Banco Central, que segue metodologia do FMI (Fundo Monetário Internacional)?

Revisar para baixo mais cedo a projeção de receita do Carf teria a consequência de exigir contingenciamentos. Na sua visão, isso não ocorreu por esse motivo?

Sim, é o que eles tentaram não fazer (contingenciar). Por isso, mantiveram superestimadas essas receitas, para postergar esse custo de contingenciar boa parte das despesas discricionárias (não obrigatórias, como investimentos e custeio) e também das emendas. Essa foi a ideia deles em atrasar. Só fizeram isso quando o PIB surpreendeu – e aí jogaram receita recorrente para cima. O PIB foi mais forte, fato, não dá para brigar com número; mas teve contribuição de estoques, que são voláteis, praticamente boi e grão. Não dá para contar que vai ser sempre nesse mesmo ritmo. PIB do segundo semestre deve ser bem diferente do primeiro.

Por quê?

Porque houve muito estímulo, um choque fiscal expansionista concentrado no primeiro semestre e que não vai se repetir. Pagamento de precatórios, ajuda ao Rio Grande do Sul. Antecipação de abono, 13º.

Qual a importância desse alerta do Banco Central?

O Banco Central reconhece com atraso o que o mercado já vinha dizendo, que é que o fiscal está tendo problemas. Isso acontece mesmo com a receita crescendo mais de 9%. Há um problema de gasto, não de arrecadação. Num cenário de desaceleração, os problemas que já existem hoje ficarão mais críticos. O BC vinha postergando incorporar o fiscal no balanço de risco, numa espécie de boa vontade que vinha tendo com a equipe econômica. Mas, dado o tamanho da deterioração, reconheceram. Antes tarde do que nunca. Bota pressão na Fazenda para ter alguma agenda com entregas mais concretas.

O BC falou que isso poderia levar a uma taxa neutra de juros mais elevada...

Exatamente. E importante dizer que o BC também citou o parafiscal: estamos tendo gastos fora do Orçamento. O fato de o BC ter colocado isso também significa uma pressão grande. Ou voltam para os trilhos ou a política monetária vai ter de ser muito mais contracionista para compensar.

Quais as principais medidas parafiscais? Uso de fundos, por exemplo, como mostrou o Estadão?

Fundo social do pré-sal, que começaram a aumentar para o BNDES liberar recursos no Rio Grande do Sul, mas não parou por aí. Fundo Nacional de Ciência e Tecnologia, fundo Nacional de Aviação Civil. O BNDES voltou a colocar dinheiro na indústria naval, mais uma vez. A defesa disso vi até uma entrevista do Nelson Barbosa no Estadão, de que é pequeno, no sentido “não se preocupe, estamos fazendo, mas é pequeno como porcentual do PIB e tamanho do mercado de crédito”. O ponto é que o tamanho atual já é negativo o suficiente para atrapalhar a potência da política monetária e a formação das expectativas. A percepção disso faz preço, a curva de juros fica empinada. Tem um sentimento de déjàvu. A nova matriz macroeconômica começou assim, devagarinho. A direção é ruim, e há um debate sobre a velocidade da piora. E tem outra coisa que ainda não está batendo, mas tem também fiscal expansionista por meio de Estados e municípios.

Como é isso?

O secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, no começo de 2023, colocou em audiência pública o novo ciclo de cooperação federativa. Esse novo ciclo basicamente facilitou a tomada de dívida por parte de Estados e municípios. Baixou a barra para endividamento desses entes, muito parecido com o que o Arno Agostin (secretário do Tesouro no governo Dilma Rousseff) fez lá atrás. Aprovou no segundo semestre de 2023, e já estamos vendo piora nas dívidas dos Estados e municípios. Isso junto do pacote “Juros por Educação” – que depois virou tudo: saúde, segurança, infraestrutura. Perdão de dívida, é outro problema relevante. Estados vão passar a pagar zero de juros reais. Então, a despesa financeira vai virar despesa primária. Pode ter um aumento de PIB por isso. Tudo isso conversa muito com o que a gente viu na nova matriz macroeconômica.

O que o governo precisa fazer para recuperar a credibilidade?

Deveria fazer algo estrutural, mas é difícil imaginar que vão entregar. O pente-fino (nas despesas obrigatórias) está devagar. Está solto por aí, não tem atualizações materiais. Jogaram no ventilador que vão fazer, mas ninguém saber a evolução, e ninguém sabe como está.

Mas o poderiam fazer?

Se fossem fazer, há vários candidatos. Tem reforma administrativa, que já deveria estar madura porque se discute isso desde 2017, desde que o Banco Mundial soltou relatório. Só falta escolher a medida e trabalhar no Congresso. Tem os limites para (gastos com) saúde e educação, que também seriam algo mais estrutural. E uma terceira, menos estrutural, que tem algum valor, que seria fazer fusão de programas sociais, como Lula já fez no seu primeiro mandato. Deveriam, por exemplo, juntar programas e fazer um Bolsa Família 2.0. O Banco Mundial falou em sobreposição de pelo menos 20% nas políticas sociais.

A equipe econômica demonstrou incômodo com as críticas, uma vez que a meta fiscal deve ser cumprida. Por que persiste a reclamação dos investidores?

O governo fez contorcionismo para manter a meta de déficit zero no papel. Frustrou expectativa, ao descontingenciar os R$ 3,8 bilhões. E o bloqueio de R$ 2,1 bilhões foi muito aquém do que todo mundo tinha de projeção. Se fosse pegar a mediana, o que deveria ser feito era algo na casa de R$ 10 bilhões a R$ 15 bilhões – ainda que o secretário Ceron tenha falado que seria abaixo de R$ 5 bilhões. Ele não foi na coletiva explicar. Ele tentou ancorar o mercado para um valor baixo e deu problema.

O resultado primário está deixando de ser referência?

O déficit primário deixou de ser referencia útil para o mercado sobre a direção da política fiscal. Esse “vale tudo” para dizer que está cumprindo a meta, de tirar despesas do regramento fiscal – isso tira a credibilidade da meta de resultado primário (saldo entre receitas e despesas, sem contar os juros da dívida). Muito parecido com a nova matriz econômica que aconteceu lá atrás. Eles começaram a criar deduções da meta, que deixou de ser termômetro útil. Isso está se repetindo.

E o mercado vai olhar para onde?

Vamos ter de olhar outras variáveis, vai dar mais trabalho. Vamos ter de olhar dívida bruta, dívida líquida, esses fundos por fora do Orçamento, que não batem em lugar nenhum, nem na dívida. Está mais difícil acompanhar esses canais de transmissão do fiscal e parafiscal. Isso desancora as expectativas e aumenta O prêmio de risco.

Entrevista por Alvaro Gribel

Repórter especial e colunista do Estadão em Brasília. Há mais de 15 anos acompanha os principais assuntos macroeconômicos no Brasil e no mundo. Foi colunista e coordenador de economia no Globo.

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