Somente apoiaremos soluções com limites ao parcelado das compras, diz presidente da Febraban


Isaac Sidney afirma que BC terá de arbitrar solução para regulação das operações do rotativo do cartão de crédito e avalia que perpetuação do modelo atual do parcelado sem juros é ‘bomba-relógio’

Por Adriana Fernandes e Bianca Lima
Atualização:
Foto: Celso Doni/Febraban
Entrevista comIsaac Sidneypresidente da Febraban

BRASÍLIA – O presidente da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), Isaac Sidney, afirma que o Banco Central precisará arbitrar a regulação das operações do rotativo do cartão de crédito e do limite ao parcelado sem juros, após projeto de lei aprovado pelo Congresso que dá um prazo de 90 dias para uma autorregulação do setor.

Em entrevista ao Estadão, Isaac avaliou que a perpetuação do modelo atual de negócio não contará com o apoio da Febraban e que os bancos continuarão resistindo. “Somente emprestaremos nosso apoio por soluções que passem pela criação de limites ao parcelado das compras. Parcelado sim, mas uma alavanca temerária para o superendividamento, isso não”, afirmou.

Ele alertou que o problema é um bomba-relógio para o crédito e a economia do Brasil: “Será que não dá para perceber que isso pode se transformar numa bomba-relógio e que todos iremos perder?”, questiona.

continua após a publicidade
Isaac Sidney. Foto: Celso Doni/Febraban

Em reunião nesta segunda-feira, 16, com o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, e quase toda a diretoria, representantes de todos os elos da cadeia de cartão de crédito começarão a buscar um acordo para a regulação do mercado.

O prazo do projeto de lei aprovado pelo Congresso termina no início de janeiro. Se não for apresentada uma proposta, será aplicado um teto que limita a dívida a 100% do montante original. Ou seja: o débito pode, no máximo, dobrar de tamanho. O tema se transformou numa disputa entre os principais segmentos que participam desse negócio no Brasil.

continua após a publicidade

“Estamos cientes e preparados para cortar na própria carne, mas precisaremos atacar as duas pontas da equação: tanto na contenção de juros do rotativo, o que atingiria o lado emissor, como na limitação do parcelado sem juros”, acenou. Segundo ele, se cada segmento da indústria de cartões apenas pensar no seu umbigo, sem ceder em nada, daqui a pouco o problema se agrava.

Na entrevista, o presidente da Febraban fala dos desafios da nova fase do Desenrola (programa de renegociação de dívidas do governo federal), do mercado de crédito e da importância do projeto da nova lei de falências que o governo vai enviar ao Congresso, como o antecipou o Estadão. A seguir, os principais trechos da entrevista.

continua após a publicidade

Como o sr. avalia projeto aprovado pelo Congresso que trata de mudanças no crédito rotativo do cartão?

O texto original era muito preocupante e potencialmente danoso, porque simplesmente fixava um teto artificial de 8% ao mês, sem levar em conta a complexidade da indústria do cartão e peculiaridades que só existem no Brasil - onde 75% dos recebíveis não pagam um centavo de juros para os bancos emissores. A versão aprovada foi aprimorada e deve ser vista como uma oportunidade importante para aprofundarmos as causas do elevado spread bancário (diferença entre as taxas cobradas pelos bancos e as que eles pagam na captação de recursos) que temos aqui. Conseguimos convergir em uma redação que dá tempo para debatermos uma solução estrutural necessária.

E daqui para frente?

continua após a publicidade

Caso não haja evolução, a lei prevê uma contenção dos juros cobrados, que não poderão superar o valor original da dívida. Mas, se ao final, a solução for apenas a de fixar um teto nos juros do rotativo, isso, além de não resolver a causa-raiz, vai manter os juros altos e pode limitar a oferta do produto, prejudicando o comércio e quem precisa de crédito para consumir.

O prazo de 90 dias para a regulação é tempo suficiente para se chegar a uma solução consensual?

continua após a publicidade

Deveria ser suficiente, visto que este debate não começa agora. O BC precisará arbitrar uma solução, dado seu papel de regulador do crédito. Apesar de o tema ser muito complexo, estamos confiantes de que a indústria de cartões, juntamente com o regulador e o governo, terá sucesso em promover evoluções materiais na dinâmica do cartão de crédito.

Com tantas posições divergentes, tudo indica, então, que caberá ao BC fazer a regulamentação. O que acha disso?

Nunca vi o BC agir como mero expectador de temas sensíveis sobre o mercado de crédito. A proposta de autorregulação deve ser intermediada pelo BC. Ele será fundamental na coordenação e na mediação dos interesses diversos que envolvem toda a cadeia de cartões, que é bem complexa e cheia de elos com modelos de negócios não só distintos, mas conflitantes. Não haverá caminho fácil que resolva uma questão estrutural importante. O BC tem mais do que condições, tem toda a autoridade legal, técnica e regulatória para arbitrar esse caminho. Nós também, enquanto indústria, deveríamos ter uma visão de longo prazo. Mas, para isso, vamos ter de deixar um pouco de lado a autopreservação de uma dinâmica que tem se mostrado temerária para a sustentabilidade do consumo e para a saúde financeira do consumidor. Se cada segmento da indústria de cartões apenas pensar no seu umbigo, sem ceder em nada, daqui a pouco tempo estaremos, novamente, buscando atacar um problema que só tende a se agravar.

continua após a publicidade

É preciso termos a coragem e a transparência para dizer que o parcelado sem juros não é sem juros. De sem juros nada tem, pois os juros estão embutidos no preço do produto.

A Febraban já disse que os bancos não querem o fim do parcelado sem juros no cartão de crédito, mas já sinalizou que não dá para manter o modelo da forma como está. Afinal, o que a Febraban defende em relação ao parcelado sem juros? Esse modelo é viável ainda?

Jamais advogamos o fim do parcelado sem juros e lanço aqui um desafio público para que alguém demonstre quando e como os bancos defenderam acabar com o parcelamento das compras no cartão. Os bancos criaram o parcelado da casa própria, do crédito rural, do financiamento de veículo, do crédito consignado. Parcelar crédito faz parte do nosso dia a dia. Aliás, tanto não defendemos o fim do parcelado sem juros que o CONAR (Conselho Nacional Auto Regulamentação Publicitária) tirou imediatamente do ar a publicidade que atribuía aos bancos o fim do parcelado, por concluir que possuía conteúdo flagrantemente abusivo, enganoso e falso.

Mas qual a avaliação da Febraban sobre o modelo do parcelado sem juros e o que pode mudar?

Somente emprestaremos o nosso apoio por soluções estruturais que passem pela criação de limites no parcelado das compras. Parcelado sem juros sim, mas uma alavanca temerária para o superendividamento, isso não. Não dá pra aceitar apenas teto de juros. É preciso termos a coragem e a transparência para dizer que o parcelado sem juros não é sem juros. De sem juros nada tem, pois os juros estão embutidos no preço do produto. O modelo atual gerou uma distorção e um desequilíbrio, no qual apenas um elo da cadeia tem ganhos - no caso, as maquininhas. E o comércio tem um custo grande para antecipar os recebíveis das vendas parceladas, pagando taxas de descontos altas e, no caso das maquininhas não vinculadas a bancos, chegam a cobrar de 70% a 130% ao ano de juros, correndo risco muito pequeno dos bancos emissores. A grande pergunta que tem de ser respondida é quem fica com as receitas dos juros embutidos no preço da mercadoria, já que o consumidor que parcela suas compras e paga em dia a fatura não paga um centavo de juros para o banco que emitiu o cartão.

O sr. está dizendo que os bancos não se beneficiam nessa cadeia, mesmo cobrando juros do rotativo, que anualizados chegariam a 450% ao ano?

Os bancos não cobram juros de 400% ao ano porque ninguém pode ficar mais de 30 dias no rotativo do cartão. Ou seja, ninguém fica 12 meses pagando esse patamar de juros. Os juros embutidos nas compras ditas “sem juros” estão em algum lugar e é certo que não ficam no caixa dos bancos emissores. Certo é que o comércio acaba embutindo no preço da mercadoria juros que o consumidor não enxerga na hora da compra, porque tem elevado custo financeiro pelo desconto para antecipar o recebível junto à maquininha.

Qual é a proposta dos bancos para a autorregulação do cartão de crédito e assim atender o que determina a lei aprovada pelo Congresso?

O fundamental é que busquemos um reequilíbrio da dinâmica do cartão, para que os juros fiquem onde o risco está. Como disse antes, o risco da inadimplência da fatura fica todo no banco emissor, mas os juros da antecipação dos recebíveis vão para as maquininhas. Por isso, defendemos o reequilíbrio econômico-financeiro dessa mecânica. Estamos à vontade para um debate técnico e colaborativo, porque temos 70% da emissão e das maquininhas. Estamos cientes e preparados para cortar na própria carne, mas precisaremos atacar as duas pontas da equação, tanto na contenção de juros do rotativo, o que atingiria o lado emissor, como na limitação do parcelado sem juros, o que afetaria o lado da adquirência. Isso seria o certo a fazer. Do contrário, vamos apenas varrer a poeira para debaixo do tapete.

Mas, de concreto, o que pode ser mudado?

Temos de perseguir um modelo sustentável de financiamento do consumo para o cliente, que precisa ter alternativas que evitem a ciranda financeira do empilhamento do parcelado das compras. O cartão se tornou um meio de pagamento relevante para o consumo, de um lado; mas, de outro, com as compras parceladas de forma ilimitada, passou a ser um pesadelo, levando o consumidor ao superendividamento. Esse pesadelo parece não acabar, porque o consumidor, com vários cartões nas mãos, é induzido a parcelar suas compras em prazos cada vez mais longos. Será que não dá para perceber que isso pode se transformar numa bomba-relógio e que todos iremos perder?

Os maiores adquirentes do Brasil estão na Febraban. Os grandes bancos também não ganham com esse modelo? Por que só jogar a responsabilidade sobre as maquininhas independentes?

Há uma diferença muito grande dos grandes bancos emissores para os novos entrantes que atuam na indústria de cartão e essa diferença é marcante. Nossa visão e nosso horizonte são de longo prazo, e não com resultados de balanço do próximo trimestre. O crédito não é monopólio dos bancos e estimulamos que mais e mais players possam conceder crédito, mas isso reclama um modelo de finanças sustentáveis. Temos hoje um grande desequilíbrio, em que um pedaço da cadeia se remunera com o risco do banco emissor. Isso gera uma enorme distorção. Algumas maquininhas independentes, que já se tornaram gente grande, obtêm a maior parte de suas receitas cobrando juros do comércio e correndo o risco apenas do emissor, sem qualquer risco da inadimplência da fatura, sem alocar capital, apropriando-se da receita de juros que o consumidor paga com os juros embutidos no preço da mercadoria. Isso precisa se reequilibrar.

Mas os bancos recebem uma taxa de intercâmbio das maquininhas. Eles também são remunerados.

Nosso modelo não foi criado em laboratório para maximizar valor para os acionistas. Não falamos no campo das hipóteses. O intercâmbio não remunera o risco. Qualquer outra conclusão diferente dessa é narrativa para atingir ainda mais a imagem dos bancos. Isso é uma teoria que não se sustenta. Na prática, a partir da terceira ou quarta parcela, o intercambio não é suficiente, pois a operação se torna deficitária para o banco emissor. Além do risco de crédito, que o intercâmbio não cobre, tem custo de capital em que apenas os bancos emissores incorrem com a alavancagem do consumidor. O mundo dos bancos é real; não é um mundo acadêmico de teses. O intercâmbio tem regras das bandeiras, que não servem para cobrir risco ou para remuneração de juros, e sim para cobrir custos e tipos diferentes de cartão, de benefícios. Essa é a verdade.

Qual é o nível de spread que as maquininhas cobram com o risco dos bancos?

Tenho curiosidade em saber. O MDR (tarifa administrativa) cobrado pelas maquininhas é alto, tanto mais porque o risco que correm é de o banco emissor quebrar, e o risco disso é quase zero. Além disso, elas não assumem ou sequer compartilham o risco da inadimplência da fatura do cartão; mas, por outro lado, cobram taxas de descontos do varejo muitíssimo superior ao DI (custo médio de empréstimos realizados entre bancos, próximo à Selic). Algumas dessas empresas, usando o limite do cartão de crédito do cliente, chegam a parcelar boletos bancários, ou seja, fazem receita em cima de um risco de crédito que não é delas. O chassi desse modelo não é nada sustentável, é oco. A antecipação para o giro da economia é saudável, mas ancorar um modelo de negócio na antecipação de compras parceladas em 10, 12 ou até 24 vezes é tornar o comércio refém e o consumidor uma vítima do superendividamento.

O que está em jogo nessa polêmica são os lucros e prejuízos de grandes empresas da indústria financeira? Ainda não se falou sobre como reduzir os juros para os consumidores, que é o elo fraco dessa cadeia.

Infelizmente, o consumidor não está sendo priorizado nesse debate. Isso porque há uma teimosia perigosa em se manter uma dinâmica do cartão no Brasil que vem se consolidando num círculo vicioso com elevado risco de o consumidor de baixa renda experimentar o superendividamento. E o único beneficiário desse modelo não é o consumidor, mas o acionista de alguns elos da indústria. A perpetuação desse modelo de negócio não contará com o apoio da Febraban. Nós iremos continuar resistindo. Não tem ninguém, além dos acionistas, que possa ser favorecido com esse modelo.

Qual o risco de redução na concessão desse crédito devido a essa nova limitação prevista na lei?

Sempre haverá risco de redução na concessão de crédito se, ao final, tivermos ajustes somente em uma parte da equação - ou seja, somente nas taxas de juros do rotativo, sem revisões nos planos de parcelamentos das compras. Se isso ocorrer, a inadimplência permanecerá nos mesmos patamares e, neste caso, o ajuste que restaria seria na concessão de créditos novos ou nos limites já estabelecidos. Nunca negamos que o spread bancário no Brasil é elevado, mas o caminho do tabelamento de juros é um atalho que não resolve.

Qual a expectativa para a segunda fase de renegociações do Desenrola?

O Desenrola até aqui tem sido um grande sucesso e os bancos estão muito envolvidos, até porque temos todo o interesse em reduzir os patamares de inadimplência dos consumidores, o que ajuda a diminuir o custo e o risco do crédito. Mas, diferente da primeira fase, em que o programa do governo se concentrou nas dívidas negativadas do setor bancário, agora poderão ser renegociadas dívidas de diversos setores da economia, como, por exemplo, de serviços de água, luz, telefone, gás e lojas de varejo. Isso envolve números superlativos de credores, devedores e volumes bilionários de dívidas a serem repactuadas, o que torna o programa bem mais complexo e muito desafiador.

Por quê?

São centenas de empresas credoras que participam do Desenrola nesta fase, com cerca de 40 milhões de pessoas elegíveis ao programa - sendo que, deste total, aproximadamente 20 milhões de fato devem renegociar ou até liquidar à vista as suas dívidas negativadas. Esperamos que a procura seja maior nas primeiras semanas, estabilizando depois, mas já temos um bom atrativo: os descontos que as empresas credoras ofereceram são bem interessantes, chegando a mais de 80% e baixando o valor corrigido das dívidas de R$ 150 bilhões para R$ 25 bilhões.

Qual impacto o programa pode ter em novas concessões de crédito, seja por conta das pessoas que limparam o nome, seja via estímulo regulatório que ampliou espaço no balanço dos bancos e no consumo?

Já vimos, na primeira fase do Desenrola, que o brasileiro não gosta de dívida e que está querendo negociar seus débitos e limpar seu nome. Isso é muito bom. Lembro que os dados, apenas nas dívidas bancárias, são expressivos: foram R$ 16 bilhões em volume financeiro negociado, mais de 2,2 milhões de contratos repactuados e quase 2 milhões de clientes atendidos. Foram 7 milhões de clientes com CPF desnegativados. Isso dá alívio financeiro para os devedores, reverte provisões dos bancos e, com o incentivo regulatório que tiveram, abre espaço nos balanços dos bancos e potencializa o apetite na concessão de crédito mais barato. Na fase 2, caso as nossas projeções se confirmem, é possível antever um impacto igualmente positivo na retomada da economia e na concessão de crédito já neste ano, se intensificando em 2024. Ainda que alguns clientes que renegociem as suas dívidas não contratem crédito no curto prazo, podemos intuir que existirá um aumento na concessão de forma geral, num ambiente de crédito melhor.

Como evitar que esse cenário de endividamento, focado na população mais pobre, volte a acontecer?

Aqui tem um ponto muito relevante porque ninguém, incluindo o governo, credores ou devedores, pode ficar à espera de um Desenrola de tempos em tempos. Isso seria perigoso e serviria como estímulo à inadimplência.

Com aprovação da lei do novo marco de garantias, qual deve ser o impacto no spread do crédito imobiliário e de veículos?

Ao permitir que a mesma garantia imobiliária possa alcançar mais de um empréstimo e, também, ao permitir a busca e apreensão extrajudicial de veículos, não há como isso não impactar positivamente no spread bancário dessas linhas de crédito. Temos de entender que o contexto brasileiro para garantias caminhava na contramão do resto do mundo e do bom senso. Andamos muito para trás até aqui e o mercado de crédito no Brasil está muito abaixo do potencial que tem, quando nos comparamos com outros países. A inadimplência é o principal componente do spread bancário no Brasil.

Como o projeto aprovado pode mudar isso?

O projeto de lei aprovado traz uma grande inovação que é a de permitir a alienação extrajudicial de veículos, que acreditamos poderá ser um marco no segmento de financiamento a veículos. Isso é uma mudança importante de cenário e no mercado de crédito, com bom potencial de redução das taxas e ampliação dos financiamentos de veículos. No segmento imobiliário, o PL também trouxe inovações relevantes, mas que devem ter impacto mais a médio prazo, até porque são de implementação mais complexa e demorada. No caso de reformas microeconômicas como essas, precisamos ter paciência e persistência, pois os resultados demoram, mas sempre chegam. Não tenho dúvida de que os spreads vão recuar, mas isso demanda tempo e, claro, que sejam mantidas as demais condições macroeconômicas. Se fazemos uma reforma da importância dessa, mas não preservamos o equilíbrio fiscal, a inflação e os juros vão subir e, com isso, os custos dos empréstimos também.

O governo fará uma nova lei de falências e adotará medidas para recuperação de créditos sem garantias. O que esperar do ponto de vista do credor?

Está mais do que na hora de reformarmos a lei de falências. Com a lei atual, tivemos avanços importantes no processo de recuperação judicial, e agora precisamos também avançar na falência. Processos aqui são morosos, burocráticos e ao final não se recupera praticamente nada. Dados compilados recentemente no Estado de São Paulo mostram isso. Apenas quase 25% dos processos com falência decretada tiveram avaliação e, mesmo assim, 98% dos bens avaliados são coisas móveis. A proporção de vendas com base no último leilão foi de 40%. A taxa de recuperação dos ativos foi somente de 12% e a taxa de recuperação da dívida, de 6,1%. É muito pouco isso. Uma melhor recuperação de créditos na falência melhora a posição dos credores, incluindo os bancos, fortalece sua base de capital, mas também tem outros efeitos, já que a melhora do ambiente de crédito, com maior segurança jurídica, aumenta o apetite das instituições financeiras para concederem crédito.

O que esperar da trajetória da Selic e do volume de concessão de crédito nos próximos meses?

A expectativa que temos é de expansão de algo próximo a 8% para a carteira total em 2023, número que pode ser considerado positivo, especialmente diante do cenário bem adverso visto no crédito empresarial no início do ano. Para 2024, esperamos crescimento também perto de 8%, pouco menos que o BC, que estima alta ainda maior, de 8,5%. Mas tem um dado interessante que pode ajudar a manter o mercado de crédito aquecido: a expansão nominal do crédito somada à desaceleração da inflação sugere um crescimento real (acima da inflação) mais vigoroso do crédito no próximo ano. Sobre a Selic, a grande questão é a taxa terminal e o quanto o cenário global poderá influenciar no ritmo da queda. Avaliamos que o Copom deve seguir reduzindo a taxa em 0,50 ponto porcentual nas próximas reuniões, encerrando o ano em 11,75% ao ano. O processo de flexibilização continua em 2024, mas o patamar da taxa terminal ainda é uma boa dúvida. A Pesquisa da Febraban com os bancos aponta que a maior parte dos economistas ficou dividida entre uma Selic de 9% ou acima desse patamar ao final do ciclo, enquanto uma minoria acredita que a Selic vá para abaixo de 9% . Estou mais alinhado à maioria.

BRASÍLIA – O presidente da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), Isaac Sidney, afirma que o Banco Central precisará arbitrar a regulação das operações do rotativo do cartão de crédito e do limite ao parcelado sem juros, após projeto de lei aprovado pelo Congresso que dá um prazo de 90 dias para uma autorregulação do setor.

Em entrevista ao Estadão, Isaac avaliou que a perpetuação do modelo atual de negócio não contará com o apoio da Febraban e que os bancos continuarão resistindo. “Somente emprestaremos nosso apoio por soluções que passem pela criação de limites ao parcelado das compras. Parcelado sim, mas uma alavanca temerária para o superendividamento, isso não”, afirmou.

Ele alertou que o problema é um bomba-relógio para o crédito e a economia do Brasil: “Será que não dá para perceber que isso pode se transformar numa bomba-relógio e que todos iremos perder?”, questiona.

Isaac Sidney. Foto: Celso Doni/Febraban

Em reunião nesta segunda-feira, 16, com o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, e quase toda a diretoria, representantes de todos os elos da cadeia de cartão de crédito começarão a buscar um acordo para a regulação do mercado.

O prazo do projeto de lei aprovado pelo Congresso termina no início de janeiro. Se não for apresentada uma proposta, será aplicado um teto que limita a dívida a 100% do montante original. Ou seja: o débito pode, no máximo, dobrar de tamanho. O tema se transformou numa disputa entre os principais segmentos que participam desse negócio no Brasil.

“Estamos cientes e preparados para cortar na própria carne, mas precisaremos atacar as duas pontas da equação: tanto na contenção de juros do rotativo, o que atingiria o lado emissor, como na limitação do parcelado sem juros”, acenou. Segundo ele, se cada segmento da indústria de cartões apenas pensar no seu umbigo, sem ceder em nada, daqui a pouco o problema se agrava.

Na entrevista, o presidente da Febraban fala dos desafios da nova fase do Desenrola (programa de renegociação de dívidas do governo federal), do mercado de crédito e da importância do projeto da nova lei de falências que o governo vai enviar ao Congresso, como o antecipou o Estadão. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Como o sr. avalia projeto aprovado pelo Congresso que trata de mudanças no crédito rotativo do cartão?

O texto original era muito preocupante e potencialmente danoso, porque simplesmente fixava um teto artificial de 8% ao mês, sem levar em conta a complexidade da indústria do cartão e peculiaridades que só existem no Brasil - onde 75% dos recebíveis não pagam um centavo de juros para os bancos emissores. A versão aprovada foi aprimorada e deve ser vista como uma oportunidade importante para aprofundarmos as causas do elevado spread bancário (diferença entre as taxas cobradas pelos bancos e as que eles pagam na captação de recursos) que temos aqui. Conseguimos convergir em uma redação que dá tempo para debatermos uma solução estrutural necessária.

E daqui para frente?

Caso não haja evolução, a lei prevê uma contenção dos juros cobrados, que não poderão superar o valor original da dívida. Mas, se ao final, a solução for apenas a de fixar um teto nos juros do rotativo, isso, além de não resolver a causa-raiz, vai manter os juros altos e pode limitar a oferta do produto, prejudicando o comércio e quem precisa de crédito para consumir.

O prazo de 90 dias para a regulação é tempo suficiente para se chegar a uma solução consensual?

Deveria ser suficiente, visto que este debate não começa agora. O BC precisará arbitrar uma solução, dado seu papel de regulador do crédito. Apesar de o tema ser muito complexo, estamos confiantes de que a indústria de cartões, juntamente com o regulador e o governo, terá sucesso em promover evoluções materiais na dinâmica do cartão de crédito.

Com tantas posições divergentes, tudo indica, então, que caberá ao BC fazer a regulamentação. O que acha disso?

Nunca vi o BC agir como mero expectador de temas sensíveis sobre o mercado de crédito. A proposta de autorregulação deve ser intermediada pelo BC. Ele será fundamental na coordenação e na mediação dos interesses diversos que envolvem toda a cadeia de cartões, que é bem complexa e cheia de elos com modelos de negócios não só distintos, mas conflitantes. Não haverá caminho fácil que resolva uma questão estrutural importante. O BC tem mais do que condições, tem toda a autoridade legal, técnica e regulatória para arbitrar esse caminho. Nós também, enquanto indústria, deveríamos ter uma visão de longo prazo. Mas, para isso, vamos ter de deixar um pouco de lado a autopreservação de uma dinâmica que tem se mostrado temerária para a sustentabilidade do consumo e para a saúde financeira do consumidor. Se cada segmento da indústria de cartões apenas pensar no seu umbigo, sem ceder em nada, daqui a pouco tempo estaremos, novamente, buscando atacar um problema que só tende a se agravar.


É preciso termos a coragem e a transparência para dizer que o parcelado sem juros não é sem juros. De sem juros nada tem, pois os juros estão embutidos no preço do produto.

A Febraban já disse que os bancos não querem o fim do parcelado sem juros no cartão de crédito, mas já sinalizou que não dá para manter o modelo da forma como está. Afinal, o que a Febraban defende em relação ao parcelado sem juros? Esse modelo é viável ainda?

Jamais advogamos o fim do parcelado sem juros e lanço aqui um desafio público para que alguém demonstre quando e como os bancos defenderam acabar com o parcelamento das compras no cartão. Os bancos criaram o parcelado da casa própria, do crédito rural, do financiamento de veículo, do crédito consignado. Parcelar crédito faz parte do nosso dia a dia. Aliás, tanto não defendemos o fim do parcelado sem juros que o CONAR (Conselho Nacional Auto Regulamentação Publicitária) tirou imediatamente do ar a publicidade que atribuía aos bancos o fim do parcelado, por concluir que possuía conteúdo flagrantemente abusivo, enganoso e falso.

Mas qual a avaliação da Febraban sobre o modelo do parcelado sem juros e o que pode mudar?

Somente emprestaremos o nosso apoio por soluções estruturais que passem pela criação de limites no parcelado das compras. Parcelado sem juros sim, mas uma alavanca temerária para o superendividamento, isso não. Não dá pra aceitar apenas teto de juros. É preciso termos a coragem e a transparência para dizer que o parcelado sem juros não é sem juros. De sem juros nada tem, pois os juros estão embutidos no preço do produto. O modelo atual gerou uma distorção e um desequilíbrio, no qual apenas um elo da cadeia tem ganhos - no caso, as maquininhas. E o comércio tem um custo grande para antecipar os recebíveis das vendas parceladas, pagando taxas de descontos altas e, no caso das maquininhas não vinculadas a bancos, chegam a cobrar de 70% a 130% ao ano de juros, correndo risco muito pequeno dos bancos emissores. A grande pergunta que tem de ser respondida é quem fica com as receitas dos juros embutidos no preço da mercadoria, já que o consumidor que parcela suas compras e paga em dia a fatura não paga um centavo de juros para o banco que emitiu o cartão.

O sr. está dizendo que os bancos não se beneficiam nessa cadeia, mesmo cobrando juros do rotativo, que anualizados chegariam a 450% ao ano?

Os bancos não cobram juros de 400% ao ano porque ninguém pode ficar mais de 30 dias no rotativo do cartão. Ou seja, ninguém fica 12 meses pagando esse patamar de juros. Os juros embutidos nas compras ditas “sem juros” estão em algum lugar e é certo que não ficam no caixa dos bancos emissores. Certo é que o comércio acaba embutindo no preço da mercadoria juros que o consumidor não enxerga na hora da compra, porque tem elevado custo financeiro pelo desconto para antecipar o recebível junto à maquininha.

Qual é a proposta dos bancos para a autorregulação do cartão de crédito e assim atender o que determina a lei aprovada pelo Congresso?

O fundamental é que busquemos um reequilíbrio da dinâmica do cartão, para que os juros fiquem onde o risco está. Como disse antes, o risco da inadimplência da fatura fica todo no banco emissor, mas os juros da antecipação dos recebíveis vão para as maquininhas. Por isso, defendemos o reequilíbrio econômico-financeiro dessa mecânica. Estamos à vontade para um debate técnico e colaborativo, porque temos 70% da emissão e das maquininhas. Estamos cientes e preparados para cortar na própria carne, mas precisaremos atacar as duas pontas da equação, tanto na contenção de juros do rotativo, o que atingiria o lado emissor, como na limitação do parcelado sem juros, o que afetaria o lado da adquirência. Isso seria o certo a fazer. Do contrário, vamos apenas varrer a poeira para debaixo do tapete.

Mas, de concreto, o que pode ser mudado?

Temos de perseguir um modelo sustentável de financiamento do consumo para o cliente, que precisa ter alternativas que evitem a ciranda financeira do empilhamento do parcelado das compras. O cartão se tornou um meio de pagamento relevante para o consumo, de um lado; mas, de outro, com as compras parceladas de forma ilimitada, passou a ser um pesadelo, levando o consumidor ao superendividamento. Esse pesadelo parece não acabar, porque o consumidor, com vários cartões nas mãos, é induzido a parcelar suas compras em prazos cada vez mais longos. Será que não dá para perceber que isso pode se transformar numa bomba-relógio e que todos iremos perder?

Os maiores adquirentes do Brasil estão na Febraban. Os grandes bancos também não ganham com esse modelo? Por que só jogar a responsabilidade sobre as maquininhas independentes?

Há uma diferença muito grande dos grandes bancos emissores para os novos entrantes que atuam na indústria de cartão e essa diferença é marcante. Nossa visão e nosso horizonte são de longo prazo, e não com resultados de balanço do próximo trimestre. O crédito não é monopólio dos bancos e estimulamos que mais e mais players possam conceder crédito, mas isso reclama um modelo de finanças sustentáveis. Temos hoje um grande desequilíbrio, em que um pedaço da cadeia se remunera com o risco do banco emissor. Isso gera uma enorme distorção. Algumas maquininhas independentes, que já se tornaram gente grande, obtêm a maior parte de suas receitas cobrando juros do comércio e correndo o risco apenas do emissor, sem qualquer risco da inadimplência da fatura, sem alocar capital, apropriando-se da receita de juros que o consumidor paga com os juros embutidos no preço da mercadoria. Isso precisa se reequilibrar.

Mas os bancos recebem uma taxa de intercâmbio das maquininhas. Eles também são remunerados.

Nosso modelo não foi criado em laboratório para maximizar valor para os acionistas. Não falamos no campo das hipóteses. O intercâmbio não remunera o risco. Qualquer outra conclusão diferente dessa é narrativa para atingir ainda mais a imagem dos bancos. Isso é uma teoria que não se sustenta. Na prática, a partir da terceira ou quarta parcela, o intercambio não é suficiente, pois a operação se torna deficitária para o banco emissor. Além do risco de crédito, que o intercâmbio não cobre, tem custo de capital em que apenas os bancos emissores incorrem com a alavancagem do consumidor. O mundo dos bancos é real; não é um mundo acadêmico de teses. O intercâmbio tem regras das bandeiras, que não servem para cobrir risco ou para remuneração de juros, e sim para cobrir custos e tipos diferentes de cartão, de benefícios. Essa é a verdade.

Qual é o nível de spread que as maquininhas cobram com o risco dos bancos?

Tenho curiosidade em saber. O MDR (tarifa administrativa) cobrado pelas maquininhas é alto, tanto mais porque o risco que correm é de o banco emissor quebrar, e o risco disso é quase zero. Além disso, elas não assumem ou sequer compartilham o risco da inadimplência da fatura do cartão; mas, por outro lado, cobram taxas de descontos do varejo muitíssimo superior ao DI (custo médio de empréstimos realizados entre bancos, próximo à Selic). Algumas dessas empresas, usando o limite do cartão de crédito do cliente, chegam a parcelar boletos bancários, ou seja, fazem receita em cima de um risco de crédito que não é delas. O chassi desse modelo não é nada sustentável, é oco. A antecipação para o giro da economia é saudável, mas ancorar um modelo de negócio na antecipação de compras parceladas em 10, 12 ou até 24 vezes é tornar o comércio refém e o consumidor uma vítima do superendividamento.

O que está em jogo nessa polêmica são os lucros e prejuízos de grandes empresas da indústria financeira? Ainda não se falou sobre como reduzir os juros para os consumidores, que é o elo fraco dessa cadeia.

Infelizmente, o consumidor não está sendo priorizado nesse debate. Isso porque há uma teimosia perigosa em se manter uma dinâmica do cartão no Brasil que vem se consolidando num círculo vicioso com elevado risco de o consumidor de baixa renda experimentar o superendividamento. E o único beneficiário desse modelo não é o consumidor, mas o acionista de alguns elos da indústria. A perpetuação desse modelo de negócio não contará com o apoio da Febraban. Nós iremos continuar resistindo. Não tem ninguém, além dos acionistas, que possa ser favorecido com esse modelo.

Qual o risco de redução na concessão desse crédito devido a essa nova limitação prevista na lei?

Sempre haverá risco de redução na concessão de crédito se, ao final, tivermos ajustes somente em uma parte da equação - ou seja, somente nas taxas de juros do rotativo, sem revisões nos planos de parcelamentos das compras. Se isso ocorrer, a inadimplência permanecerá nos mesmos patamares e, neste caso, o ajuste que restaria seria na concessão de créditos novos ou nos limites já estabelecidos. Nunca negamos que o spread bancário no Brasil é elevado, mas o caminho do tabelamento de juros é um atalho que não resolve.

Qual a expectativa para a segunda fase de renegociações do Desenrola?

O Desenrola até aqui tem sido um grande sucesso e os bancos estão muito envolvidos, até porque temos todo o interesse em reduzir os patamares de inadimplência dos consumidores, o que ajuda a diminuir o custo e o risco do crédito. Mas, diferente da primeira fase, em que o programa do governo se concentrou nas dívidas negativadas do setor bancário, agora poderão ser renegociadas dívidas de diversos setores da economia, como, por exemplo, de serviços de água, luz, telefone, gás e lojas de varejo. Isso envolve números superlativos de credores, devedores e volumes bilionários de dívidas a serem repactuadas, o que torna o programa bem mais complexo e muito desafiador.

Por quê?

São centenas de empresas credoras que participam do Desenrola nesta fase, com cerca de 40 milhões de pessoas elegíveis ao programa - sendo que, deste total, aproximadamente 20 milhões de fato devem renegociar ou até liquidar à vista as suas dívidas negativadas. Esperamos que a procura seja maior nas primeiras semanas, estabilizando depois, mas já temos um bom atrativo: os descontos que as empresas credoras ofereceram são bem interessantes, chegando a mais de 80% e baixando o valor corrigido das dívidas de R$ 150 bilhões para R$ 25 bilhões.

Qual impacto o programa pode ter em novas concessões de crédito, seja por conta das pessoas que limparam o nome, seja via estímulo regulatório que ampliou espaço no balanço dos bancos e no consumo?

Já vimos, na primeira fase do Desenrola, que o brasileiro não gosta de dívida e que está querendo negociar seus débitos e limpar seu nome. Isso é muito bom. Lembro que os dados, apenas nas dívidas bancárias, são expressivos: foram R$ 16 bilhões em volume financeiro negociado, mais de 2,2 milhões de contratos repactuados e quase 2 milhões de clientes atendidos. Foram 7 milhões de clientes com CPF desnegativados. Isso dá alívio financeiro para os devedores, reverte provisões dos bancos e, com o incentivo regulatório que tiveram, abre espaço nos balanços dos bancos e potencializa o apetite na concessão de crédito mais barato. Na fase 2, caso as nossas projeções se confirmem, é possível antever um impacto igualmente positivo na retomada da economia e na concessão de crédito já neste ano, se intensificando em 2024. Ainda que alguns clientes que renegociem as suas dívidas não contratem crédito no curto prazo, podemos intuir que existirá um aumento na concessão de forma geral, num ambiente de crédito melhor.

Como evitar que esse cenário de endividamento, focado na população mais pobre, volte a acontecer?

Aqui tem um ponto muito relevante porque ninguém, incluindo o governo, credores ou devedores, pode ficar à espera de um Desenrola de tempos em tempos. Isso seria perigoso e serviria como estímulo à inadimplência.

Com aprovação da lei do novo marco de garantias, qual deve ser o impacto no spread do crédito imobiliário e de veículos?

Ao permitir que a mesma garantia imobiliária possa alcançar mais de um empréstimo e, também, ao permitir a busca e apreensão extrajudicial de veículos, não há como isso não impactar positivamente no spread bancário dessas linhas de crédito. Temos de entender que o contexto brasileiro para garantias caminhava na contramão do resto do mundo e do bom senso. Andamos muito para trás até aqui e o mercado de crédito no Brasil está muito abaixo do potencial que tem, quando nos comparamos com outros países. A inadimplência é o principal componente do spread bancário no Brasil.

Como o projeto aprovado pode mudar isso?

O projeto de lei aprovado traz uma grande inovação que é a de permitir a alienação extrajudicial de veículos, que acreditamos poderá ser um marco no segmento de financiamento a veículos. Isso é uma mudança importante de cenário e no mercado de crédito, com bom potencial de redução das taxas e ampliação dos financiamentos de veículos. No segmento imobiliário, o PL também trouxe inovações relevantes, mas que devem ter impacto mais a médio prazo, até porque são de implementação mais complexa e demorada. No caso de reformas microeconômicas como essas, precisamos ter paciência e persistência, pois os resultados demoram, mas sempre chegam. Não tenho dúvida de que os spreads vão recuar, mas isso demanda tempo e, claro, que sejam mantidas as demais condições macroeconômicas. Se fazemos uma reforma da importância dessa, mas não preservamos o equilíbrio fiscal, a inflação e os juros vão subir e, com isso, os custos dos empréstimos também.

O governo fará uma nova lei de falências e adotará medidas para recuperação de créditos sem garantias. O que esperar do ponto de vista do credor?

Está mais do que na hora de reformarmos a lei de falências. Com a lei atual, tivemos avanços importantes no processo de recuperação judicial, e agora precisamos também avançar na falência. Processos aqui são morosos, burocráticos e ao final não se recupera praticamente nada. Dados compilados recentemente no Estado de São Paulo mostram isso. Apenas quase 25% dos processos com falência decretada tiveram avaliação e, mesmo assim, 98% dos bens avaliados são coisas móveis. A proporção de vendas com base no último leilão foi de 40%. A taxa de recuperação dos ativos foi somente de 12% e a taxa de recuperação da dívida, de 6,1%. É muito pouco isso. Uma melhor recuperação de créditos na falência melhora a posição dos credores, incluindo os bancos, fortalece sua base de capital, mas também tem outros efeitos, já que a melhora do ambiente de crédito, com maior segurança jurídica, aumenta o apetite das instituições financeiras para concederem crédito.

O que esperar da trajetória da Selic e do volume de concessão de crédito nos próximos meses?

A expectativa que temos é de expansão de algo próximo a 8% para a carteira total em 2023, número que pode ser considerado positivo, especialmente diante do cenário bem adverso visto no crédito empresarial no início do ano. Para 2024, esperamos crescimento também perto de 8%, pouco menos que o BC, que estima alta ainda maior, de 8,5%. Mas tem um dado interessante que pode ajudar a manter o mercado de crédito aquecido: a expansão nominal do crédito somada à desaceleração da inflação sugere um crescimento real (acima da inflação) mais vigoroso do crédito no próximo ano. Sobre a Selic, a grande questão é a taxa terminal e o quanto o cenário global poderá influenciar no ritmo da queda. Avaliamos que o Copom deve seguir reduzindo a taxa em 0,50 ponto porcentual nas próximas reuniões, encerrando o ano em 11,75% ao ano. O processo de flexibilização continua em 2024, mas o patamar da taxa terminal ainda é uma boa dúvida. A Pesquisa da Febraban com os bancos aponta que a maior parte dos economistas ficou dividida entre uma Selic de 9% ou acima desse patamar ao final do ciclo, enquanto uma minoria acredita que a Selic vá para abaixo de 9% . Estou mais alinhado à maioria.

BRASÍLIA – O presidente da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), Isaac Sidney, afirma que o Banco Central precisará arbitrar a regulação das operações do rotativo do cartão de crédito e do limite ao parcelado sem juros, após projeto de lei aprovado pelo Congresso que dá um prazo de 90 dias para uma autorregulação do setor.

Em entrevista ao Estadão, Isaac avaliou que a perpetuação do modelo atual de negócio não contará com o apoio da Febraban e que os bancos continuarão resistindo. “Somente emprestaremos nosso apoio por soluções que passem pela criação de limites ao parcelado das compras. Parcelado sim, mas uma alavanca temerária para o superendividamento, isso não”, afirmou.

Ele alertou que o problema é um bomba-relógio para o crédito e a economia do Brasil: “Será que não dá para perceber que isso pode se transformar numa bomba-relógio e que todos iremos perder?”, questiona.

Isaac Sidney. Foto: Celso Doni/Febraban

Em reunião nesta segunda-feira, 16, com o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, e quase toda a diretoria, representantes de todos os elos da cadeia de cartão de crédito começarão a buscar um acordo para a regulação do mercado.

O prazo do projeto de lei aprovado pelo Congresso termina no início de janeiro. Se não for apresentada uma proposta, será aplicado um teto que limita a dívida a 100% do montante original. Ou seja: o débito pode, no máximo, dobrar de tamanho. O tema se transformou numa disputa entre os principais segmentos que participam desse negócio no Brasil.

“Estamos cientes e preparados para cortar na própria carne, mas precisaremos atacar as duas pontas da equação: tanto na contenção de juros do rotativo, o que atingiria o lado emissor, como na limitação do parcelado sem juros”, acenou. Segundo ele, se cada segmento da indústria de cartões apenas pensar no seu umbigo, sem ceder em nada, daqui a pouco o problema se agrava.

Na entrevista, o presidente da Febraban fala dos desafios da nova fase do Desenrola (programa de renegociação de dívidas do governo federal), do mercado de crédito e da importância do projeto da nova lei de falências que o governo vai enviar ao Congresso, como o antecipou o Estadão. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Como o sr. avalia projeto aprovado pelo Congresso que trata de mudanças no crédito rotativo do cartão?

O texto original era muito preocupante e potencialmente danoso, porque simplesmente fixava um teto artificial de 8% ao mês, sem levar em conta a complexidade da indústria do cartão e peculiaridades que só existem no Brasil - onde 75% dos recebíveis não pagam um centavo de juros para os bancos emissores. A versão aprovada foi aprimorada e deve ser vista como uma oportunidade importante para aprofundarmos as causas do elevado spread bancário (diferença entre as taxas cobradas pelos bancos e as que eles pagam na captação de recursos) que temos aqui. Conseguimos convergir em uma redação que dá tempo para debatermos uma solução estrutural necessária.

E daqui para frente?

Caso não haja evolução, a lei prevê uma contenção dos juros cobrados, que não poderão superar o valor original da dívida. Mas, se ao final, a solução for apenas a de fixar um teto nos juros do rotativo, isso, além de não resolver a causa-raiz, vai manter os juros altos e pode limitar a oferta do produto, prejudicando o comércio e quem precisa de crédito para consumir.

O prazo de 90 dias para a regulação é tempo suficiente para se chegar a uma solução consensual?

Deveria ser suficiente, visto que este debate não começa agora. O BC precisará arbitrar uma solução, dado seu papel de regulador do crédito. Apesar de o tema ser muito complexo, estamos confiantes de que a indústria de cartões, juntamente com o regulador e o governo, terá sucesso em promover evoluções materiais na dinâmica do cartão de crédito.

Com tantas posições divergentes, tudo indica, então, que caberá ao BC fazer a regulamentação. O que acha disso?

Nunca vi o BC agir como mero expectador de temas sensíveis sobre o mercado de crédito. A proposta de autorregulação deve ser intermediada pelo BC. Ele será fundamental na coordenação e na mediação dos interesses diversos que envolvem toda a cadeia de cartões, que é bem complexa e cheia de elos com modelos de negócios não só distintos, mas conflitantes. Não haverá caminho fácil que resolva uma questão estrutural importante. O BC tem mais do que condições, tem toda a autoridade legal, técnica e regulatória para arbitrar esse caminho. Nós também, enquanto indústria, deveríamos ter uma visão de longo prazo. Mas, para isso, vamos ter de deixar um pouco de lado a autopreservação de uma dinâmica que tem se mostrado temerária para a sustentabilidade do consumo e para a saúde financeira do consumidor. Se cada segmento da indústria de cartões apenas pensar no seu umbigo, sem ceder em nada, daqui a pouco tempo estaremos, novamente, buscando atacar um problema que só tende a se agravar.


É preciso termos a coragem e a transparência para dizer que o parcelado sem juros não é sem juros. De sem juros nada tem, pois os juros estão embutidos no preço do produto.

A Febraban já disse que os bancos não querem o fim do parcelado sem juros no cartão de crédito, mas já sinalizou que não dá para manter o modelo da forma como está. Afinal, o que a Febraban defende em relação ao parcelado sem juros? Esse modelo é viável ainda?

Jamais advogamos o fim do parcelado sem juros e lanço aqui um desafio público para que alguém demonstre quando e como os bancos defenderam acabar com o parcelamento das compras no cartão. Os bancos criaram o parcelado da casa própria, do crédito rural, do financiamento de veículo, do crédito consignado. Parcelar crédito faz parte do nosso dia a dia. Aliás, tanto não defendemos o fim do parcelado sem juros que o CONAR (Conselho Nacional Auto Regulamentação Publicitária) tirou imediatamente do ar a publicidade que atribuía aos bancos o fim do parcelado, por concluir que possuía conteúdo flagrantemente abusivo, enganoso e falso.

Mas qual a avaliação da Febraban sobre o modelo do parcelado sem juros e o que pode mudar?

Somente emprestaremos o nosso apoio por soluções estruturais que passem pela criação de limites no parcelado das compras. Parcelado sem juros sim, mas uma alavanca temerária para o superendividamento, isso não. Não dá pra aceitar apenas teto de juros. É preciso termos a coragem e a transparência para dizer que o parcelado sem juros não é sem juros. De sem juros nada tem, pois os juros estão embutidos no preço do produto. O modelo atual gerou uma distorção e um desequilíbrio, no qual apenas um elo da cadeia tem ganhos - no caso, as maquininhas. E o comércio tem um custo grande para antecipar os recebíveis das vendas parceladas, pagando taxas de descontos altas e, no caso das maquininhas não vinculadas a bancos, chegam a cobrar de 70% a 130% ao ano de juros, correndo risco muito pequeno dos bancos emissores. A grande pergunta que tem de ser respondida é quem fica com as receitas dos juros embutidos no preço da mercadoria, já que o consumidor que parcela suas compras e paga em dia a fatura não paga um centavo de juros para o banco que emitiu o cartão.

O sr. está dizendo que os bancos não se beneficiam nessa cadeia, mesmo cobrando juros do rotativo, que anualizados chegariam a 450% ao ano?

Os bancos não cobram juros de 400% ao ano porque ninguém pode ficar mais de 30 dias no rotativo do cartão. Ou seja, ninguém fica 12 meses pagando esse patamar de juros. Os juros embutidos nas compras ditas “sem juros” estão em algum lugar e é certo que não ficam no caixa dos bancos emissores. Certo é que o comércio acaba embutindo no preço da mercadoria juros que o consumidor não enxerga na hora da compra, porque tem elevado custo financeiro pelo desconto para antecipar o recebível junto à maquininha.

Qual é a proposta dos bancos para a autorregulação do cartão de crédito e assim atender o que determina a lei aprovada pelo Congresso?

O fundamental é que busquemos um reequilíbrio da dinâmica do cartão, para que os juros fiquem onde o risco está. Como disse antes, o risco da inadimplência da fatura fica todo no banco emissor, mas os juros da antecipação dos recebíveis vão para as maquininhas. Por isso, defendemos o reequilíbrio econômico-financeiro dessa mecânica. Estamos à vontade para um debate técnico e colaborativo, porque temos 70% da emissão e das maquininhas. Estamos cientes e preparados para cortar na própria carne, mas precisaremos atacar as duas pontas da equação, tanto na contenção de juros do rotativo, o que atingiria o lado emissor, como na limitação do parcelado sem juros, o que afetaria o lado da adquirência. Isso seria o certo a fazer. Do contrário, vamos apenas varrer a poeira para debaixo do tapete.

Mas, de concreto, o que pode ser mudado?

Temos de perseguir um modelo sustentável de financiamento do consumo para o cliente, que precisa ter alternativas que evitem a ciranda financeira do empilhamento do parcelado das compras. O cartão se tornou um meio de pagamento relevante para o consumo, de um lado; mas, de outro, com as compras parceladas de forma ilimitada, passou a ser um pesadelo, levando o consumidor ao superendividamento. Esse pesadelo parece não acabar, porque o consumidor, com vários cartões nas mãos, é induzido a parcelar suas compras em prazos cada vez mais longos. Será que não dá para perceber que isso pode se transformar numa bomba-relógio e que todos iremos perder?

Os maiores adquirentes do Brasil estão na Febraban. Os grandes bancos também não ganham com esse modelo? Por que só jogar a responsabilidade sobre as maquininhas independentes?

Há uma diferença muito grande dos grandes bancos emissores para os novos entrantes que atuam na indústria de cartão e essa diferença é marcante. Nossa visão e nosso horizonte são de longo prazo, e não com resultados de balanço do próximo trimestre. O crédito não é monopólio dos bancos e estimulamos que mais e mais players possam conceder crédito, mas isso reclama um modelo de finanças sustentáveis. Temos hoje um grande desequilíbrio, em que um pedaço da cadeia se remunera com o risco do banco emissor. Isso gera uma enorme distorção. Algumas maquininhas independentes, que já se tornaram gente grande, obtêm a maior parte de suas receitas cobrando juros do comércio e correndo o risco apenas do emissor, sem qualquer risco da inadimplência da fatura, sem alocar capital, apropriando-se da receita de juros que o consumidor paga com os juros embutidos no preço da mercadoria. Isso precisa se reequilibrar.

Mas os bancos recebem uma taxa de intercâmbio das maquininhas. Eles também são remunerados.

Nosso modelo não foi criado em laboratório para maximizar valor para os acionistas. Não falamos no campo das hipóteses. O intercâmbio não remunera o risco. Qualquer outra conclusão diferente dessa é narrativa para atingir ainda mais a imagem dos bancos. Isso é uma teoria que não se sustenta. Na prática, a partir da terceira ou quarta parcela, o intercambio não é suficiente, pois a operação se torna deficitária para o banco emissor. Além do risco de crédito, que o intercâmbio não cobre, tem custo de capital em que apenas os bancos emissores incorrem com a alavancagem do consumidor. O mundo dos bancos é real; não é um mundo acadêmico de teses. O intercâmbio tem regras das bandeiras, que não servem para cobrir risco ou para remuneração de juros, e sim para cobrir custos e tipos diferentes de cartão, de benefícios. Essa é a verdade.

Qual é o nível de spread que as maquininhas cobram com o risco dos bancos?

Tenho curiosidade em saber. O MDR (tarifa administrativa) cobrado pelas maquininhas é alto, tanto mais porque o risco que correm é de o banco emissor quebrar, e o risco disso é quase zero. Além disso, elas não assumem ou sequer compartilham o risco da inadimplência da fatura do cartão; mas, por outro lado, cobram taxas de descontos do varejo muitíssimo superior ao DI (custo médio de empréstimos realizados entre bancos, próximo à Selic). Algumas dessas empresas, usando o limite do cartão de crédito do cliente, chegam a parcelar boletos bancários, ou seja, fazem receita em cima de um risco de crédito que não é delas. O chassi desse modelo não é nada sustentável, é oco. A antecipação para o giro da economia é saudável, mas ancorar um modelo de negócio na antecipação de compras parceladas em 10, 12 ou até 24 vezes é tornar o comércio refém e o consumidor uma vítima do superendividamento.

O que está em jogo nessa polêmica são os lucros e prejuízos de grandes empresas da indústria financeira? Ainda não se falou sobre como reduzir os juros para os consumidores, que é o elo fraco dessa cadeia.

Infelizmente, o consumidor não está sendo priorizado nesse debate. Isso porque há uma teimosia perigosa em se manter uma dinâmica do cartão no Brasil que vem se consolidando num círculo vicioso com elevado risco de o consumidor de baixa renda experimentar o superendividamento. E o único beneficiário desse modelo não é o consumidor, mas o acionista de alguns elos da indústria. A perpetuação desse modelo de negócio não contará com o apoio da Febraban. Nós iremos continuar resistindo. Não tem ninguém, além dos acionistas, que possa ser favorecido com esse modelo.

Qual o risco de redução na concessão desse crédito devido a essa nova limitação prevista na lei?

Sempre haverá risco de redução na concessão de crédito se, ao final, tivermos ajustes somente em uma parte da equação - ou seja, somente nas taxas de juros do rotativo, sem revisões nos planos de parcelamentos das compras. Se isso ocorrer, a inadimplência permanecerá nos mesmos patamares e, neste caso, o ajuste que restaria seria na concessão de créditos novos ou nos limites já estabelecidos. Nunca negamos que o spread bancário no Brasil é elevado, mas o caminho do tabelamento de juros é um atalho que não resolve.

Qual a expectativa para a segunda fase de renegociações do Desenrola?

O Desenrola até aqui tem sido um grande sucesso e os bancos estão muito envolvidos, até porque temos todo o interesse em reduzir os patamares de inadimplência dos consumidores, o que ajuda a diminuir o custo e o risco do crédito. Mas, diferente da primeira fase, em que o programa do governo se concentrou nas dívidas negativadas do setor bancário, agora poderão ser renegociadas dívidas de diversos setores da economia, como, por exemplo, de serviços de água, luz, telefone, gás e lojas de varejo. Isso envolve números superlativos de credores, devedores e volumes bilionários de dívidas a serem repactuadas, o que torna o programa bem mais complexo e muito desafiador.

Por quê?

São centenas de empresas credoras que participam do Desenrola nesta fase, com cerca de 40 milhões de pessoas elegíveis ao programa - sendo que, deste total, aproximadamente 20 milhões de fato devem renegociar ou até liquidar à vista as suas dívidas negativadas. Esperamos que a procura seja maior nas primeiras semanas, estabilizando depois, mas já temos um bom atrativo: os descontos que as empresas credoras ofereceram são bem interessantes, chegando a mais de 80% e baixando o valor corrigido das dívidas de R$ 150 bilhões para R$ 25 bilhões.

Qual impacto o programa pode ter em novas concessões de crédito, seja por conta das pessoas que limparam o nome, seja via estímulo regulatório que ampliou espaço no balanço dos bancos e no consumo?

Já vimos, na primeira fase do Desenrola, que o brasileiro não gosta de dívida e que está querendo negociar seus débitos e limpar seu nome. Isso é muito bom. Lembro que os dados, apenas nas dívidas bancárias, são expressivos: foram R$ 16 bilhões em volume financeiro negociado, mais de 2,2 milhões de contratos repactuados e quase 2 milhões de clientes atendidos. Foram 7 milhões de clientes com CPF desnegativados. Isso dá alívio financeiro para os devedores, reverte provisões dos bancos e, com o incentivo regulatório que tiveram, abre espaço nos balanços dos bancos e potencializa o apetite na concessão de crédito mais barato. Na fase 2, caso as nossas projeções se confirmem, é possível antever um impacto igualmente positivo na retomada da economia e na concessão de crédito já neste ano, se intensificando em 2024. Ainda que alguns clientes que renegociem as suas dívidas não contratem crédito no curto prazo, podemos intuir que existirá um aumento na concessão de forma geral, num ambiente de crédito melhor.

Como evitar que esse cenário de endividamento, focado na população mais pobre, volte a acontecer?

Aqui tem um ponto muito relevante porque ninguém, incluindo o governo, credores ou devedores, pode ficar à espera de um Desenrola de tempos em tempos. Isso seria perigoso e serviria como estímulo à inadimplência.

Com aprovação da lei do novo marco de garantias, qual deve ser o impacto no spread do crédito imobiliário e de veículos?

Ao permitir que a mesma garantia imobiliária possa alcançar mais de um empréstimo e, também, ao permitir a busca e apreensão extrajudicial de veículos, não há como isso não impactar positivamente no spread bancário dessas linhas de crédito. Temos de entender que o contexto brasileiro para garantias caminhava na contramão do resto do mundo e do bom senso. Andamos muito para trás até aqui e o mercado de crédito no Brasil está muito abaixo do potencial que tem, quando nos comparamos com outros países. A inadimplência é o principal componente do spread bancário no Brasil.

Como o projeto aprovado pode mudar isso?

O projeto de lei aprovado traz uma grande inovação que é a de permitir a alienação extrajudicial de veículos, que acreditamos poderá ser um marco no segmento de financiamento a veículos. Isso é uma mudança importante de cenário e no mercado de crédito, com bom potencial de redução das taxas e ampliação dos financiamentos de veículos. No segmento imobiliário, o PL também trouxe inovações relevantes, mas que devem ter impacto mais a médio prazo, até porque são de implementação mais complexa e demorada. No caso de reformas microeconômicas como essas, precisamos ter paciência e persistência, pois os resultados demoram, mas sempre chegam. Não tenho dúvida de que os spreads vão recuar, mas isso demanda tempo e, claro, que sejam mantidas as demais condições macroeconômicas. Se fazemos uma reforma da importância dessa, mas não preservamos o equilíbrio fiscal, a inflação e os juros vão subir e, com isso, os custos dos empréstimos também.

O governo fará uma nova lei de falências e adotará medidas para recuperação de créditos sem garantias. O que esperar do ponto de vista do credor?

Está mais do que na hora de reformarmos a lei de falências. Com a lei atual, tivemos avanços importantes no processo de recuperação judicial, e agora precisamos também avançar na falência. Processos aqui são morosos, burocráticos e ao final não se recupera praticamente nada. Dados compilados recentemente no Estado de São Paulo mostram isso. Apenas quase 25% dos processos com falência decretada tiveram avaliação e, mesmo assim, 98% dos bens avaliados são coisas móveis. A proporção de vendas com base no último leilão foi de 40%. A taxa de recuperação dos ativos foi somente de 12% e a taxa de recuperação da dívida, de 6,1%. É muito pouco isso. Uma melhor recuperação de créditos na falência melhora a posição dos credores, incluindo os bancos, fortalece sua base de capital, mas também tem outros efeitos, já que a melhora do ambiente de crédito, com maior segurança jurídica, aumenta o apetite das instituições financeiras para concederem crédito.

O que esperar da trajetória da Selic e do volume de concessão de crédito nos próximos meses?

A expectativa que temos é de expansão de algo próximo a 8% para a carteira total em 2023, número que pode ser considerado positivo, especialmente diante do cenário bem adverso visto no crédito empresarial no início do ano. Para 2024, esperamos crescimento também perto de 8%, pouco menos que o BC, que estima alta ainda maior, de 8,5%. Mas tem um dado interessante que pode ajudar a manter o mercado de crédito aquecido: a expansão nominal do crédito somada à desaceleração da inflação sugere um crescimento real (acima da inflação) mais vigoroso do crédito no próximo ano. Sobre a Selic, a grande questão é a taxa terminal e o quanto o cenário global poderá influenciar no ritmo da queda. Avaliamos que o Copom deve seguir reduzindo a taxa em 0,50 ponto porcentual nas próximas reuniões, encerrando o ano em 11,75% ao ano. O processo de flexibilização continua em 2024, mas o patamar da taxa terminal ainda é uma boa dúvida. A Pesquisa da Febraban com os bancos aponta que a maior parte dos economistas ficou dividida entre uma Selic de 9% ou acima desse patamar ao final do ciclo, enquanto uma minoria acredita que a Selic vá para abaixo de 9% . Estou mais alinhado à maioria.

BRASÍLIA – O presidente da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), Isaac Sidney, afirma que o Banco Central precisará arbitrar a regulação das operações do rotativo do cartão de crédito e do limite ao parcelado sem juros, após projeto de lei aprovado pelo Congresso que dá um prazo de 90 dias para uma autorregulação do setor.

Em entrevista ao Estadão, Isaac avaliou que a perpetuação do modelo atual de negócio não contará com o apoio da Febraban e que os bancos continuarão resistindo. “Somente emprestaremos nosso apoio por soluções que passem pela criação de limites ao parcelado das compras. Parcelado sim, mas uma alavanca temerária para o superendividamento, isso não”, afirmou.

Ele alertou que o problema é um bomba-relógio para o crédito e a economia do Brasil: “Será que não dá para perceber que isso pode se transformar numa bomba-relógio e que todos iremos perder?”, questiona.

Isaac Sidney. Foto: Celso Doni/Febraban

Em reunião nesta segunda-feira, 16, com o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, e quase toda a diretoria, representantes de todos os elos da cadeia de cartão de crédito começarão a buscar um acordo para a regulação do mercado.

O prazo do projeto de lei aprovado pelo Congresso termina no início de janeiro. Se não for apresentada uma proposta, será aplicado um teto que limita a dívida a 100% do montante original. Ou seja: o débito pode, no máximo, dobrar de tamanho. O tema se transformou numa disputa entre os principais segmentos que participam desse negócio no Brasil.

“Estamos cientes e preparados para cortar na própria carne, mas precisaremos atacar as duas pontas da equação: tanto na contenção de juros do rotativo, o que atingiria o lado emissor, como na limitação do parcelado sem juros”, acenou. Segundo ele, se cada segmento da indústria de cartões apenas pensar no seu umbigo, sem ceder em nada, daqui a pouco o problema se agrava.

Na entrevista, o presidente da Febraban fala dos desafios da nova fase do Desenrola (programa de renegociação de dívidas do governo federal), do mercado de crédito e da importância do projeto da nova lei de falências que o governo vai enviar ao Congresso, como o antecipou o Estadão. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Como o sr. avalia projeto aprovado pelo Congresso que trata de mudanças no crédito rotativo do cartão?

O texto original era muito preocupante e potencialmente danoso, porque simplesmente fixava um teto artificial de 8% ao mês, sem levar em conta a complexidade da indústria do cartão e peculiaridades que só existem no Brasil - onde 75% dos recebíveis não pagam um centavo de juros para os bancos emissores. A versão aprovada foi aprimorada e deve ser vista como uma oportunidade importante para aprofundarmos as causas do elevado spread bancário (diferença entre as taxas cobradas pelos bancos e as que eles pagam na captação de recursos) que temos aqui. Conseguimos convergir em uma redação que dá tempo para debatermos uma solução estrutural necessária.

E daqui para frente?

Caso não haja evolução, a lei prevê uma contenção dos juros cobrados, que não poderão superar o valor original da dívida. Mas, se ao final, a solução for apenas a de fixar um teto nos juros do rotativo, isso, além de não resolver a causa-raiz, vai manter os juros altos e pode limitar a oferta do produto, prejudicando o comércio e quem precisa de crédito para consumir.

O prazo de 90 dias para a regulação é tempo suficiente para se chegar a uma solução consensual?

Deveria ser suficiente, visto que este debate não começa agora. O BC precisará arbitrar uma solução, dado seu papel de regulador do crédito. Apesar de o tema ser muito complexo, estamos confiantes de que a indústria de cartões, juntamente com o regulador e o governo, terá sucesso em promover evoluções materiais na dinâmica do cartão de crédito.

Com tantas posições divergentes, tudo indica, então, que caberá ao BC fazer a regulamentação. O que acha disso?

Nunca vi o BC agir como mero expectador de temas sensíveis sobre o mercado de crédito. A proposta de autorregulação deve ser intermediada pelo BC. Ele será fundamental na coordenação e na mediação dos interesses diversos que envolvem toda a cadeia de cartões, que é bem complexa e cheia de elos com modelos de negócios não só distintos, mas conflitantes. Não haverá caminho fácil que resolva uma questão estrutural importante. O BC tem mais do que condições, tem toda a autoridade legal, técnica e regulatória para arbitrar esse caminho. Nós também, enquanto indústria, deveríamos ter uma visão de longo prazo. Mas, para isso, vamos ter de deixar um pouco de lado a autopreservação de uma dinâmica que tem se mostrado temerária para a sustentabilidade do consumo e para a saúde financeira do consumidor. Se cada segmento da indústria de cartões apenas pensar no seu umbigo, sem ceder em nada, daqui a pouco tempo estaremos, novamente, buscando atacar um problema que só tende a se agravar.


É preciso termos a coragem e a transparência para dizer que o parcelado sem juros não é sem juros. De sem juros nada tem, pois os juros estão embutidos no preço do produto.

A Febraban já disse que os bancos não querem o fim do parcelado sem juros no cartão de crédito, mas já sinalizou que não dá para manter o modelo da forma como está. Afinal, o que a Febraban defende em relação ao parcelado sem juros? Esse modelo é viável ainda?

Jamais advogamos o fim do parcelado sem juros e lanço aqui um desafio público para que alguém demonstre quando e como os bancos defenderam acabar com o parcelamento das compras no cartão. Os bancos criaram o parcelado da casa própria, do crédito rural, do financiamento de veículo, do crédito consignado. Parcelar crédito faz parte do nosso dia a dia. Aliás, tanto não defendemos o fim do parcelado sem juros que o CONAR (Conselho Nacional Auto Regulamentação Publicitária) tirou imediatamente do ar a publicidade que atribuía aos bancos o fim do parcelado, por concluir que possuía conteúdo flagrantemente abusivo, enganoso e falso.

Mas qual a avaliação da Febraban sobre o modelo do parcelado sem juros e o que pode mudar?

Somente emprestaremos o nosso apoio por soluções estruturais que passem pela criação de limites no parcelado das compras. Parcelado sem juros sim, mas uma alavanca temerária para o superendividamento, isso não. Não dá pra aceitar apenas teto de juros. É preciso termos a coragem e a transparência para dizer que o parcelado sem juros não é sem juros. De sem juros nada tem, pois os juros estão embutidos no preço do produto. O modelo atual gerou uma distorção e um desequilíbrio, no qual apenas um elo da cadeia tem ganhos - no caso, as maquininhas. E o comércio tem um custo grande para antecipar os recebíveis das vendas parceladas, pagando taxas de descontos altas e, no caso das maquininhas não vinculadas a bancos, chegam a cobrar de 70% a 130% ao ano de juros, correndo risco muito pequeno dos bancos emissores. A grande pergunta que tem de ser respondida é quem fica com as receitas dos juros embutidos no preço da mercadoria, já que o consumidor que parcela suas compras e paga em dia a fatura não paga um centavo de juros para o banco que emitiu o cartão.

O sr. está dizendo que os bancos não se beneficiam nessa cadeia, mesmo cobrando juros do rotativo, que anualizados chegariam a 450% ao ano?

Os bancos não cobram juros de 400% ao ano porque ninguém pode ficar mais de 30 dias no rotativo do cartão. Ou seja, ninguém fica 12 meses pagando esse patamar de juros. Os juros embutidos nas compras ditas “sem juros” estão em algum lugar e é certo que não ficam no caixa dos bancos emissores. Certo é que o comércio acaba embutindo no preço da mercadoria juros que o consumidor não enxerga na hora da compra, porque tem elevado custo financeiro pelo desconto para antecipar o recebível junto à maquininha.

Qual é a proposta dos bancos para a autorregulação do cartão de crédito e assim atender o que determina a lei aprovada pelo Congresso?

O fundamental é que busquemos um reequilíbrio da dinâmica do cartão, para que os juros fiquem onde o risco está. Como disse antes, o risco da inadimplência da fatura fica todo no banco emissor, mas os juros da antecipação dos recebíveis vão para as maquininhas. Por isso, defendemos o reequilíbrio econômico-financeiro dessa mecânica. Estamos à vontade para um debate técnico e colaborativo, porque temos 70% da emissão e das maquininhas. Estamos cientes e preparados para cortar na própria carne, mas precisaremos atacar as duas pontas da equação, tanto na contenção de juros do rotativo, o que atingiria o lado emissor, como na limitação do parcelado sem juros, o que afetaria o lado da adquirência. Isso seria o certo a fazer. Do contrário, vamos apenas varrer a poeira para debaixo do tapete.

Mas, de concreto, o que pode ser mudado?

Temos de perseguir um modelo sustentável de financiamento do consumo para o cliente, que precisa ter alternativas que evitem a ciranda financeira do empilhamento do parcelado das compras. O cartão se tornou um meio de pagamento relevante para o consumo, de um lado; mas, de outro, com as compras parceladas de forma ilimitada, passou a ser um pesadelo, levando o consumidor ao superendividamento. Esse pesadelo parece não acabar, porque o consumidor, com vários cartões nas mãos, é induzido a parcelar suas compras em prazos cada vez mais longos. Será que não dá para perceber que isso pode se transformar numa bomba-relógio e que todos iremos perder?

Os maiores adquirentes do Brasil estão na Febraban. Os grandes bancos também não ganham com esse modelo? Por que só jogar a responsabilidade sobre as maquininhas independentes?

Há uma diferença muito grande dos grandes bancos emissores para os novos entrantes que atuam na indústria de cartão e essa diferença é marcante. Nossa visão e nosso horizonte são de longo prazo, e não com resultados de balanço do próximo trimestre. O crédito não é monopólio dos bancos e estimulamos que mais e mais players possam conceder crédito, mas isso reclama um modelo de finanças sustentáveis. Temos hoje um grande desequilíbrio, em que um pedaço da cadeia se remunera com o risco do banco emissor. Isso gera uma enorme distorção. Algumas maquininhas independentes, que já se tornaram gente grande, obtêm a maior parte de suas receitas cobrando juros do comércio e correndo o risco apenas do emissor, sem qualquer risco da inadimplência da fatura, sem alocar capital, apropriando-se da receita de juros que o consumidor paga com os juros embutidos no preço da mercadoria. Isso precisa se reequilibrar.

Mas os bancos recebem uma taxa de intercâmbio das maquininhas. Eles também são remunerados.

Nosso modelo não foi criado em laboratório para maximizar valor para os acionistas. Não falamos no campo das hipóteses. O intercâmbio não remunera o risco. Qualquer outra conclusão diferente dessa é narrativa para atingir ainda mais a imagem dos bancos. Isso é uma teoria que não se sustenta. Na prática, a partir da terceira ou quarta parcela, o intercambio não é suficiente, pois a operação se torna deficitária para o banco emissor. Além do risco de crédito, que o intercâmbio não cobre, tem custo de capital em que apenas os bancos emissores incorrem com a alavancagem do consumidor. O mundo dos bancos é real; não é um mundo acadêmico de teses. O intercâmbio tem regras das bandeiras, que não servem para cobrir risco ou para remuneração de juros, e sim para cobrir custos e tipos diferentes de cartão, de benefícios. Essa é a verdade.

Qual é o nível de spread que as maquininhas cobram com o risco dos bancos?

Tenho curiosidade em saber. O MDR (tarifa administrativa) cobrado pelas maquininhas é alto, tanto mais porque o risco que correm é de o banco emissor quebrar, e o risco disso é quase zero. Além disso, elas não assumem ou sequer compartilham o risco da inadimplência da fatura do cartão; mas, por outro lado, cobram taxas de descontos do varejo muitíssimo superior ao DI (custo médio de empréstimos realizados entre bancos, próximo à Selic). Algumas dessas empresas, usando o limite do cartão de crédito do cliente, chegam a parcelar boletos bancários, ou seja, fazem receita em cima de um risco de crédito que não é delas. O chassi desse modelo não é nada sustentável, é oco. A antecipação para o giro da economia é saudável, mas ancorar um modelo de negócio na antecipação de compras parceladas em 10, 12 ou até 24 vezes é tornar o comércio refém e o consumidor uma vítima do superendividamento.

O que está em jogo nessa polêmica são os lucros e prejuízos de grandes empresas da indústria financeira? Ainda não se falou sobre como reduzir os juros para os consumidores, que é o elo fraco dessa cadeia.

Infelizmente, o consumidor não está sendo priorizado nesse debate. Isso porque há uma teimosia perigosa em se manter uma dinâmica do cartão no Brasil que vem se consolidando num círculo vicioso com elevado risco de o consumidor de baixa renda experimentar o superendividamento. E o único beneficiário desse modelo não é o consumidor, mas o acionista de alguns elos da indústria. A perpetuação desse modelo de negócio não contará com o apoio da Febraban. Nós iremos continuar resistindo. Não tem ninguém, além dos acionistas, que possa ser favorecido com esse modelo.

Qual o risco de redução na concessão desse crédito devido a essa nova limitação prevista na lei?

Sempre haverá risco de redução na concessão de crédito se, ao final, tivermos ajustes somente em uma parte da equação - ou seja, somente nas taxas de juros do rotativo, sem revisões nos planos de parcelamentos das compras. Se isso ocorrer, a inadimplência permanecerá nos mesmos patamares e, neste caso, o ajuste que restaria seria na concessão de créditos novos ou nos limites já estabelecidos. Nunca negamos que o spread bancário no Brasil é elevado, mas o caminho do tabelamento de juros é um atalho que não resolve.

Qual a expectativa para a segunda fase de renegociações do Desenrola?

O Desenrola até aqui tem sido um grande sucesso e os bancos estão muito envolvidos, até porque temos todo o interesse em reduzir os patamares de inadimplência dos consumidores, o que ajuda a diminuir o custo e o risco do crédito. Mas, diferente da primeira fase, em que o programa do governo se concentrou nas dívidas negativadas do setor bancário, agora poderão ser renegociadas dívidas de diversos setores da economia, como, por exemplo, de serviços de água, luz, telefone, gás e lojas de varejo. Isso envolve números superlativos de credores, devedores e volumes bilionários de dívidas a serem repactuadas, o que torna o programa bem mais complexo e muito desafiador.

Por quê?

São centenas de empresas credoras que participam do Desenrola nesta fase, com cerca de 40 milhões de pessoas elegíveis ao programa - sendo que, deste total, aproximadamente 20 milhões de fato devem renegociar ou até liquidar à vista as suas dívidas negativadas. Esperamos que a procura seja maior nas primeiras semanas, estabilizando depois, mas já temos um bom atrativo: os descontos que as empresas credoras ofereceram são bem interessantes, chegando a mais de 80% e baixando o valor corrigido das dívidas de R$ 150 bilhões para R$ 25 bilhões.

Qual impacto o programa pode ter em novas concessões de crédito, seja por conta das pessoas que limparam o nome, seja via estímulo regulatório que ampliou espaço no balanço dos bancos e no consumo?

Já vimos, na primeira fase do Desenrola, que o brasileiro não gosta de dívida e que está querendo negociar seus débitos e limpar seu nome. Isso é muito bom. Lembro que os dados, apenas nas dívidas bancárias, são expressivos: foram R$ 16 bilhões em volume financeiro negociado, mais de 2,2 milhões de contratos repactuados e quase 2 milhões de clientes atendidos. Foram 7 milhões de clientes com CPF desnegativados. Isso dá alívio financeiro para os devedores, reverte provisões dos bancos e, com o incentivo regulatório que tiveram, abre espaço nos balanços dos bancos e potencializa o apetite na concessão de crédito mais barato. Na fase 2, caso as nossas projeções se confirmem, é possível antever um impacto igualmente positivo na retomada da economia e na concessão de crédito já neste ano, se intensificando em 2024. Ainda que alguns clientes que renegociem as suas dívidas não contratem crédito no curto prazo, podemos intuir que existirá um aumento na concessão de forma geral, num ambiente de crédito melhor.

Como evitar que esse cenário de endividamento, focado na população mais pobre, volte a acontecer?

Aqui tem um ponto muito relevante porque ninguém, incluindo o governo, credores ou devedores, pode ficar à espera de um Desenrola de tempos em tempos. Isso seria perigoso e serviria como estímulo à inadimplência.

Com aprovação da lei do novo marco de garantias, qual deve ser o impacto no spread do crédito imobiliário e de veículos?

Ao permitir que a mesma garantia imobiliária possa alcançar mais de um empréstimo e, também, ao permitir a busca e apreensão extrajudicial de veículos, não há como isso não impactar positivamente no spread bancário dessas linhas de crédito. Temos de entender que o contexto brasileiro para garantias caminhava na contramão do resto do mundo e do bom senso. Andamos muito para trás até aqui e o mercado de crédito no Brasil está muito abaixo do potencial que tem, quando nos comparamos com outros países. A inadimplência é o principal componente do spread bancário no Brasil.

Como o projeto aprovado pode mudar isso?

O projeto de lei aprovado traz uma grande inovação que é a de permitir a alienação extrajudicial de veículos, que acreditamos poderá ser um marco no segmento de financiamento a veículos. Isso é uma mudança importante de cenário e no mercado de crédito, com bom potencial de redução das taxas e ampliação dos financiamentos de veículos. No segmento imobiliário, o PL também trouxe inovações relevantes, mas que devem ter impacto mais a médio prazo, até porque são de implementação mais complexa e demorada. No caso de reformas microeconômicas como essas, precisamos ter paciência e persistência, pois os resultados demoram, mas sempre chegam. Não tenho dúvida de que os spreads vão recuar, mas isso demanda tempo e, claro, que sejam mantidas as demais condições macroeconômicas. Se fazemos uma reforma da importância dessa, mas não preservamos o equilíbrio fiscal, a inflação e os juros vão subir e, com isso, os custos dos empréstimos também.

O governo fará uma nova lei de falências e adotará medidas para recuperação de créditos sem garantias. O que esperar do ponto de vista do credor?

Está mais do que na hora de reformarmos a lei de falências. Com a lei atual, tivemos avanços importantes no processo de recuperação judicial, e agora precisamos também avançar na falência. Processos aqui são morosos, burocráticos e ao final não se recupera praticamente nada. Dados compilados recentemente no Estado de São Paulo mostram isso. Apenas quase 25% dos processos com falência decretada tiveram avaliação e, mesmo assim, 98% dos bens avaliados são coisas móveis. A proporção de vendas com base no último leilão foi de 40%. A taxa de recuperação dos ativos foi somente de 12% e a taxa de recuperação da dívida, de 6,1%. É muito pouco isso. Uma melhor recuperação de créditos na falência melhora a posição dos credores, incluindo os bancos, fortalece sua base de capital, mas também tem outros efeitos, já que a melhora do ambiente de crédito, com maior segurança jurídica, aumenta o apetite das instituições financeiras para concederem crédito.

O que esperar da trajetória da Selic e do volume de concessão de crédito nos próximos meses?

A expectativa que temos é de expansão de algo próximo a 8% para a carteira total em 2023, número que pode ser considerado positivo, especialmente diante do cenário bem adverso visto no crédito empresarial no início do ano. Para 2024, esperamos crescimento também perto de 8%, pouco menos que o BC, que estima alta ainda maior, de 8,5%. Mas tem um dado interessante que pode ajudar a manter o mercado de crédito aquecido: a expansão nominal do crédito somada à desaceleração da inflação sugere um crescimento real (acima da inflação) mais vigoroso do crédito no próximo ano. Sobre a Selic, a grande questão é a taxa terminal e o quanto o cenário global poderá influenciar no ritmo da queda. Avaliamos que o Copom deve seguir reduzindo a taxa em 0,50 ponto porcentual nas próximas reuniões, encerrando o ano em 11,75% ao ano. O processo de flexibilização continua em 2024, mas o patamar da taxa terminal ainda é uma boa dúvida. A Pesquisa da Febraban com os bancos aponta que a maior parte dos economistas ficou dividida entre uma Selic de 9% ou acima desse patamar ao final do ciclo, enquanto uma minoria acredita que a Selic vá para abaixo de 9% . Estou mais alinhado à maioria.

BRASÍLIA – O presidente da Federação Brasileira de Bancos (Febraban), Isaac Sidney, afirma que o Banco Central precisará arbitrar a regulação das operações do rotativo do cartão de crédito e do limite ao parcelado sem juros, após projeto de lei aprovado pelo Congresso que dá um prazo de 90 dias para uma autorregulação do setor.

Em entrevista ao Estadão, Isaac avaliou que a perpetuação do modelo atual de negócio não contará com o apoio da Febraban e que os bancos continuarão resistindo. “Somente emprestaremos nosso apoio por soluções que passem pela criação de limites ao parcelado das compras. Parcelado sim, mas uma alavanca temerária para o superendividamento, isso não”, afirmou.

Ele alertou que o problema é um bomba-relógio para o crédito e a economia do Brasil: “Será que não dá para perceber que isso pode se transformar numa bomba-relógio e que todos iremos perder?”, questiona.

Isaac Sidney. Foto: Celso Doni/Febraban

Em reunião nesta segunda-feira, 16, com o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, e quase toda a diretoria, representantes de todos os elos da cadeia de cartão de crédito começarão a buscar um acordo para a regulação do mercado.

O prazo do projeto de lei aprovado pelo Congresso termina no início de janeiro. Se não for apresentada uma proposta, será aplicado um teto que limita a dívida a 100% do montante original. Ou seja: o débito pode, no máximo, dobrar de tamanho. O tema se transformou numa disputa entre os principais segmentos que participam desse negócio no Brasil.

“Estamos cientes e preparados para cortar na própria carne, mas precisaremos atacar as duas pontas da equação: tanto na contenção de juros do rotativo, o que atingiria o lado emissor, como na limitação do parcelado sem juros”, acenou. Segundo ele, se cada segmento da indústria de cartões apenas pensar no seu umbigo, sem ceder em nada, daqui a pouco o problema se agrava.

Na entrevista, o presidente da Febraban fala dos desafios da nova fase do Desenrola (programa de renegociação de dívidas do governo federal), do mercado de crédito e da importância do projeto da nova lei de falências que o governo vai enviar ao Congresso, como o antecipou o Estadão. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Como o sr. avalia projeto aprovado pelo Congresso que trata de mudanças no crédito rotativo do cartão?

O texto original era muito preocupante e potencialmente danoso, porque simplesmente fixava um teto artificial de 8% ao mês, sem levar em conta a complexidade da indústria do cartão e peculiaridades que só existem no Brasil - onde 75% dos recebíveis não pagam um centavo de juros para os bancos emissores. A versão aprovada foi aprimorada e deve ser vista como uma oportunidade importante para aprofundarmos as causas do elevado spread bancário (diferença entre as taxas cobradas pelos bancos e as que eles pagam na captação de recursos) que temos aqui. Conseguimos convergir em uma redação que dá tempo para debatermos uma solução estrutural necessária.

E daqui para frente?

Caso não haja evolução, a lei prevê uma contenção dos juros cobrados, que não poderão superar o valor original da dívida. Mas, se ao final, a solução for apenas a de fixar um teto nos juros do rotativo, isso, além de não resolver a causa-raiz, vai manter os juros altos e pode limitar a oferta do produto, prejudicando o comércio e quem precisa de crédito para consumir.

O prazo de 90 dias para a regulação é tempo suficiente para se chegar a uma solução consensual?

Deveria ser suficiente, visto que este debate não começa agora. O BC precisará arbitrar uma solução, dado seu papel de regulador do crédito. Apesar de o tema ser muito complexo, estamos confiantes de que a indústria de cartões, juntamente com o regulador e o governo, terá sucesso em promover evoluções materiais na dinâmica do cartão de crédito.

Com tantas posições divergentes, tudo indica, então, que caberá ao BC fazer a regulamentação. O que acha disso?

Nunca vi o BC agir como mero expectador de temas sensíveis sobre o mercado de crédito. A proposta de autorregulação deve ser intermediada pelo BC. Ele será fundamental na coordenação e na mediação dos interesses diversos que envolvem toda a cadeia de cartões, que é bem complexa e cheia de elos com modelos de negócios não só distintos, mas conflitantes. Não haverá caminho fácil que resolva uma questão estrutural importante. O BC tem mais do que condições, tem toda a autoridade legal, técnica e regulatória para arbitrar esse caminho. Nós também, enquanto indústria, deveríamos ter uma visão de longo prazo. Mas, para isso, vamos ter de deixar um pouco de lado a autopreservação de uma dinâmica que tem se mostrado temerária para a sustentabilidade do consumo e para a saúde financeira do consumidor. Se cada segmento da indústria de cartões apenas pensar no seu umbigo, sem ceder em nada, daqui a pouco tempo estaremos, novamente, buscando atacar um problema que só tende a se agravar.


É preciso termos a coragem e a transparência para dizer que o parcelado sem juros não é sem juros. De sem juros nada tem, pois os juros estão embutidos no preço do produto.

A Febraban já disse que os bancos não querem o fim do parcelado sem juros no cartão de crédito, mas já sinalizou que não dá para manter o modelo da forma como está. Afinal, o que a Febraban defende em relação ao parcelado sem juros? Esse modelo é viável ainda?

Jamais advogamos o fim do parcelado sem juros e lanço aqui um desafio público para que alguém demonstre quando e como os bancos defenderam acabar com o parcelamento das compras no cartão. Os bancos criaram o parcelado da casa própria, do crédito rural, do financiamento de veículo, do crédito consignado. Parcelar crédito faz parte do nosso dia a dia. Aliás, tanto não defendemos o fim do parcelado sem juros que o CONAR (Conselho Nacional Auto Regulamentação Publicitária) tirou imediatamente do ar a publicidade que atribuía aos bancos o fim do parcelado, por concluir que possuía conteúdo flagrantemente abusivo, enganoso e falso.

Mas qual a avaliação da Febraban sobre o modelo do parcelado sem juros e o que pode mudar?

Somente emprestaremos o nosso apoio por soluções estruturais que passem pela criação de limites no parcelado das compras. Parcelado sem juros sim, mas uma alavanca temerária para o superendividamento, isso não. Não dá pra aceitar apenas teto de juros. É preciso termos a coragem e a transparência para dizer que o parcelado sem juros não é sem juros. De sem juros nada tem, pois os juros estão embutidos no preço do produto. O modelo atual gerou uma distorção e um desequilíbrio, no qual apenas um elo da cadeia tem ganhos - no caso, as maquininhas. E o comércio tem um custo grande para antecipar os recebíveis das vendas parceladas, pagando taxas de descontos altas e, no caso das maquininhas não vinculadas a bancos, chegam a cobrar de 70% a 130% ao ano de juros, correndo risco muito pequeno dos bancos emissores. A grande pergunta que tem de ser respondida é quem fica com as receitas dos juros embutidos no preço da mercadoria, já que o consumidor que parcela suas compras e paga em dia a fatura não paga um centavo de juros para o banco que emitiu o cartão.

O sr. está dizendo que os bancos não se beneficiam nessa cadeia, mesmo cobrando juros do rotativo, que anualizados chegariam a 450% ao ano?

Os bancos não cobram juros de 400% ao ano porque ninguém pode ficar mais de 30 dias no rotativo do cartão. Ou seja, ninguém fica 12 meses pagando esse patamar de juros. Os juros embutidos nas compras ditas “sem juros” estão em algum lugar e é certo que não ficam no caixa dos bancos emissores. Certo é que o comércio acaba embutindo no preço da mercadoria juros que o consumidor não enxerga na hora da compra, porque tem elevado custo financeiro pelo desconto para antecipar o recebível junto à maquininha.

Qual é a proposta dos bancos para a autorregulação do cartão de crédito e assim atender o que determina a lei aprovada pelo Congresso?

O fundamental é que busquemos um reequilíbrio da dinâmica do cartão, para que os juros fiquem onde o risco está. Como disse antes, o risco da inadimplência da fatura fica todo no banco emissor, mas os juros da antecipação dos recebíveis vão para as maquininhas. Por isso, defendemos o reequilíbrio econômico-financeiro dessa mecânica. Estamos à vontade para um debate técnico e colaborativo, porque temos 70% da emissão e das maquininhas. Estamos cientes e preparados para cortar na própria carne, mas precisaremos atacar as duas pontas da equação, tanto na contenção de juros do rotativo, o que atingiria o lado emissor, como na limitação do parcelado sem juros, o que afetaria o lado da adquirência. Isso seria o certo a fazer. Do contrário, vamos apenas varrer a poeira para debaixo do tapete.

Mas, de concreto, o que pode ser mudado?

Temos de perseguir um modelo sustentável de financiamento do consumo para o cliente, que precisa ter alternativas que evitem a ciranda financeira do empilhamento do parcelado das compras. O cartão se tornou um meio de pagamento relevante para o consumo, de um lado; mas, de outro, com as compras parceladas de forma ilimitada, passou a ser um pesadelo, levando o consumidor ao superendividamento. Esse pesadelo parece não acabar, porque o consumidor, com vários cartões nas mãos, é induzido a parcelar suas compras em prazos cada vez mais longos. Será que não dá para perceber que isso pode se transformar numa bomba-relógio e que todos iremos perder?

Os maiores adquirentes do Brasil estão na Febraban. Os grandes bancos também não ganham com esse modelo? Por que só jogar a responsabilidade sobre as maquininhas independentes?

Há uma diferença muito grande dos grandes bancos emissores para os novos entrantes que atuam na indústria de cartão e essa diferença é marcante. Nossa visão e nosso horizonte são de longo prazo, e não com resultados de balanço do próximo trimestre. O crédito não é monopólio dos bancos e estimulamos que mais e mais players possam conceder crédito, mas isso reclama um modelo de finanças sustentáveis. Temos hoje um grande desequilíbrio, em que um pedaço da cadeia se remunera com o risco do banco emissor. Isso gera uma enorme distorção. Algumas maquininhas independentes, que já se tornaram gente grande, obtêm a maior parte de suas receitas cobrando juros do comércio e correndo o risco apenas do emissor, sem qualquer risco da inadimplência da fatura, sem alocar capital, apropriando-se da receita de juros que o consumidor paga com os juros embutidos no preço da mercadoria. Isso precisa se reequilibrar.

Mas os bancos recebem uma taxa de intercâmbio das maquininhas. Eles também são remunerados.

Nosso modelo não foi criado em laboratório para maximizar valor para os acionistas. Não falamos no campo das hipóteses. O intercâmbio não remunera o risco. Qualquer outra conclusão diferente dessa é narrativa para atingir ainda mais a imagem dos bancos. Isso é uma teoria que não se sustenta. Na prática, a partir da terceira ou quarta parcela, o intercambio não é suficiente, pois a operação se torna deficitária para o banco emissor. Além do risco de crédito, que o intercâmbio não cobre, tem custo de capital em que apenas os bancos emissores incorrem com a alavancagem do consumidor. O mundo dos bancos é real; não é um mundo acadêmico de teses. O intercâmbio tem regras das bandeiras, que não servem para cobrir risco ou para remuneração de juros, e sim para cobrir custos e tipos diferentes de cartão, de benefícios. Essa é a verdade.

Qual é o nível de spread que as maquininhas cobram com o risco dos bancos?

Tenho curiosidade em saber. O MDR (tarifa administrativa) cobrado pelas maquininhas é alto, tanto mais porque o risco que correm é de o banco emissor quebrar, e o risco disso é quase zero. Além disso, elas não assumem ou sequer compartilham o risco da inadimplência da fatura do cartão; mas, por outro lado, cobram taxas de descontos do varejo muitíssimo superior ao DI (custo médio de empréstimos realizados entre bancos, próximo à Selic). Algumas dessas empresas, usando o limite do cartão de crédito do cliente, chegam a parcelar boletos bancários, ou seja, fazem receita em cima de um risco de crédito que não é delas. O chassi desse modelo não é nada sustentável, é oco. A antecipação para o giro da economia é saudável, mas ancorar um modelo de negócio na antecipação de compras parceladas em 10, 12 ou até 24 vezes é tornar o comércio refém e o consumidor uma vítima do superendividamento.

O que está em jogo nessa polêmica são os lucros e prejuízos de grandes empresas da indústria financeira? Ainda não se falou sobre como reduzir os juros para os consumidores, que é o elo fraco dessa cadeia.

Infelizmente, o consumidor não está sendo priorizado nesse debate. Isso porque há uma teimosia perigosa em se manter uma dinâmica do cartão no Brasil que vem se consolidando num círculo vicioso com elevado risco de o consumidor de baixa renda experimentar o superendividamento. E o único beneficiário desse modelo não é o consumidor, mas o acionista de alguns elos da indústria. A perpetuação desse modelo de negócio não contará com o apoio da Febraban. Nós iremos continuar resistindo. Não tem ninguém, além dos acionistas, que possa ser favorecido com esse modelo.

Qual o risco de redução na concessão desse crédito devido a essa nova limitação prevista na lei?

Sempre haverá risco de redução na concessão de crédito se, ao final, tivermos ajustes somente em uma parte da equação - ou seja, somente nas taxas de juros do rotativo, sem revisões nos planos de parcelamentos das compras. Se isso ocorrer, a inadimplência permanecerá nos mesmos patamares e, neste caso, o ajuste que restaria seria na concessão de créditos novos ou nos limites já estabelecidos. Nunca negamos que o spread bancário no Brasil é elevado, mas o caminho do tabelamento de juros é um atalho que não resolve.

Qual a expectativa para a segunda fase de renegociações do Desenrola?

O Desenrola até aqui tem sido um grande sucesso e os bancos estão muito envolvidos, até porque temos todo o interesse em reduzir os patamares de inadimplência dos consumidores, o que ajuda a diminuir o custo e o risco do crédito. Mas, diferente da primeira fase, em que o programa do governo se concentrou nas dívidas negativadas do setor bancário, agora poderão ser renegociadas dívidas de diversos setores da economia, como, por exemplo, de serviços de água, luz, telefone, gás e lojas de varejo. Isso envolve números superlativos de credores, devedores e volumes bilionários de dívidas a serem repactuadas, o que torna o programa bem mais complexo e muito desafiador.

Por quê?

São centenas de empresas credoras que participam do Desenrola nesta fase, com cerca de 40 milhões de pessoas elegíveis ao programa - sendo que, deste total, aproximadamente 20 milhões de fato devem renegociar ou até liquidar à vista as suas dívidas negativadas. Esperamos que a procura seja maior nas primeiras semanas, estabilizando depois, mas já temos um bom atrativo: os descontos que as empresas credoras ofereceram são bem interessantes, chegando a mais de 80% e baixando o valor corrigido das dívidas de R$ 150 bilhões para R$ 25 bilhões.

Qual impacto o programa pode ter em novas concessões de crédito, seja por conta das pessoas que limparam o nome, seja via estímulo regulatório que ampliou espaço no balanço dos bancos e no consumo?

Já vimos, na primeira fase do Desenrola, que o brasileiro não gosta de dívida e que está querendo negociar seus débitos e limpar seu nome. Isso é muito bom. Lembro que os dados, apenas nas dívidas bancárias, são expressivos: foram R$ 16 bilhões em volume financeiro negociado, mais de 2,2 milhões de contratos repactuados e quase 2 milhões de clientes atendidos. Foram 7 milhões de clientes com CPF desnegativados. Isso dá alívio financeiro para os devedores, reverte provisões dos bancos e, com o incentivo regulatório que tiveram, abre espaço nos balanços dos bancos e potencializa o apetite na concessão de crédito mais barato. Na fase 2, caso as nossas projeções se confirmem, é possível antever um impacto igualmente positivo na retomada da economia e na concessão de crédito já neste ano, se intensificando em 2024. Ainda que alguns clientes que renegociem as suas dívidas não contratem crédito no curto prazo, podemos intuir que existirá um aumento na concessão de forma geral, num ambiente de crédito melhor.

Como evitar que esse cenário de endividamento, focado na população mais pobre, volte a acontecer?

Aqui tem um ponto muito relevante porque ninguém, incluindo o governo, credores ou devedores, pode ficar à espera de um Desenrola de tempos em tempos. Isso seria perigoso e serviria como estímulo à inadimplência.

Com aprovação da lei do novo marco de garantias, qual deve ser o impacto no spread do crédito imobiliário e de veículos?

Ao permitir que a mesma garantia imobiliária possa alcançar mais de um empréstimo e, também, ao permitir a busca e apreensão extrajudicial de veículos, não há como isso não impactar positivamente no spread bancário dessas linhas de crédito. Temos de entender que o contexto brasileiro para garantias caminhava na contramão do resto do mundo e do bom senso. Andamos muito para trás até aqui e o mercado de crédito no Brasil está muito abaixo do potencial que tem, quando nos comparamos com outros países. A inadimplência é o principal componente do spread bancário no Brasil.

Como o projeto aprovado pode mudar isso?

O projeto de lei aprovado traz uma grande inovação que é a de permitir a alienação extrajudicial de veículos, que acreditamos poderá ser um marco no segmento de financiamento a veículos. Isso é uma mudança importante de cenário e no mercado de crédito, com bom potencial de redução das taxas e ampliação dos financiamentos de veículos. No segmento imobiliário, o PL também trouxe inovações relevantes, mas que devem ter impacto mais a médio prazo, até porque são de implementação mais complexa e demorada. No caso de reformas microeconômicas como essas, precisamos ter paciência e persistência, pois os resultados demoram, mas sempre chegam. Não tenho dúvida de que os spreads vão recuar, mas isso demanda tempo e, claro, que sejam mantidas as demais condições macroeconômicas. Se fazemos uma reforma da importância dessa, mas não preservamos o equilíbrio fiscal, a inflação e os juros vão subir e, com isso, os custos dos empréstimos também.

O governo fará uma nova lei de falências e adotará medidas para recuperação de créditos sem garantias. O que esperar do ponto de vista do credor?

Está mais do que na hora de reformarmos a lei de falências. Com a lei atual, tivemos avanços importantes no processo de recuperação judicial, e agora precisamos também avançar na falência. Processos aqui são morosos, burocráticos e ao final não se recupera praticamente nada. Dados compilados recentemente no Estado de São Paulo mostram isso. Apenas quase 25% dos processos com falência decretada tiveram avaliação e, mesmo assim, 98% dos bens avaliados são coisas móveis. A proporção de vendas com base no último leilão foi de 40%. A taxa de recuperação dos ativos foi somente de 12% e a taxa de recuperação da dívida, de 6,1%. É muito pouco isso. Uma melhor recuperação de créditos na falência melhora a posição dos credores, incluindo os bancos, fortalece sua base de capital, mas também tem outros efeitos, já que a melhora do ambiente de crédito, com maior segurança jurídica, aumenta o apetite das instituições financeiras para concederem crédito.

O que esperar da trajetória da Selic e do volume de concessão de crédito nos próximos meses?

A expectativa que temos é de expansão de algo próximo a 8% para a carteira total em 2023, número que pode ser considerado positivo, especialmente diante do cenário bem adverso visto no crédito empresarial no início do ano. Para 2024, esperamos crescimento também perto de 8%, pouco menos que o BC, que estima alta ainda maior, de 8,5%. Mas tem um dado interessante que pode ajudar a manter o mercado de crédito aquecido: a expansão nominal do crédito somada à desaceleração da inflação sugere um crescimento real (acima da inflação) mais vigoroso do crédito no próximo ano. Sobre a Selic, a grande questão é a taxa terminal e o quanto o cenário global poderá influenciar no ritmo da queda. Avaliamos que o Copom deve seguir reduzindo a taxa em 0,50 ponto porcentual nas próximas reuniões, encerrando o ano em 11,75% ao ano. O processo de flexibilização continua em 2024, mas o patamar da taxa terminal ainda é uma boa dúvida. A Pesquisa da Febraban com os bancos aponta que a maior parte dos economistas ficou dividida entre uma Selic de 9% ou acima desse patamar ao final do ciclo, enquanto uma minoria acredita que a Selic vá para abaixo de 9% . Estou mais alinhado à maioria.

Entrevista por Adriana Fernandes

Repórter especial de Economia em Brasília

Bianca Lima

Repórter especial do Estadão em Brasília, com experiência em macroeconomia, contas públicas e tributação. Foi repórter da GloboNews e do g1 e bolsista do International Center for Journalists (ICFJ), com sede em Washington. Tem MBA em economia e mercado financeiro pela B3. Vencedora dos prêmios CNH, Abecip, FNP e Estadão.

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.