Há uma boa chance de o pouso suave se concretizar nos EUA, diz José Júlio Senna


Ex-diretor do BC ainda vê uma demanda aquecida e, portanto, um risco para Fed conseguir entregar a inflação na meta de 2%.

Por Luiz Guilherme Gerbelli
Foto: Werther Santana/ Estadão
Entrevista comJosé Júlio SennaEx-diretor do Banco Central e chefe do Centro de Estudos Monetários do FGV/Ibre

Ex-diretor do Banco Central, José Júlio Senna passou a se debruçar sobre a discussão de a economia dos Estados Unidos conseguir o chamado pouso suave – ou seja, se o Federal Reserve (Fed, BC norte-americano) foi capaz de endurecer a política monetária sem levar a economia dos Estados Unidos para o cenário de recessão.

“Eu acho que tem uma chance boa de se concretizar, mas ainda não é certo”, afirmou Senna, chefe do Centro de Estudos Monetários do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV/Ibre).

continua após a publicidade

Senna ainda alerta para uma demanda aquecida, o que, portanto, permanece como um risco para o Fed conseguir entregar a inflação na meta de 2%. “O mecanismo clássico de derrubar a inflação, que funciona pelo aperto das condições financeiras e, consequentemente, com a contenção da demanda agregada, não aconteceu” diz.

A seguir os principais trechos da entrevista concedida ao Estadão.

continua após a publicidade

Olhando em retrospectiva, qual é a avaliação que o sr. faz sobre o comportamento do Fed no combate à inflação?

O Fed demorou muito para se mexer na direção de fazer um ajuste monetário para conter a inflação. Mas quando começou, começou muito firme. Houve aumentos seguidos de 0,75 ponto porcentual. Não são usuais ajustes dessa natureza. Ele demorou porque havia aquela história de que o surto inflacionário era transitório e, depois, percebeu-se que não era. O Fed começou a fazer os ajustes em março de 2022. Em agosto daquele ano, o Powell vai a Jackson Hole, no famoso simpósio, e diz que restabelecer a estabilidade de preços, ou seja, levar a inflação para a meta de 2%, exigiria um “período sustentado de crescimento econômico abaixo da tendência”. E ele vai mais adiante (na sua fala). Diz que “juros mais elevados, crescimento mais lento, mercado de trabalho mais enfraquecido trarão a inflação para baixo”. E acrescenta: “são os custos para reduzir a inflação”.

O que ele quis dizer naquele momento?

continua após a publicidade

Quando começa (a subir os juros), ele vem com tudo e não tem dúvida em ressaltar que o processo de levar a inflação para 2% - do que ele chama de estabilidade de preços - causaria dor, teria custos. E que, se ele não fizesse isso, o custo seria pior ainda. Era esse quadro em agosto de 2022. E eu queria lembrar um aspecto extremamente importante de toda essa história. Em 2022, o Fed agiu rigorosamente seguindo os protocolos. E os efeitos das ações foram rigorosamente de acordo com o esperado. Ele conseguiu elevar as taxas longas dos juros de 10 anos, por exemplo. Conseguiu fortalecer o dólar, que ganhou impulso extra com a invasão da Ucrânia pela Rússia. Jogou as bolsas para baixo. Em 2022, as bolsas caíram mais de 20%. Elevou os spreads corporativos. Ou seja, a política (monetária) chegou ao mercado de capitais.

O Fed conseguiu um aperto muito significativo das condições financeiras, que é um objetivo básico de uma política monetária anti-inflacionária. Para ter sucesso, toda política monetária voltada para combate à inflação passa necessariamente pela contenção da demanda agregada. Você tem de segurar a expansão da demanda.

E como a expansão desse demanda foi contida?

continua após a publicidade

Nos Estados Unidos, são duas métricas muito usadas para avaliar o comportamento da demanda. Essas métricas são chamadas nas estatísticas americanas de vendas finais. Existem as vendas finais para compradores domésticos e as vendas finais para compradores domésticos privados. Pelas duas métricas, o ano inteiro de 2022 foi de contenção. Eu diria que a política monetária americana naquele período teve efeitos muito positivos, no sentido de atingir um objetivo fundamental, que é conter a expansão da demanda de alguma maneira. O crescimento foi inferior a 1% ao ano em termos reais.

E o que também aconteceu ainda em 2022 de muito interessante? Houve um artigo do membro do board (do Fed), do Christopher Waller. Em maio de 2022, ele fez uma apresentação na Alemanha. E ele dizia o seguinte: existe uma espécie de uma sabedoria convencional de que uma política monetária apertada tende a acarretar a alta significativa de juros e, se mantida com firmeza, acaba reduzindo o crescimento de preço, a taxa de inflação. Mas o custo a pagar é aquele que o Powell dizia, que era provocar desemprego, prejudicar o crescimento econômico e esfriar o mercado de trabalho. Era o Waller dizendo a essência da sabedoria convencional. O raciocínio que ele teve foi o seguinte: olhando a alta significativa da relação entre vagas abertas, que é a demanda por trabalhador, e desempregados, ele concluiu que a situação era de um aperto muito expressivo no mercado de trabalho. E era mesmo. Foi uma relação inédita.

José Júlio Senna, ex-diretor do Banco Central Foto: FOTO Marcelo Freire-FGV
continua após a publicidade

Poderia detalhar esse trabalho do Waller?

O trabalho formal dele está lá no site do Fed e gerou muita polêmica. Ele não fez nenhuma prescrição de política monetária, não teceu considerações sobre como a política monetária deveria ser desenvolvida para chegar a um pouso suave. É um paper de natureza acadêmica. Ele examina quais condições precisam ser preenchidas para que a economia tenha um pouso suave. Ele chega à conclusão de que duas coisas precisariam acontecer para o pouso suave. Primeiro, o ponto de partida teria de ser uma alta relação entre vagas e desempregados - e era exatamente esse o ponto em que a gente estava ali. E segundo fator, o volume de demissões tem de ser baixo. Se as demissões fossem num volume muito grande, tudo iria por água abaixo. Essa é a contribuição do Waller. Ela é teórica.

Qual é o impacto dessa elevada relação entre vagas e desempregados?

continua após a publicidade

Ela acarreta pressões inflacionárias mais elevadas. E eu diria por dois fatores. Primeiro, o mercado de trabalho apertado, como indicado por uma alta entre a relação de vagas e desempregados, dá muita confiança para os empregados. Eles se sentem bem, relativamente seguros e vão às compras. O mercado de trabalho apertado empurra os trabalhadores para as compras. O consumo tende a se ampliar. O segundo fator é o seguinte: os empregadores têm de ajustar o salário dos empregados com bastante carinho, digamos assim. Se não cuidar bem deles, pedem demissão, porque as vagas abertas estão em profusão. Isso pressiona os ajustes de salários para cima e tende a ser uma força especialmente forte para a inflação de serviços e, em consequência, para a inflação como um todo.

Tentando interpretar o Waller, ele deve ter pensado: quem sabe eu consigo ajustar a política monetária, sem imprimir muito vigor, de maneira a promover um reequilíbrio do mercado de trabalho, cortando apenas o excesso das vagas abertas. Tem uma relação entre vagas e desempregados acima do normal. Quem sabe se trouxer isso para uma coisa mais normal, observada em outros momentos, seja possível diminuir as pressões inflacionárias. E como é que ele diminuiria? Ele iria tirar grande parte da confiança dos trabalhadores que estão gastando muito, para atuar sobre o consumo, e a pressões de ajustes salariais também diminuiriam. Agora, teria de ser uma coisa muito bem calibrada para corrigir apenas o excesso de vagas abertas. Isso deve ter sido o que passou na cabeça dele.

Na avaliação do sr., o Powell comprou essa história?

De imediato, não. Como eu sei que não comprou? Porque o paper do Waller é de maio, e, em agosto, ele (Powell) falava que haveria custo, que o mercado de trabalho iria sofrer. Ele não tinha comprado. Só que, em algum momento de 2023, o Powell começa a mostrar simpatia pela tese do Waller. Em outras palavras, começa a acreditar nessa possibilidade. Abriu-se ali uma possibilidade, com respaldo de um trabalho acadêmico, de contradizer a tal sabedoria convencional, de trazer a inflação para baixo sem provocar aumento de desemprego. Então, ele, aparentemente, a partir de um certo ponto, se encantou com a possibilidade. Em algum momento de 2023, o Powell tira o pé. Ele tira o pé não reduzindo os juros, mas nos discursos, no tom das mensagens. E o mercado que não é bobo percebeu isso, e as condições financeiras voltaram a melhorar. Quando ele tira o pé e as condições financeiras se afrouxam, obviamente, a demanda se recuperara e as tais medidas de vendas finais, que são métricas para avaliar o comportamento da demanda, voltam a subir na média. A demanda se recuperou significativamente.

E o que explica a inflação cair, então?

Foram três forças importantes. A dissipação do choque da pandemia, aqueles gargalos de oferta, aquele deslocamento da demanda de serviço para bens e, depois, de volta para serviços. Em segundo lugar, houve o efeito da própria política monetária. Ela foi significativa? Eu acho que não. E por quê? Porque, como eu disse, a demanda não foi contida, mas isso não quer dizer que ela não tenha ajudado. Claro que ajudou, especialmente em seus efeitos sobre alguns setores, por exemplo, como o de construção. E teve outro efeito importante da política monetária, que foi ajudar a reverter a tendência das expectativas. As expectativas estavam em alta até o meio de 2022. Quando o Fed começa a agir, elas voltam a ceder.

E a situação da Europa? É de um pouso suave?

Quando eu vou olhar para o Reino Unido e para a zona do euro, vejo que a inflação veio bem para baixo, e as taxas de desemprego não foram afetadas, embora seja verdade que as duas regiões têm experimentado uma desaceleração importante da atividade econômica, mas sem entrar em recessão. Nessas regiões, tem muita gente lembrando que é praticamente um pouso suave, mas não é tão acentuado quanto no caso dos Estados Unidos.

E o que esperar daqui em diante?

A atitude do Powell parece uma atitude de quem ganhou a parada. Ou seja, de vitória da tese do pouso suave. E isso seguramente tem influenciado e continuará influenciando a condução da política monetária. Ao reduzir os juros em 0,50 ponto porcentual na última reunião, ao contrário de um corte de 0,25, que era o que se esperava há quatro dias da decisão, ele agiu de maneira a dar um sinal. E o que ele disse é de que queria mostrar o compromisso com a tese do pouso suave. Foi um movimento de sinalização.

Por ora, então, a gente caminha para esse cenário, mas não é certeza?

Eu acho que tem uma chance boa de se concretizar, mas ainda não é certo. E a razão é que o mecanismo clássico de derrubar a inflação, que funciona pelo aperto das condições financeiras e, consequentemente, com a contenção da demanda agregada, não aconteceu. Na Europa, tem um jeitão de pouso suave, mas os dirigentes desses dois bancos centrais não estão indo com muita sede ao pote, porque entendem que o jogo não acabou ainda. Eu suspeito que nos Estados Unidos acabará prevalecendo uma cautela também.

Ex-diretor do Banco Central, José Júlio Senna passou a se debruçar sobre a discussão de a economia dos Estados Unidos conseguir o chamado pouso suave – ou seja, se o Federal Reserve (Fed, BC norte-americano) foi capaz de endurecer a política monetária sem levar a economia dos Estados Unidos para o cenário de recessão.

“Eu acho que tem uma chance boa de se concretizar, mas ainda não é certo”, afirmou Senna, chefe do Centro de Estudos Monetários do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV/Ibre).

Senna ainda alerta para uma demanda aquecida, o que, portanto, permanece como um risco para o Fed conseguir entregar a inflação na meta de 2%. “O mecanismo clássico de derrubar a inflação, que funciona pelo aperto das condições financeiras e, consequentemente, com a contenção da demanda agregada, não aconteceu” diz.

A seguir os principais trechos da entrevista concedida ao Estadão.

Olhando em retrospectiva, qual é a avaliação que o sr. faz sobre o comportamento do Fed no combate à inflação?

O Fed demorou muito para se mexer na direção de fazer um ajuste monetário para conter a inflação. Mas quando começou, começou muito firme. Houve aumentos seguidos de 0,75 ponto porcentual. Não são usuais ajustes dessa natureza. Ele demorou porque havia aquela história de que o surto inflacionário era transitório e, depois, percebeu-se que não era. O Fed começou a fazer os ajustes em março de 2022. Em agosto daquele ano, o Powell vai a Jackson Hole, no famoso simpósio, e diz que restabelecer a estabilidade de preços, ou seja, levar a inflação para a meta de 2%, exigiria um “período sustentado de crescimento econômico abaixo da tendência”. E ele vai mais adiante (na sua fala). Diz que “juros mais elevados, crescimento mais lento, mercado de trabalho mais enfraquecido trarão a inflação para baixo”. E acrescenta: “são os custos para reduzir a inflação”.

O que ele quis dizer naquele momento?

Quando começa (a subir os juros), ele vem com tudo e não tem dúvida em ressaltar que o processo de levar a inflação para 2% - do que ele chama de estabilidade de preços - causaria dor, teria custos. E que, se ele não fizesse isso, o custo seria pior ainda. Era esse quadro em agosto de 2022. E eu queria lembrar um aspecto extremamente importante de toda essa história. Em 2022, o Fed agiu rigorosamente seguindo os protocolos. E os efeitos das ações foram rigorosamente de acordo com o esperado. Ele conseguiu elevar as taxas longas dos juros de 10 anos, por exemplo. Conseguiu fortalecer o dólar, que ganhou impulso extra com a invasão da Ucrânia pela Rússia. Jogou as bolsas para baixo. Em 2022, as bolsas caíram mais de 20%. Elevou os spreads corporativos. Ou seja, a política (monetária) chegou ao mercado de capitais.

O Fed conseguiu um aperto muito significativo das condições financeiras, que é um objetivo básico de uma política monetária anti-inflacionária. Para ter sucesso, toda política monetária voltada para combate à inflação passa necessariamente pela contenção da demanda agregada. Você tem de segurar a expansão da demanda.

E como a expansão desse demanda foi contida?

Nos Estados Unidos, são duas métricas muito usadas para avaliar o comportamento da demanda. Essas métricas são chamadas nas estatísticas americanas de vendas finais. Existem as vendas finais para compradores domésticos e as vendas finais para compradores domésticos privados. Pelas duas métricas, o ano inteiro de 2022 foi de contenção. Eu diria que a política monetária americana naquele período teve efeitos muito positivos, no sentido de atingir um objetivo fundamental, que é conter a expansão da demanda de alguma maneira. O crescimento foi inferior a 1% ao ano em termos reais.

E o que também aconteceu ainda em 2022 de muito interessante? Houve um artigo do membro do board (do Fed), do Christopher Waller. Em maio de 2022, ele fez uma apresentação na Alemanha. E ele dizia o seguinte: existe uma espécie de uma sabedoria convencional de que uma política monetária apertada tende a acarretar a alta significativa de juros e, se mantida com firmeza, acaba reduzindo o crescimento de preço, a taxa de inflação. Mas o custo a pagar é aquele que o Powell dizia, que era provocar desemprego, prejudicar o crescimento econômico e esfriar o mercado de trabalho. Era o Waller dizendo a essência da sabedoria convencional. O raciocínio que ele teve foi o seguinte: olhando a alta significativa da relação entre vagas abertas, que é a demanda por trabalhador, e desempregados, ele concluiu que a situação era de um aperto muito expressivo no mercado de trabalho. E era mesmo. Foi uma relação inédita.

José Júlio Senna, ex-diretor do Banco Central Foto: FOTO Marcelo Freire-FGV

Poderia detalhar esse trabalho do Waller?

O trabalho formal dele está lá no site do Fed e gerou muita polêmica. Ele não fez nenhuma prescrição de política monetária, não teceu considerações sobre como a política monetária deveria ser desenvolvida para chegar a um pouso suave. É um paper de natureza acadêmica. Ele examina quais condições precisam ser preenchidas para que a economia tenha um pouso suave. Ele chega à conclusão de que duas coisas precisariam acontecer para o pouso suave. Primeiro, o ponto de partida teria de ser uma alta relação entre vagas e desempregados - e era exatamente esse o ponto em que a gente estava ali. E segundo fator, o volume de demissões tem de ser baixo. Se as demissões fossem num volume muito grande, tudo iria por água abaixo. Essa é a contribuição do Waller. Ela é teórica.

Qual é o impacto dessa elevada relação entre vagas e desempregados?

Ela acarreta pressões inflacionárias mais elevadas. E eu diria por dois fatores. Primeiro, o mercado de trabalho apertado, como indicado por uma alta entre a relação de vagas e desempregados, dá muita confiança para os empregados. Eles se sentem bem, relativamente seguros e vão às compras. O mercado de trabalho apertado empurra os trabalhadores para as compras. O consumo tende a se ampliar. O segundo fator é o seguinte: os empregadores têm de ajustar o salário dos empregados com bastante carinho, digamos assim. Se não cuidar bem deles, pedem demissão, porque as vagas abertas estão em profusão. Isso pressiona os ajustes de salários para cima e tende a ser uma força especialmente forte para a inflação de serviços e, em consequência, para a inflação como um todo.

Tentando interpretar o Waller, ele deve ter pensado: quem sabe eu consigo ajustar a política monetária, sem imprimir muito vigor, de maneira a promover um reequilíbrio do mercado de trabalho, cortando apenas o excesso das vagas abertas. Tem uma relação entre vagas e desempregados acima do normal. Quem sabe se trouxer isso para uma coisa mais normal, observada em outros momentos, seja possível diminuir as pressões inflacionárias. E como é que ele diminuiria? Ele iria tirar grande parte da confiança dos trabalhadores que estão gastando muito, para atuar sobre o consumo, e a pressões de ajustes salariais também diminuiriam. Agora, teria de ser uma coisa muito bem calibrada para corrigir apenas o excesso de vagas abertas. Isso deve ter sido o que passou na cabeça dele.

Na avaliação do sr., o Powell comprou essa história?

De imediato, não. Como eu sei que não comprou? Porque o paper do Waller é de maio, e, em agosto, ele (Powell) falava que haveria custo, que o mercado de trabalho iria sofrer. Ele não tinha comprado. Só que, em algum momento de 2023, o Powell começa a mostrar simpatia pela tese do Waller. Em outras palavras, começa a acreditar nessa possibilidade. Abriu-se ali uma possibilidade, com respaldo de um trabalho acadêmico, de contradizer a tal sabedoria convencional, de trazer a inflação para baixo sem provocar aumento de desemprego. Então, ele, aparentemente, a partir de um certo ponto, se encantou com a possibilidade. Em algum momento de 2023, o Powell tira o pé. Ele tira o pé não reduzindo os juros, mas nos discursos, no tom das mensagens. E o mercado que não é bobo percebeu isso, e as condições financeiras voltaram a melhorar. Quando ele tira o pé e as condições financeiras se afrouxam, obviamente, a demanda se recuperara e as tais medidas de vendas finais, que são métricas para avaliar o comportamento da demanda, voltam a subir na média. A demanda se recuperou significativamente.

E o que explica a inflação cair, então?

Foram três forças importantes. A dissipação do choque da pandemia, aqueles gargalos de oferta, aquele deslocamento da demanda de serviço para bens e, depois, de volta para serviços. Em segundo lugar, houve o efeito da própria política monetária. Ela foi significativa? Eu acho que não. E por quê? Porque, como eu disse, a demanda não foi contida, mas isso não quer dizer que ela não tenha ajudado. Claro que ajudou, especialmente em seus efeitos sobre alguns setores, por exemplo, como o de construção. E teve outro efeito importante da política monetária, que foi ajudar a reverter a tendência das expectativas. As expectativas estavam em alta até o meio de 2022. Quando o Fed começa a agir, elas voltam a ceder.

E a situação da Europa? É de um pouso suave?

Quando eu vou olhar para o Reino Unido e para a zona do euro, vejo que a inflação veio bem para baixo, e as taxas de desemprego não foram afetadas, embora seja verdade que as duas regiões têm experimentado uma desaceleração importante da atividade econômica, mas sem entrar em recessão. Nessas regiões, tem muita gente lembrando que é praticamente um pouso suave, mas não é tão acentuado quanto no caso dos Estados Unidos.

E o que esperar daqui em diante?

A atitude do Powell parece uma atitude de quem ganhou a parada. Ou seja, de vitória da tese do pouso suave. E isso seguramente tem influenciado e continuará influenciando a condução da política monetária. Ao reduzir os juros em 0,50 ponto porcentual na última reunião, ao contrário de um corte de 0,25, que era o que se esperava há quatro dias da decisão, ele agiu de maneira a dar um sinal. E o que ele disse é de que queria mostrar o compromisso com a tese do pouso suave. Foi um movimento de sinalização.

Por ora, então, a gente caminha para esse cenário, mas não é certeza?

Eu acho que tem uma chance boa de se concretizar, mas ainda não é certo. E a razão é que o mecanismo clássico de derrubar a inflação, que funciona pelo aperto das condições financeiras e, consequentemente, com a contenção da demanda agregada, não aconteceu. Na Europa, tem um jeitão de pouso suave, mas os dirigentes desses dois bancos centrais não estão indo com muita sede ao pote, porque entendem que o jogo não acabou ainda. Eu suspeito que nos Estados Unidos acabará prevalecendo uma cautela também.

Ex-diretor do Banco Central, José Júlio Senna passou a se debruçar sobre a discussão de a economia dos Estados Unidos conseguir o chamado pouso suave – ou seja, se o Federal Reserve (Fed, BC norte-americano) foi capaz de endurecer a política monetária sem levar a economia dos Estados Unidos para o cenário de recessão.

“Eu acho que tem uma chance boa de se concretizar, mas ainda não é certo”, afirmou Senna, chefe do Centro de Estudos Monetários do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV/Ibre).

Senna ainda alerta para uma demanda aquecida, o que, portanto, permanece como um risco para o Fed conseguir entregar a inflação na meta de 2%. “O mecanismo clássico de derrubar a inflação, que funciona pelo aperto das condições financeiras e, consequentemente, com a contenção da demanda agregada, não aconteceu” diz.

A seguir os principais trechos da entrevista concedida ao Estadão.

Olhando em retrospectiva, qual é a avaliação que o sr. faz sobre o comportamento do Fed no combate à inflação?

O Fed demorou muito para se mexer na direção de fazer um ajuste monetário para conter a inflação. Mas quando começou, começou muito firme. Houve aumentos seguidos de 0,75 ponto porcentual. Não são usuais ajustes dessa natureza. Ele demorou porque havia aquela história de que o surto inflacionário era transitório e, depois, percebeu-se que não era. O Fed começou a fazer os ajustes em março de 2022. Em agosto daquele ano, o Powell vai a Jackson Hole, no famoso simpósio, e diz que restabelecer a estabilidade de preços, ou seja, levar a inflação para a meta de 2%, exigiria um “período sustentado de crescimento econômico abaixo da tendência”. E ele vai mais adiante (na sua fala). Diz que “juros mais elevados, crescimento mais lento, mercado de trabalho mais enfraquecido trarão a inflação para baixo”. E acrescenta: “são os custos para reduzir a inflação”.

O que ele quis dizer naquele momento?

Quando começa (a subir os juros), ele vem com tudo e não tem dúvida em ressaltar que o processo de levar a inflação para 2% - do que ele chama de estabilidade de preços - causaria dor, teria custos. E que, se ele não fizesse isso, o custo seria pior ainda. Era esse quadro em agosto de 2022. E eu queria lembrar um aspecto extremamente importante de toda essa história. Em 2022, o Fed agiu rigorosamente seguindo os protocolos. E os efeitos das ações foram rigorosamente de acordo com o esperado. Ele conseguiu elevar as taxas longas dos juros de 10 anos, por exemplo. Conseguiu fortalecer o dólar, que ganhou impulso extra com a invasão da Ucrânia pela Rússia. Jogou as bolsas para baixo. Em 2022, as bolsas caíram mais de 20%. Elevou os spreads corporativos. Ou seja, a política (monetária) chegou ao mercado de capitais.

O Fed conseguiu um aperto muito significativo das condições financeiras, que é um objetivo básico de uma política monetária anti-inflacionária. Para ter sucesso, toda política monetária voltada para combate à inflação passa necessariamente pela contenção da demanda agregada. Você tem de segurar a expansão da demanda.

E como a expansão desse demanda foi contida?

Nos Estados Unidos, são duas métricas muito usadas para avaliar o comportamento da demanda. Essas métricas são chamadas nas estatísticas americanas de vendas finais. Existem as vendas finais para compradores domésticos e as vendas finais para compradores domésticos privados. Pelas duas métricas, o ano inteiro de 2022 foi de contenção. Eu diria que a política monetária americana naquele período teve efeitos muito positivos, no sentido de atingir um objetivo fundamental, que é conter a expansão da demanda de alguma maneira. O crescimento foi inferior a 1% ao ano em termos reais.

E o que também aconteceu ainda em 2022 de muito interessante? Houve um artigo do membro do board (do Fed), do Christopher Waller. Em maio de 2022, ele fez uma apresentação na Alemanha. E ele dizia o seguinte: existe uma espécie de uma sabedoria convencional de que uma política monetária apertada tende a acarretar a alta significativa de juros e, se mantida com firmeza, acaba reduzindo o crescimento de preço, a taxa de inflação. Mas o custo a pagar é aquele que o Powell dizia, que era provocar desemprego, prejudicar o crescimento econômico e esfriar o mercado de trabalho. Era o Waller dizendo a essência da sabedoria convencional. O raciocínio que ele teve foi o seguinte: olhando a alta significativa da relação entre vagas abertas, que é a demanda por trabalhador, e desempregados, ele concluiu que a situação era de um aperto muito expressivo no mercado de trabalho. E era mesmo. Foi uma relação inédita.

José Júlio Senna, ex-diretor do Banco Central Foto: FOTO Marcelo Freire-FGV

Poderia detalhar esse trabalho do Waller?

O trabalho formal dele está lá no site do Fed e gerou muita polêmica. Ele não fez nenhuma prescrição de política monetária, não teceu considerações sobre como a política monetária deveria ser desenvolvida para chegar a um pouso suave. É um paper de natureza acadêmica. Ele examina quais condições precisam ser preenchidas para que a economia tenha um pouso suave. Ele chega à conclusão de que duas coisas precisariam acontecer para o pouso suave. Primeiro, o ponto de partida teria de ser uma alta relação entre vagas e desempregados - e era exatamente esse o ponto em que a gente estava ali. E segundo fator, o volume de demissões tem de ser baixo. Se as demissões fossem num volume muito grande, tudo iria por água abaixo. Essa é a contribuição do Waller. Ela é teórica.

Qual é o impacto dessa elevada relação entre vagas e desempregados?

Ela acarreta pressões inflacionárias mais elevadas. E eu diria por dois fatores. Primeiro, o mercado de trabalho apertado, como indicado por uma alta entre a relação de vagas e desempregados, dá muita confiança para os empregados. Eles se sentem bem, relativamente seguros e vão às compras. O mercado de trabalho apertado empurra os trabalhadores para as compras. O consumo tende a se ampliar. O segundo fator é o seguinte: os empregadores têm de ajustar o salário dos empregados com bastante carinho, digamos assim. Se não cuidar bem deles, pedem demissão, porque as vagas abertas estão em profusão. Isso pressiona os ajustes de salários para cima e tende a ser uma força especialmente forte para a inflação de serviços e, em consequência, para a inflação como um todo.

Tentando interpretar o Waller, ele deve ter pensado: quem sabe eu consigo ajustar a política monetária, sem imprimir muito vigor, de maneira a promover um reequilíbrio do mercado de trabalho, cortando apenas o excesso das vagas abertas. Tem uma relação entre vagas e desempregados acima do normal. Quem sabe se trouxer isso para uma coisa mais normal, observada em outros momentos, seja possível diminuir as pressões inflacionárias. E como é que ele diminuiria? Ele iria tirar grande parte da confiança dos trabalhadores que estão gastando muito, para atuar sobre o consumo, e a pressões de ajustes salariais também diminuiriam. Agora, teria de ser uma coisa muito bem calibrada para corrigir apenas o excesso de vagas abertas. Isso deve ter sido o que passou na cabeça dele.

Na avaliação do sr., o Powell comprou essa história?

De imediato, não. Como eu sei que não comprou? Porque o paper do Waller é de maio, e, em agosto, ele (Powell) falava que haveria custo, que o mercado de trabalho iria sofrer. Ele não tinha comprado. Só que, em algum momento de 2023, o Powell começa a mostrar simpatia pela tese do Waller. Em outras palavras, começa a acreditar nessa possibilidade. Abriu-se ali uma possibilidade, com respaldo de um trabalho acadêmico, de contradizer a tal sabedoria convencional, de trazer a inflação para baixo sem provocar aumento de desemprego. Então, ele, aparentemente, a partir de um certo ponto, se encantou com a possibilidade. Em algum momento de 2023, o Powell tira o pé. Ele tira o pé não reduzindo os juros, mas nos discursos, no tom das mensagens. E o mercado que não é bobo percebeu isso, e as condições financeiras voltaram a melhorar. Quando ele tira o pé e as condições financeiras se afrouxam, obviamente, a demanda se recuperara e as tais medidas de vendas finais, que são métricas para avaliar o comportamento da demanda, voltam a subir na média. A demanda se recuperou significativamente.

E o que explica a inflação cair, então?

Foram três forças importantes. A dissipação do choque da pandemia, aqueles gargalos de oferta, aquele deslocamento da demanda de serviço para bens e, depois, de volta para serviços. Em segundo lugar, houve o efeito da própria política monetária. Ela foi significativa? Eu acho que não. E por quê? Porque, como eu disse, a demanda não foi contida, mas isso não quer dizer que ela não tenha ajudado. Claro que ajudou, especialmente em seus efeitos sobre alguns setores, por exemplo, como o de construção. E teve outro efeito importante da política monetária, que foi ajudar a reverter a tendência das expectativas. As expectativas estavam em alta até o meio de 2022. Quando o Fed começa a agir, elas voltam a ceder.

E a situação da Europa? É de um pouso suave?

Quando eu vou olhar para o Reino Unido e para a zona do euro, vejo que a inflação veio bem para baixo, e as taxas de desemprego não foram afetadas, embora seja verdade que as duas regiões têm experimentado uma desaceleração importante da atividade econômica, mas sem entrar em recessão. Nessas regiões, tem muita gente lembrando que é praticamente um pouso suave, mas não é tão acentuado quanto no caso dos Estados Unidos.

E o que esperar daqui em diante?

A atitude do Powell parece uma atitude de quem ganhou a parada. Ou seja, de vitória da tese do pouso suave. E isso seguramente tem influenciado e continuará influenciando a condução da política monetária. Ao reduzir os juros em 0,50 ponto porcentual na última reunião, ao contrário de um corte de 0,25, que era o que se esperava há quatro dias da decisão, ele agiu de maneira a dar um sinal. E o que ele disse é de que queria mostrar o compromisso com a tese do pouso suave. Foi um movimento de sinalização.

Por ora, então, a gente caminha para esse cenário, mas não é certeza?

Eu acho que tem uma chance boa de se concretizar, mas ainda não é certo. E a razão é que o mecanismo clássico de derrubar a inflação, que funciona pelo aperto das condições financeiras e, consequentemente, com a contenção da demanda agregada, não aconteceu. Na Europa, tem um jeitão de pouso suave, mas os dirigentes desses dois bancos centrais não estão indo com muita sede ao pote, porque entendem que o jogo não acabou ainda. Eu suspeito que nos Estados Unidos acabará prevalecendo uma cautela também.

Ex-diretor do Banco Central, José Júlio Senna passou a se debruçar sobre a discussão de a economia dos Estados Unidos conseguir o chamado pouso suave – ou seja, se o Federal Reserve (Fed, BC norte-americano) foi capaz de endurecer a política monetária sem levar a economia dos Estados Unidos para o cenário de recessão.

“Eu acho que tem uma chance boa de se concretizar, mas ainda não é certo”, afirmou Senna, chefe do Centro de Estudos Monetários do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV/Ibre).

Senna ainda alerta para uma demanda aquecida, o que, portanto, permanece como um risco para o Fed conseguir entregar a inflação na meta de 2%. “O mecanismo clássico de derrubar a inflação, que funciona pelo aperto das condições financeiras e, consequentemente, com a contenção da demanda agregada, não aconteceu” diz.

A seguir os principais trechos da entrevista concedida ao Estadão.

Olhando em retrospectiva, qual é a avaliação que o sr. faz sobre o comportamento do Fed no combate à inflação?

O Fed demorou muito para se mexer na direção de fazer um ajuste monetário para conter a inflação. Mas quando começou, começou muito firme. Houve aumentos seguidos de 0,75 ponto porcentual. Não são usuais ajustes dessa natureza. Ele demorou porque havia aquela história de que o surto inflacionário era transitório e, depois, percebeu-se que não era. O Fed começou a fazer os ajustes em março de 2022. Em agosto daquele ano, o Powell vai a Jackson Hole, no famoso simpósio, e diz que restabelecer a estabilidade de preços, ou seja, levar a inflação para a meta de 2%, exigiria um “período sustentado de crescimento econômico abaixo da tendência”. E ele vai mais adiante (na sua fala). Diz que “juros mais elevados, crescimento mais lento, mercado de trabalho mais enfraquecido trarão a inflação para baixo”. E acrescenta: “são os custos para reduzir a inflação”.

O que ele quis dizer naquele momento?

Quando começa (a subir os juros), ele vem com tudo e não tem dúvida em ressaltar que o processo de levar a inflação para 2% - do que ele chama de estabilidade de preços - causaria dor, teria custos. E que, se ele não fizesse isso, o custo seria pior ainda. Era esse quadro em agosto de 2022. E eu queria lembrar um aspecto extremamente importante de toda essa história. Em 2022, o Fed agiu rigorosamente seguindo os protocolos. E os efeitos das ações foram rigorosamente de acordo com o esperado. Ele conseguiu elevar as taxas longas dos juros de 10 anos, por exemplo. Conseguiu fortalecer o dólar, que ganhou impulso extra com a invasão da Ucrânia pela Rússia. Jogou as bolsas para baixo. Em 2022, as bolsas caíram mais de 20%. Elevou os spreads corporativos. Ou seja, a política (monetária) chegou ao mercado de capitais.

O Fed conseguiu um aperto muito significativo das condições financeiras, que é um objetivo básico de uma política monetária anti-inflacionária. Para ter sucesso, toda política monetária voltada para combate à inflação passa necessariamente pela contenção da demanda agregada. Você tem de segurar a expansão da demanda.

E como a expansão desse demanda foi contida?

Nos Estados Unidos, são duas métricas muito usadas para avaliar o comportamento da demanda. Essas métricas são chamadas nas estatísticas americanas de vendas finais. Existem as vendas finais para compradores domésticos e as vendas finais para compradores domésticos privados. Pelas duas métricas, o ano inteiro de 2022 foi de contenção. Eu diria que a política monetária americana naquele período teve efeitos muito positivos, no sentido de atingir um objetivo fundamental, que é conter a expansão da demanda de alguma maneira. O crescimento foi inferior a 1% ao ano em termos reais.

E o que também aconteceu ainda em 2022 de muito interessante? Houve um artigo do membro do board (do Fed), do Christopher Waller. Em maio de 2022, ele fez uma apresentação na Alemanha. E ele dizia o seguinte: existe uma espécie de uma sabedoria convencional de que uma política monetária apertada tende a acarretar a alta significativa de juros e, se mantida com firmeza, acaba reduzindo o crescimento de preço, a taxa de inflação. Mas o custo a pagar é aquele que o Powell dizia, que era provocar desemprego, prejudicar o crescimento econômico e esfriar o mercado de trabalho. Era o Waller dizendo a essência da sabedoria convencional. O raciocínio que ele teve foi o seguinte: olhando a alta significativa da relação entre vagas abertas, que é a demanda por trabalhador, e desempregados, ele concluiu que a situação era de um aperto muito expressivo no mercado de trabalho. E era mesmo. Foi uma relação inédita.

José Júlio Senna, ex-diretor do Banco Central Foto: FOTO Marcelo Freire-FGV

Poderia detalhar esse trabalho do Waller?

O trabalho formal dele está lá no site do Fed e gerou muita polêmica. Ele não fez nenhuma prescrição de política monetária, não teceu considerações sobre como a política monetária deveria ser desenvolvida para chegar a um pouso suave. É um paper de natureza acadêmica. Ele examina quais condições precisam ser preenchidas para que a economia tenha um pouso suave. Ele chega à conclusão de que duas coisas precisariam acontecer para o pouso suave. Primeiro, o ponto de partida teria de ser uma alta relação entre vagas e desempregados - e era exatamente esse o ponto em que a gente estava ali. E segundo fator, o volume de demissões tem de ser baixo. Se as demissões fossem num volume muito grande, tudo iria por água abaixo. Essa é a contribuição do Waller. Ela é teórica.

Qual é o impacto dessa elevada relação entre vagas e desempregados?

Ela acarreta pressões inflacionárias mais elevadas. E eu diria por dois fatores. Primeiro, o mercado de trabalho apertado, como indicado por uma alta entre a relação de vagas e desempregados, dá muita confiança para os empregados. Eles se sentem bem, relativamente seguros e vão às compras. O mercado de trabalho apertado empurra os trabalhadores para as compras. O consumo tende a se ampliar. O segundo fator é o seguinte: os empregadores têm de ajustar o salário dos empregados com bastante carinho, digamos assim. Se não cuidar bem deles, pedem demissão, porque as vagas abertas estão em profusão. Isso pressiona os ajustes de salários para cima e tende a ser uma força especialmente forte para a inflação de serviços e, em consequência, para a inflação como um todo.

Tentando interpretar o Waller, ele deve ter pensado: quem sabe eu consigo ajustar a política monetária, sem imprimir muito vigor, de maneira a promover um reequilíbrio do mercado de trabalho, cortando apenas o excesso das vagas abertas. Tem uma relação entre vagas e desempregados acima do normal. Quem sabe se trouxer isso para uma coisa mais normal, observada em outros momentos, seja possível diminuir as pressões inflacionárias. E como é que ele diminuiria? Ele iria tirar grande parte da confiança dos trabalhadores que estão gastando muito, para atuar sobre o consumo, e a pressões de ajustes salariais também diminuiriam. Agora, teria de ser uma coisa muito bem calibrada para corrigir apenas o excesso de vagas abertas. Isso deve ter sido o que passou na cabeça dele.

Na avaliação do sr., o Powell comprou essa história?

De imediato, não. Como eu sei que não comprou? Porque o paper do Waller é de maio, e, em agosto, ele (Powell) falava que haveria custo, que o mercado de trabalho iria sofrer. Ele não tinha comprado. Só que, em algum momento de 2023, o Powell começa a mostrar simpatia pela tese do Waller. Em outras palavras, começa a acreditar nessa possibilidade. Abriu-se ali uma possibilidade, com respaldo de um trabalho acadêmico, de contradizer a tal sabedoria convencional, de trazer a inflação para baixo sem provocar aumento de desemprego. Então, ele, aparentemente, a partir de um certo ponto, se encantou com a possibilidade. Em algum momento de 2023, o Powell tira o pé. Ele tira o pé não reduzindo os juros, mas nos discursos, no tom das mensagens. E o mercado que não é bobo percebeu isso, e as condições financeiras voltaram a melhorar. Quando ele tira o pé e as condições financeiras se afrouxam, obviamente, a demanda se recuperara e as tais medidas de vendas finais, que são métricas para avaliar o comportamento da demanda, voltam a subir na média. A demanda se recuperou significativamente.

E o que explica a inflação cair, então?

Foram três forças importantes. A dissipação do choque da pandemia, aqueles gargalos de oferta, aquele deslocamento da demanda de serviço para bens e, depois, de volta para serviços. Em segundo lugar, houve o efeito da própria política monetária. Ela foi significativa? Eu acho que não. E por quê? Porque, como eu disse, a demanda não foi contida, mas isso não quer dizer que ela não tenha ajudado. Claro que ajudou, especialmente em seus efeitos sobre alguns setores, por exemplo, como o de construção. E teve outro efeito importante da política monetária, que foi ajudar a reverter a tendência das expectativas. As expectativas estavam em alta até o meio de 2022. Quando o Fed começa a agir, elas voltam a ceder.

E a situação da Europa? É de um pouso suave?

Quando eu vou olhar para o Reino Unido e para a zona do euro, vejo que a inflação veio bem para baixo, e as taxas de desemprego não foram afetadas, embora seja verdade que as duas regiões têm experimentado uma desaceleração importante da atividade econômica, mas sem entrar em recessão. Nessas regiões, tem muita gente lembrando que é praticamente um pouso suave, mas não é tão acentuado quanto no caso dos Estados Unidos.

E o que esperar daqui em diante?

A atitude do Powell parece uma atitude de quem ganhou a parada. Ou seja, de vitória da tese do pouso suave. E isso seguramente tem influenciado e continuará influenciando a condução da política monetária. Ao reduzir os juros em 0,50 ponto porcentual na última reunião, ao contrário de um corte de 0,25, que era o que se esperava há quatro dias da decisão, ele agiu de maneira a dar um sinal. E o que ele disse é de que queria mostrar o compromisso com a tese do pouso suave. Foi um movimento de sinalização.

Por ora, então, a gente caminha para esse cenário, mas não é certeza?

Eu acho que tem uma chance boa de se concretizar, mas ainda não é certo. E a razão é que o mecanismo clássico de derrubar a inflação, que funciona pelo aperto das condições financeiras e, consequentemente, com a contenção da demanda agregada, não aconteceu. Na Europa, tem um jeitão de pouso suave, mas os dirigentes desses dois bancos centrais não estão indo com muita sede ao pote, porque entendem que o jogo não acabou ainda. Eu suspeito que nos Estados Unidos acabará prevalecendo uma cautela também.

Ex-diretor do Banco Central, José Júlio Senna passou a se debruçar sobre a discussão de a economia dos Estados Unidos conseguir o chamado pouso suave – ou seja, se o Federal Reserve (Fed, BC norte-americano) foi capaz de endurecer a política monetária sem levar a economia dos Estados Unidos para o cenário de recessão.

“Eu acho que tem uma chance boa de se concretizar, mas ainda não é certo”, afirmou Senna, chefe do Centro de Estudos Monetários do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (FGV/Ibre).

Senna ainda alerta para uma demanda aquecida, o que, portanto, permanece como um risco para o Fed conseguir entregar a inflação na meta de 2%. “O mecanismo clássico de derrubar a inflação, que funciona pelo aperto das condições financeiras e, consequentemente, com a contenção da demanda agregada, não aconteceu” diz.

A seguir os principais trechos da entrevista concedida ao Estadão.

Olhando em retrospectiva, qual é a avaliação que o sr. faz sobre o comportamento do Fed no combate à inflação?

O Fed demorou muito para se mexer na direção de fazer um ajuste monetário para conter a inflação. Mas quando começou, começou muito firme. Houve aumentos seguidos de 0,75 ponto porcentual. Não são usuais ajustes dessa natureza. Ele demorou porque havia aquela história de que o surto inflacionário era transitório e, depois, percebeu-se que não era. O Fed começou a fazer os ajustes em março de 2022. Em agosto daquele ano, o Powell vai a Jackson Hole, no famoso simpósio, e diz que restabelecer a estabilidade de preços, ou seja, levar a inflação para a meta de 2%, exigiria um “período sustentado de crescimento econômico abaixo da tendência”. E ele vai mais adiante (na sua fala). Diz que “juros mais elevados, crescimento mais lento, mercado de trabalho mais enfraquecido trarão a inflação para baixo”. E acrescenta: “são os custos para reduzir a inflação”.

O que ele quis dizer naquele momento?

Quando começa (a subir os juros), ele vem com tudo e não tem dúvida em ressaltar que o processo de levar a inflação para 2% - do que ele chama de estabilidade de preços - causaria dor, teria custos. E que, se ele não fizesse isso, o custo seria pior ainda. Era esse quadro em agosto de 2022. E eu queria lembrar um aspecto extremamente importante de toda essa história. Em 2022, o Fed agiu rigorosamente seguindo os protocolos. E os efeitos das ações foram rigorosamente de acordo com o esperado. Ele conseguiu elevar as taxas longas dos juros de 10 anos, por exemplo. Conseguiu fortalecer o dólar, que ganhou impulso extra com a invasão da Ucrânia pela Rússia. Jogou as bolsas para baixo. Em 2022, as bolsas caíram mais de 20%. Elevou os spreads corporativos. Ou seja, a política (monetária) chegou ao mercado de capitais.

O Fed conseguiu um aperto muito significativo das condições financeiras, que é um objetivo básico de uma política monetária anti-inflacionária. Para ter sucesso, toda política monetária voltada para combate à inflação passa necessariamente pela contenção da demanda agregada. Você tem de segurar a expansão da demanda.

E como a expansão desse demanda foi contida?

Nos Estados Unidos, são duas métricas muito usadas para avaliar o comportamento da demanda. Essas métricas são chamadas nas estatísticas americanas de vendas finais. Existem as vendas finais para compradores domésticos e as vendas finais para compradores domésticos privados. Pelas duas métricas, o ano inteiro de 2022 foi de contenção. Eu diria que a política monetária americana naquele período teve efeitos muito positivos, no sentido de atingir um objetivo fundamental, que é conter a expansão da demanda de alguma maneira. O crescimento foi inferior a 1% ao ano em termos reais.

E o que também aconteceu ainda em 2022 de muito interessante? Houve um artigo do membro do board (do Fed), do Christopher Waller. Em maio de 2022, ele fez uma apresentação na Alemanha. E ele dizia o seguinte: existe uma espécie de uma sabedoria convencional de que uma política monetária apertada tende a acarretar a alta significativa de juros e, se mantida com firmeza, acaba reduzindo o crescimento de preço, a taxa de inflação. Mas o custo a pagar é aquele que o Powell dizia, que era provocar desemprego, prejudicar o crescimento econômico e esfriar o mercado de trabalho. Era o Waller dizendo a essência da sabedoria convencional. O raciocínio que ele teve foi o seguinte: olhando a alta significativa da relação entre vagas abertas, que é a demanda por trabalhador, e desempregados, ele concluiu que a situação era de um aperto muito expressivo no mercado de trabalho. E era mesmo. Foi uma relação inédita.

José Júlio Senna, ex-diretor do Banco Central Foto: FOTO Marcelo Freire-FGV

Poderia detalhar esse trabalho do Waller?

O trabalho formal dele está lá no site do Fed e gerou muita polêmica. Ele não fez nenhuma prescrição de política monetária, não teceu considerações sobre como a política monetária deveria ser desenvolvida para chegar a um pouso suave. É um paper de natureza acadêmica. Ele examina quais condições precisam ser preenchidas para que a economia tenha um pouso suave. Ele chega à conclusão de que duas coisas precisariam acontecer para o pouso suave. Primeiro, o ponto de partida teria de ser uma alta relação entre vagas e desempregados - e era exatamente esse o ponto em que a gente estava ali. E segundo fator, o volume de demissões tem de ser baixo. Se as demissões fossem num volume muito grande, tudo iria por água abaixo. Essa é a contribuição do Waller. Ela é teórica.

Qual é o impacto dessa elevada relação entre vagas e desempregados?

Ela acarreta pressões inflacionárias mais elevadas. E eu diria por dois fatores. Primeiro, o mercado de trabalho apertado, como indicado por uma alta entre a relação de vagas e desempregados, dá muita confiança para os empregados. Eles se sentem bem, relativamente seguros e vão às compras. O mercado de trabalho apertado empurra os trabalhadores para as compras. O consumo tende a se ampliar. O segundo fator é o seguinte: os empregadores têm de ajustar o salário dos empregados com bastante carinho, digamos assim. Se não cuidar bem deles, pedem demissão, porque as vagas abertas estão em profusão. Isso pressiona os ajustes de salários para cima e tende a ser uma força especialmente forte para a inflação de serviços e, em consequência, para a inflação como um todo.

Tentando interpretar o Waller, ele deve ter pensado: quem sabe eu consigo ajustar a política monetária, sem imprimir muito vigor, de maneira a promover um reequilíbrio do mercado de trabalho, cortando apenas o excesso das vagas abertas. Tem uma relação entre vagas e desempregados acima do normal. Quem sabe se trouxer isso para uma coisa mais normal, observada em outros momentos, seja possível diminuir as pressões inflacionárias. E como é que ele diminuiria? Ele iria tirar grande parte da confiança dos trabalhadores que estão gastando muito, para atuar sobre o consumo, e a pressões de ajustes salariais também diminuiriam. Agora, teria de ser uma coisa muito bem calibrada para corrigir apenas o excesso de vagas abertas. Isso deve ter sido o que passou na cabeça dele.

Na avaliação do sr., o Powell comprou essa história?

De imediato, não. Como eu sei que não comprou? Porque o paper do Waller é de maio, e, em agosto, ele (Powell) falava que haveria custo, que o mercado de trabalho iria sofrer. Ele não tinha comprado. Só que, em algum momento de 2023, o Powell começa a mostrar simpatia pela tese do Waller. Em outras palavras, começa a acreditar nessa possibilidade. Abriu-se ali uma possibilidade, com respaldo de um trabalho acadêmico, de contradizer a tal sabedoria convencional, de trazer a inflação para baixo sem provocar aumento de desemprego. Então, ele, aparentemente, a partir de um certo ponto, se encantou com a possibilidade. Em algum momento de 2023, o Powell tira o pé. Ele tira o pé não reduzindo os juros, mas nos discursos, no tom das mensagens. E o mercado que não é bobo percebeu isso, e as condições financeiras voltaram a melhorar. Quando ele tira o pé e as condições financeiras se afrouxam, obviamente, a demanda se recuperara e as tais medidas de vendas finais, que são métricas para avaliar o comportamento da demanda, voltam a subir na média. A demanda se recuperou significativamente.

E o que explica a inflação cair, então?

Foram três forças importantes. A dissipação do choque da pandemia, aqueles gargalos de oferta, aquele deslocamento da demanda de serviço para bens e, depois, de volta para serviços. Em segundo lugar, houve o efeito da própria política monetária. Ela foi significativa? Eu acho que não. E por quê? Porque, como eu disse, a demanda não foi contida, mas isso não quer dizer que ela não tenha ajudado. Claro que ajudou, especialmente em seus efeitos sobre alguns setores, por exemplo, como o de construção. E teve outro efeito importante da política monetária, que foi ajudar a reverter a tendência das expectativas. As expectativas estavam em alta até o meio de 2022. Quando o Fed começa a agir, elas voltam a ceder.

E a situação da Europa? É de um pouso suave?

Quando eu vou olhar para o Reino Unido e para a zona do euro, vejo que a inflação veio bem para baixo, e as taxas de desemprego não foram afetadas, embora seja verdade que as duas regiões têm experimentado uma desaceleração importante da atividade econômica, mas sem entrar em recessão. Nessas regiões, tem muita gente lembrando que é praticamente um pouso suave, mas não é tão acentuado quanto no caso dos Estados Unidos.

E o que esperar daqui em diante?

A atitude do Powell parece uma atitude de quem ganhou a parada. Ou seja, de vitória da tese do pouso suave. E isso seguramente tem influenciado e continuará influenciando a condução da política monetária. Ao reduzir os juros em 0,50 ponto porcentual na última reunião, ao contrário de um corte de 0,25, que era o que se esperava há quatro dias da decisão, ele agiu de maneira a dar um sinal. E o que ele disse é de que queria mostrar o compromisso com a tese do pouso suave. Foi um movimento de sinalização.

Por ora, então, a gente caminha para esse cenário, mas não é certeza?

Eu acho que tem uma chance boa de se concretizar, mas ainda não é certo. E a razão é que o mecanismo clássico de derrubar a inflação, que funciona pelo aperto das condições financeiras e, consequentemente, com a contenção da demanda agregada, não aconteceu. Na Europa, tem um jeitão de pouso suave, mas os dirigentes desses dois bancos centrais não estão indo com muita sede ao pote, porque entendem que o jogo não acabou ainda. Eu suspeito que nos Estados Unidos acabará prevalecendo uma cautela também.

Entrevista por Luiz Guilherme Gerbelli

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.