BRASÍLIA – O economista Manoel Pires avalia que o pacote de contenção de gastos apresentado pela equipe econômica no último dia 27 é uma demonstração de que o governo está fazendo um esforço para tentar cumprir as regras fiscais. No entanto, a decisão de incluir no anúncio a isenção do Imposto de Renda até R$ 5 mil frustrou as expectativas do mercado financeiro sobretudo pelo “timing” – além de vir na contramão da expectativa de ajuste fiscal, vai gerar estímulo ao consumo no ano eleitoral de 2026, colocando mais pressão sobre a inflação e a política de juros do Banco Central.
“O mercado esperava um ajuste para alinhar a política fiscal às regras fiscais e, consequentemente, diminuir um pouco de pressão de demanda agregada e gerar um alívio de juros e de câmbio por conta desse canal de transmissão da expectativa de inflação. Quando você coloca esse tema novo na mesa (isenção do IR), obviamente que esse sinal fica invertido”, afirmou ao Estadão o coordenador do Centro de Política Fiscal e Orçamento Público (CPFO) do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV).
Pires entende que o aumento da faixa de isenção do IR é importante para diminuir as desigualdades de renda no País, mas que o valor de R$ 5 mil é “exagerado” sob qualquer comparação internacional. Ele defende, contudo, a taxação dos mais ricos com um imposto mínimo e calcula que a medida é suficiente para compensar a perda de receita – estimada por ele em torno de R$ 25 bilhões.
Pires diz que há medidas importantes no pacote – que veio em linha com o número esperado pelo mercado, em torno de R$ 70 bilhões até o final do mandato –, mas que, como sinalizou o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, “é muito provável” que novas medidas sejam anunciadas ao longo do próximo ano. A seguir, os principais trechos da entrevista.
Qual a sua avaliação sobre o pacote anunciado pelo governo federal?
Acho que existem três dimensões para avaliarmos. A primeira é até que ponto o pacote seria suficiente para que houvesse uma melhora das condições financeiras – ou seja, apreciação do câmbio, redução das taxas de juros longas e reação do mercado. Nesse aspecto, a resposta foi ruim. Então, um dos objetivos não parece ter sido alcançado. Acho que a segunda dimensão é até que ponto ele atenua as pressões sobre o arcabouço. O que o governo apresentou tem um ajuste fiscal relevante e acho que dentro do número que me parecia esperado pelo mercado, de R$ 70 bilhões em dois anos.
E qual o terceiro ponto?
O governo teve preocupação de apresentar medidas que pudessem passar algum sentido de justiça social para aumentar a probabilidade de aprovação. Nesse ponto, acho que o pacote tem uma grande chance de ser aprovado na maior parte das medidas. Uma coisa que tem de ser avaliada é que, possivelmente, por conta de questão de calendário, o pacote não vai ser todo aprovado este ano. Então, o impacto que está previsto para 2025 pode ser um pouco menor. No ano que vem, possivelmente vamos ver alguma discussão do arcabouço, de como o governo vai cumprir a meta, de ter de fazer contingenciamento (congelamento preventivo de despesas) novo ou adotar algumas medidas complementares para produzir o efeito desejado.
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Na composição do pacote, o que o sr. entende como medidas estruturais e o que são medidas paliativas?
Vou chamar de estrutural medidas que tenham efeito mais permanente ao longo do tempo – ou seja, com as quais o governo consegue controlar o gasto de maneira mais efetiva. Uma é a questão do salário mínimo (que vai ter um teto de crescimento de 2,5% ao ano acima da inflação). Isso é um tema caro para o governo. Foi ele que fez essa proposta e está, um ano depois, revisando. Então, acho que esse é um ponto forte. Tem a questão do abono salarial, que é estrutural, mas tem um efeito muito pequeno de curto prazo. Além disso, tem o Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica), que tem um peso importante. A DRU (Desvinculação de Receitas da União), que estaria se tornando permanente. E a questão das emendas, a depender de como é que o Congresso vai receber essa notícia. Eu acho que esses são os elementos mais significativos do pacote.
O pacote é capaz de ajudar a garantir a estabilidade da dívida pública?
O horizonte de estabilização da dívida está indo para além deste governo. O que nós temos é uma perspectiva de estabilização num prazo muito longo, para 2028, 2029, dependendo das premissas com que se trabalha – em alguns outros casos, até 2030. Esse pacote mantém esse cenário. O teto do salário mínimo abre algum espaço fiscal, mas não resolve a questão de maneira permanente.
É possível dar sustentabilidade ao arcabouço sem mexer na Previdência?
O que explica o crescimento do gasto público desde 1997 são principalmente as políticas de transferência de renda. Você tem Previdência, BPC (Benefício de Prestação Continuada), Bolsa Família, seguro-desemprego, abono. Eles respondem por mais da metade do gasto público, cerca de 57%. Então, é muito difícil fazer um ajuste fiscal de proporção relevante sem discutir esses gastos sociais em algum grau. Se você tirar os gastos com transferência de renda da discussão, fica muito mais difícil fazer o ajuste. O seguro-desemprego (que não foi incluído) não chega a ser um grande problema para o arcabouço, mas é um problema de desenho de política pública: não faz muito sentido você ter desemprego baixo e aumento desse gasto. Vale para o abono salarial também, que está sendo objeto do pacote que o governo anunciou.
O que faltou na condução de expectativa em relação ao anúncio do pacote?
O que levou à reação ruim do mercado foi que o pacote veio com um conjunto de medidas que não era só de ajuste fiscal. Quando você traz a discussão do Imposto de Renda, você tem um elemento de estímulo para a economia. Você vai fazer uma grande desoneração, que vai ser compensada com uma tributação concentrada no topo da renda. Isso claramente é estimulativo. À medida que essa medida venha a ser aprovada, ela vai gerar um estímulo maior de demanda agregada – consequentemente, um crescimento maior, um pouco mais de inflação e juros mais altos. Então, esse foi o aspecto não esperado. O mercado esperava um ajuste para alinhar a política fiscal às regras fiscais e, consequentemente, diminuir um pouco de pressão de demanda agregada e gerar um alívio de juros e de câmbio por conta desse canal de transmissão da expectativa de inflação. Quando você coloca esse tema novo na mesa, obviamente que esse sinal fica invertido.
Em outras palavras, essa medida é inflacionária?
Há uma medida que reflete um estímulo relevante para a atividade econômica, principalmente em 2026 e, evidentemente, nesse contexto que nós estamos, isso pode levar a uma perspectiva de um risco inflacionário um pouco mais alto e, consequentemente, um aumento de juros maior que o previsto da parte do Banco Central. Acho que esse aspecto do anúncio acabou prevalecendo sobre as expectativas porque era a parte nova, a parte que não estava precificada do pacote fiscal do governo.
Além desse elemento surpresa, tem a tributação das faixas de alta renda. Isso também pesou?
Há um problema de timing, de vir na hora em que se esperava o ajuste, e não medidas de estímulo. Mas mesmo que viesse depois, haveria alguma reação negativa, porque parte da compensação atinge o mercado financeiro, com progressividade tributária, medidas que atingem as isenções de LCA, LCI, dividendos. Se tributa o dividendo, cai a rentabilidade, o investidor muda o portfólio. Essa questão aconteceria independentemente do momento do anúncio.
O Banco Central está mais pressionado a subir a Selic?
Os dados de inflação de curto prazo não têm sido favoráveis. Eles têm mostrado pressões inflacionárias, surpresas para cima. A tendência é o Banco Central reagir a esses dados e continuar a trajetória do aumento de juros. Com esse comportamento de câmbio de juros, a tendência é a inflação ficar um pouco mais alta, e o Banco Central vai ter de incorporar isso no cenário dele para definir a política monetária.
Haddad falou que não existe bala de prata na política fiscal e não descartou voltar a Lula. O governo vai ter de apresentar novas medidas?
O pacote é uma demonstração de que o governo está fazendo um esforço para tentar cumprir as regras fiscais. Foi isso que motivou o anúncio. Eu concordo com o ministro, no sentido de que tenho muita dificuldade de ver uma bala de prata para resolver o problema fiscal no Brasil. Nesse sentido, é muito provável que a gente veja iniciativas novas sendo feitas ao longo do próximo ano. Em 2026 é mais difícil porque a questão política fica muito presente – e isso acaba levando a uma reorientação das políticas de governo, tal como vimos acontecer em 2022.
A ampliação da isenção do Imposto de Renda é uma medida ruim ou só veio na hora errada?
A medida que o governo está adotando de compensação é boa. Quando se olha a estrutura do Imposto de Renda no Brasil, existem várias fontes de renda que não são tributadas de forma adequada e que são muito importantes para quem está nos decis de renda mais elevados. Isso acaba fazendo com que a carga efetiva de quem está no topo da renda seja menor do que quem está no meio da distribuição de renda. Então, nosso sistema de Imposto de Renda Pessoa Física é absolutamente injusto e equivocado. Adotar uma alíquota mínima sobre rendas muito elevadas corrige esse problema. Então, essa medida eu acho correta.
Mas e a isenção até R$ 5 mil?
Do ponto de vista distributivo, acho que a medida é estrutural e bastante importante. A classe média sofreu muito nos últimos anos de baixo crescimento econômico e é importante ter essa dimensão política. Mas a faixa de isenção é muito elevada para qualquer padrão internacional que se costuma usar como base de comparação. Então, essa desoneração me parece exagerada e traz uma concepção equivocada do papel que esse tipo de imposto tem na sociedade.
E o momento também foi ruim?
Estamos com uma economia crescendo acima do potencial há alguns anos, a taxa de desemprego está atingindo mínimas históricas, e fornecer um estímulo fiscal não é uma decisão de política econômica adequada. Então, eu acho que a isenção é equivocada no timing econômico. Hoje a economia está pedindo algum tipo de ajuste fiscal para diminuir o estímulo de demanda agregada e conciliar com o Banco Central na tarefa de convergir a inflação, aproximar a inflação da meta; ela não está pedindo mais estímulo.
Aumentar a isenção do IR exige compensação, de acordo com a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF)?
Eu entendo que sim. Mas tem um risco fiscal eventualmente de o Congresso aprovar uma coisa sem aprovar outra. Isso eu acho que o mercado coloca um peso. Mas, de fato, a LRF diz que, nesse caso você deveria adotar uma medida compensatória. O governo está correto, mas existe a dúvida se o Congresso vai, de fato, atender a esse requisito. Lá atrás, quando essa questão surgiu, quando o Paulo Guedes (ministro da Economia no governo Bolsonaro) fez aquela reforma do Imposto de Renda em 2021, a reforma ficou tão ruim na implementação do Congresso que o próprio governo abandonou. Se ficar com um buraco muito grande, eventualmente o governo pode rever a decisão.