Desigualdade no Brasil não se resolve só com educação e taxas sobre grandes fortunas, diz sociólogo


Em livro recém-publicado, Marcelo Medeiros defende que todas as políticas adotadas no País têm de levar em conta o combate à desigualdade

Por Luiz Guilherme Gerbelli
Atualização:
Foto: Esperança Dias/Divulgação/Companhia das letras
Entrevista comMarcelo MedeirosProfessor visitante na Universidade Columbia, em Nova York. Também é pesquisador no Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e doutor em sociologia pela UnB

Autor do recém-lançado livro Os ricos e os pobres: O Brasil e a desigualdade, o sociólogo Marcelo Medeiros diz que não há uma resposta simples para a resolver a desigualdade brasileira, um assunto muito complexo e que domina a pauta de discussão há décadas.

“O simplismo pode atrapalhar a redução das desigualdades no Brasil”, afirma. “Temos vários tipos de desigualdades. E diferentes tipos de desigualdades vão exigir diferentes maneiras de enfrentamento.”

Professor visitante da Universidade Columbia, em Nova York, Medeiros diz que seu livro “busca mais oferecer ferramentas do que uma receita do que deve ser feito” e que todas as políticas adotadas pelo País deveriam ir na direção de reduzir a desigualdade.

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“É algo tão disseminado que todas as políticas têm de prestar a atenção na desigualdade. Quando a gente define, por exemplo, o subsídio para as empresas, temos de parar e perguntar: quem vai ganhar mais e quem vai perder com isso?”

Marcelo Medeiros, autor de 'Os ricos e os pobres: O Brasil e a desigualdade' Foto: Esperança Dias/Divulgação/Companhia das letras

A seguir trechos da entrevista concedida ao Estadão.

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Quais foram as escolhas feitas no Brasil para chegar à situação em que estamos em relação à desigualdade?

Nenhum país chega em um nível tão grande de desigualdade como o do Brasil em função de um conjunto limitado de fatores. Para o Brasil ser tão desigual, tem de ser resultado de um conjunto gigantesco de coisas acontecendo e todas levando na direção de mais desigualdade. Uma coisa importante é entender que a desigualdade no País não tem uma causa principal nem é um conjunto de causas principais. Ela está espalhada em absolutamente tudo. É fácil a gente pensar nisso. Por exemplo, quando pensamos por que as mulheres são desiguais em relação aos homens. Você não resume isso a um conjunto pequeno de coisas. Tem de entender que é resultado de um conjunto gigantesco de forças o tempo inteiro, levando na direção da desigualdade. É o caso do Brasil. Não faz sentido tentar fazer uma lista do que causa a desigualdade no Brasil. O que faz sentindo é pensar na consequência desse raciocínio.

E qual é essa consequência?

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É que nós não temos uma política de combate à desigualdade. Não existe um conjunto de medidas para combater a desigualdade. A preocupação com a desigualdade tem de estar presente em todas as políticas. Essa é a ideia. É algo tão disseminado que todas as políticas têm de prestar a atenção na desigualdade. Quando a gente define, por exemplo, o subsídio para as empresas, temos de parar e perguntar: quem vai ganhar mais e quem vai perder com isso? Quando a gente decide nossa política monetária, temos de fazer uma pergunta o tempo inteiro: quem são os vencedores e quem são os perdedores desse jogo? Em outras palavras, a ideia é pensar todas as políticas como sendo políticas sociais, porque toda política tem impacto social.

A ideia do livro é exatamente que não existe um arcabouço de medidas para reduzir a desigualdade...

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Todas as medidas têm de estar preocupadas com a desigualdade, porque a desigualdade está infiltrada em todos os aspectos da nossa vida. Temos vários tipos de desigualdades. E diferentes tipos de desigualdades vão exigir diferentes maneiras de enfrentamento. O que eu faço no livro é justamente tentar tirar alguns mitos sobre o que vai tornar o Brasil um país mais igual. O primeiro, mais fácil de entender, é a educação. É preciso deslocar um pouco esse mito de que basta resolver o problema educacional para a desigualdade do Brasil cair ou que essa é a principal estratégia para reduzir a desigualdade.

Por quê?

A educação é um tema muito genérico. A educação que realmente afeta a desigualdade é a de Ensino Superior, mas sequer o Ensino Superior seria suficiente para provocar quedas muito grandes na desigualdade. Por exemplo, se você desse doutorado para todos os trabalhadores brasileiros, ainda assim, a desigualdade, talvez, não chegasse a cair 20%. Dado, obviamente, que essa situação beira o absurdo, porque tecnicamente está fora de condição de se fazer isso, essa é uma mudança gigantesca no mercado de trabalho, teria de ser feita há quase meio século e, mesmo assim, o impacto não seria tão grande comparado com a magnitude do que está sendo movido. O que isso sinaliza? Educação é alguma coisa necessária, mas ela é insuficiente para acabar com a pobreza.

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Outra coisa que eu tento também tirar um pouco da lista de coisas é a discussão de que basta criar um imposto sobre grandes fortunas. Não é também só isso. Não vai ser uma atividade isolada ou um pequeno conjunto de coisas que vai fazer a desigualdade cair.

O sr. acha que esse tipo de diagnóstico vai ser incorporado no País?

É difícil dizer. Existe uma preocupação crescente com a desigualdade. Coisas que eram simplesmente desprezadas no passado, há menos de duas décadas, estão completamente incorporadas na discussão hoje. A desigualdade racial era basicamente um tema tabu até meados dos anos 2000. Hoje em dia, é um tema que marca completamente a pauta brasileira. Nesse sentido, existe um avanço na direção de tornar o Brasil mais igual. As discussões de saúde sexual reprodutiva, que são muito importantes no trabalho da mulher, como, por exemplo aborto e contracepção, que estavam colocadas sempre de fora dessa discussão, agora, já estão incorporadas como parte, inclusive, do debate sobre desigualdade de renda dentro do mercado trabalho entre mulheres e homens. Existe uma tendência de incorporação desses assuntos, mas eu não consigo prever o que vai acontecer no futuro.

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Qual é a implicação de ver a desigualdade disseminada?

Uma das implicações é que a maneira de se discutir várias coisas tem de ser mudada. Por exemplo, vamos pensar qual é o assunto típico do jornalismo econômico. Um assunto muito típico é o comportamento do crescimento do País. Um país não cresce, quem cresce são as pessoas desse país. Então, o Brasil pode crescer 5% e esse ser um crescimento pró-ricos ou ser um crescimento pró-pobres. São dois tipos de crescimento completamente diferentes. A questão fundamental não é saber se o Brasil cresceu 5%, mas saber quanto os pobres cresceram e quanto os ricos cresceram. O próprio crescimento deve ser visto pela ótica de desigualdade. Esse crescimento desigual tem impacto diferentes sobre diferentes grupos da população.

No livro, o sr. destaca essa desigualdade tão maior entre os mais ricos. Poderia detalhar?

Esse é um fato muito bem conhecido, mas não é um fato incorporado (na discussão). Os 10% mais ricos são bastante diferentes do 1% mais rico, que é bastante diferente do 0,1% mais rico. Ou seja, existe uma desigualdade imensa dentro desse grupo. As tentativas de classificar esse grupo como uma categoria só estão fadadas ao fracasso. Mas, como existe uma desigualdade gigantesca desse grupo, indica que existe muito espaço para progressividade das políticas. Para, por exemplo, as políticas tributárias, mas não só para elas. Existe para todas as políticas que estão beneficiando esses grupos. Uma política de subsídios, por exemplo, está financiando esse pessoal e por aí vai. Claro que há coisas que vão ter mais aplicação entre os pobres, como a política de assistência social, e há coisas que vão ter maior incidência entre os ricos, como o Imposto de Renda, por exemplo. Mas existe bastante espaço para sermos bem mais progressivos do que estamos sendo.

Diante de todo esse quadro, o que pode ser feito?

Eu não quero dar uma resposta que leve ao imobilismo, mas estamos tratando de um assunto complexo demais para ser respondido por uma resposta simples. O simplismo pode atrapalhar a redução das desigualdades no Brasil. Não existe um conjunto claro de regras simples para resolver um problema dessa magnitude. Quando alguém implementa políticas públicas, elas são implementadas dentro de um contexto político muito restritivo, dentro de um orçamento restritivo e com resistências muito grandes, porque qualquer redução da desigualdade implica em um conflito redistributivo. E esse conflito distributivo implica reação de quem vai perder. Se há alguma coisa por trás do combate da desigualdade que é necessária, é a política. E, como o conflito distributivo vai colocar em posições opostas vários grupos que vão usar todos os recursos que tiveram disponíveis para não perder, é claro que o combate à desigualdade vai passar por mobilização política de larga escala.

O que eu tento fazer nesse livro é colocar na linguagem mais acessível possível o que nós sabemos sobre desigualdade no Brasil, para que as pessoas nas suas empresas, nos seus locais de trabalho, nas suas organizações sociais, nos seus movimentos sociais, em todos os níveis das suas igrejas, se mobilizem usando essas ferramentas para fazer aquilo que cabe a elas como papel na redução da desigualdade. É um livro que busca mais oferecer ferramentas do que uma receita do que deve ser feito.

Autor do recém-lançado livro Os ricos e os pobres: O Brasil e a desigualdade, o sociólogo Marcelo Medeiros diz que não há uma resposta simples para a resolver a desigualdade brasileira, um assunto muito complexo e que domina a pauta de discussão há décadas.

“O simplismo pode atrapalhar a redução das desigualdades no Brasil”, afirma. “Temos vários tipos de desigualdades. E diferentes tipos de desigualdades vão exigir diferentes maneiras de enfrentamento.”

Professor visitante da Universidade Columbia, em Nova York, Medeiros diz que seu livro “busca mais oferecer ferramentas do que uma receita do que deve ser feito” e que todas as políticas adotadas pelo País deveriam ir na direção de reduzir a desigualdade.

“É algo tão disseminado que todas as políticas têm de prestar a atenção na desigualdade. Quando a gente define, por exemplo, o subsídio para as empresas, temos de parar e perguntar: quem vai ganhar mais e quem vai perder com isso?”

Marcelo Medeiros, autor de 'Os ricos e os pobres: O Brasil e a desigualdade' Foto: Esperança Dias/Divulgação/Companhia das letras

A seguir trechos da entrevista concedida ao Estadão.

Quais foram as escolhas feitas no Brasil para chegar à situação em que estamos em relação à desigualdade?

Nenhum país chega em um nível tão grande de desigualdade como o do Brasil em função de um conjunto limitado de fatores. Para o Brasil ser tão desigual, tem de ser resultado de um conjunto gigantesco de coisas acontecendo e todas levando na direção de mais desigualdade. Uma coisa importante é entender que a desigualdade no País não tem uma causa principal nem é um conjunto de causas principais. Ela está espalhada em absolutamente tudo. É fácil a gente pensar nisso. Por exemplo, quando pensamos por que as mulheres são desiguais em relação aos homens. Você não resume isso a um conjunto pequeno de coisas. Tem de entender que é resultado de um conjunto gigantesco de forças o tempo inteiro, levando na direção da desigualdade. É o caso do Brasil. Não faz sentido tentar fazer uma lista do que causa a desigualdade no Brasil. O que faz sentindo é pensar na consequência desse raciocínio.

E qual é essa consequência?

É que nós não temos uma política de combate à desigualdade. Não existe um conjunto de medidas para combater a desigualdade. A preocupação com a desigualdade tem de estar presente em todas as políticas. Essa é a ideia. É algo tão disseminado que todas as políticas têm de prestar a atenção na desigualdade. Quando a gente define, por exemplo, o subsídio para as empresas, temos de parar e perguntar: quem vai ganhar mais e quem vai perder com isso? Quando a gente decide nossa política monetária, temos de fazer uma pergunta o tempo inteiro: quem são os vencedores e quem são os perdedores desse jogo? Em outras palavras, a ideia é pensar todas as políticas como sendo políticas sociais, porque toda política tem impacto social.

A ideia do livro é exatamente que não existe um arcabouço de medidas para reduzir a desigualdade...

Todas as medidas têm de estar preocupadas com a desigualdade, porque a desigualdade está infiltrada em todos os aspectos da nossa vida. Temos vários tipos de desigualdades. E diferentes tipos de desigualdades vão exigir diferentes maneiras de enfrentamento. O que eu faço no livro é justamente tentar tirar alguns mitos sobre o que vai tornar o Brasil um país mais igual. O primeiro, mais fácil de entender, é a educação. É preciso deslocar um pouco esse mito de que basta resolver o problema educacional para a desigualdade do Brasil cair ou que essa é a principal estratégia para reduzir a desigualdade.

Por quê?

A educação é um tema muito genérico. A educação que realmente afeta a desigualdade é a de Ensino Superior, mas sequer o Ensino Superior seria suficiente para provocar quedas muito grandes na desigualdade. Por exemplo, se você desse doutorado para todos os trabalhadores brasileiros, ainda assim, a desigualdade, talvez, não chegasse a cair 20%. Dado, obviamente, que essa situação beira o absurdo, porque tecnicamente está fora de condição de se fazer isso, essa é uma mudança gigantesca no mercado de trabalho, teria de ser feita há quase meio século e, mesmo assim, o impacto não seria tão grande comparado com a magnitude do que está sendo movido. O que isso sinaliza? Educação é alguma coisa necessária, mas ela é insuficiente para acabar com a pobreza.

Outra coisa que eu tento também tirar um pouco da lista de coisas é a discussão de que basta criar um imposto sobre grandes fortunas. Não é também só isso. Não vai ser uma atividade isolada ou um pequeno conjunto de coisas que vai fazer a desigualdade cair.

O sr. acha que esse tipo de diagnóstico vai ser incorporado no País?

É difícil dizer. Existe uma preocupação crescente com a desigualdade. Coisas que eram simplesmente desprezadas no passado, há menos de duas décadas, estão completamente incorporadas na discussão hoje. A desigualdade racial era basicamente um tema tabu até meados dos anos 2000. Hoje em dia, é um tema que marca completamente a pauta brasileira. Nesse sentido, existe um avanço na direção de tornar o Brasil mais igual. As discussões de saúde sexual reprodutiva, que são muito importantes no trabalho da mulher, como, por exemplo aborto e contracepção, que estavam colocadas sempre de fora dessa discussão, agora, já estão incorporadas como parte, inclusive, do debate sobre desigualdade de renda dentro do mercado trabalho entre mulheres e homens. Existe uma tendência de incorporação desses assuntos, mas eu não consigo prever o que vai acontecer no futuro.

Qual é a implicação de ver a desigualdade disseminada?

Uma das implicações é que a maneira de se discutir várias coisas tem de ser mudada. Por exemplo, vamos pensar qual é o assunto típico do jornalismo econômico. Um assunto muito típico é o comportamento do crescimento do País. Um país não cresce, quem cresce são as pessoas desse país. Então, o Brasil pode crescer 5% e esse ser um crescimento pró-ricos ou ser um crescimento pró-pobres. São dois tipos de crescimento completamente diferentes. A questão fundamental não é saber se o Brasil cresceu 5%, mas saber quanto os pobres cresceram e quanto os ricos cresceram. O próprio crescimento deve ser visto pela ótica de desigualdade. Esse crescimento desigual tem impacto diferentes sobre diferentes grupos da população.

No livro, o sr. destaca essa desigualdade tão maior entre os mais ricos. Poderia detalhar?

Esse é um fato muito bem conhecido, mas não é um fato incorporado (na discussão). Os 10% mais ricos são bastante diferentes do 1% mais rico, que é bastante diferente do 0,1% mais rico. Ou seja, existe uma desigualdade imensa dentro desse grupo. As tentativas de classificar esse grupo como uma categoria só estão fadadas ao fracasso. Mas, como existe uma desigualdade gigantesca desse grupo, indica que existe muito espaço para progressividade das políticas. Para, por exemplo, as políticas tributárias, mas não só para elas. Existe para todas as políticas que estão beneficiando esses grupos. Uma política de subsídios, por exemplo, está financiando esse pessoal e por aí vai. Claro que há coisas que vão ter mais aplicação entre os pobres, como a política de assistência social, e há coisas que vão ter maior incidência entre os ricos, como o Imposto de Renda, por exemplo. Mas existe bastante espaço para sermos bem mais progressivos do que estamos sendo.

Diante de todo esse quadro, o que pode ser feito?

Eu não quero dar uma resposta que leve ao imobilismo, mas estamos tratando de um assunto complexo demais para ser respondido por uma resposta simples. O simplismo pode atrapalhar a redução das desigualdades no Brasil. Não existe um conjunto claro de regras simples para resolver um problema dessa magnitude. Quando alguém implementa políticas públicas, elas são implementadas dentro de um contexto político muito restritivo, dentro de um orçamento restritivo e com resistências muito grandes, porque qualquer redução da desigualdade implica em um conflito redistributivo. E esse conflito distributivo implica reação de quem vai perder. Se há alguma coisa por trás do combate da desigualdade que é necessária, é a política. E, como o conflito distributivo vai colocar em posições opostas vários grupos que vão usar todos os recursos que tiveram disponíveis para não perder, é claro que o combate à desigualdade vai passar por mobilização política de larga escala.

O que eu tento fazer nesse livro é colocar na linguagem mais acessível possível o que nós sabemos sobre desigualdade no Brasil, para que as pessoas nas suas empresas, nos seus locais de trabalho, nas suas organizações sociais, nos seus movimentos sociais, em todos os níveis das suas igrejas, se mobilizem usando essas ferramentas para fazer aquilo que cabe a elas como papel na redução da desigualdade. É um livro que busca mais oferecer ferramentas do que uma receita do que deve ser feito.

Autor do recém-lançado livro Os ricos e os pobres: O Brasil e a desigualdade, o sociólogo Marcelo Medeiros diz que não há uma resposta simples para a resolver a desigualdade brasileira, um assunto muito complexo e que domina a pauta de discussão há décadas.

“O simplismo pode atrapalhar a redução das desigualdades no Brasil”, afirma. “Temos vários tipos de desigualdades. E diferentes tipos de desigualdades vão exigir diferentes maneiras de enfrentamento.”

Professor visitante da Universidade Columbia, em Nova York, Medeiros diz que seu livro “busca mais oferecer ferramentas do que uma receita do que deve ser feito” e que todas as políticas adotadas pelo País deveriam ir na direção de reduzir a desigualdade.

“É algo tão disseminado que todas as políticas têm de prestar a atenção na desigualdade. Quando a gente define, por exemplo, o subsídio para as empresas, temos de parar e perguntar: quem vai ganhar mais e quem vai perder com isso?”

Marcelo Medeiros, autor de 'Os ricos e os pobres: O Brasil e a desigualdade' Foto: Esperança Dias/Divulgação/Companhia das letras

A seguir trechos da entrevista concedida ao Estadão.

Quais foram as escolhas feitas no Brasil para chegar à situação em que estamos em relação à desigualdade?

Nenhum país chega em um nível tão grande de desigualdade como o do Brasil em função de um conjunto limitado de fatores. Para o Brasil ser tão desigual, tem de ser resultado de um conjunto gigantesco de coisas acontecendo e todas levando na direção de mais desigualdade. Uma coisa importante é entender que a desigualdade no País não tem uma causa principal nem é um conjunto de causas principais. Ela está espalhada em absolutamente tudo. É fácil a gente pensar nisso. Por exemplo, quando pensamos por que as mulheres são desiguais em relação aos homens. Você não resume isso a um conjunto pequeno de coisas. Tem de entender que é resultado de um conjunto gigantesco de forças o tempo inteiro, levando na direção da desigualdade. É o caso do Brasil. Não faz sentido tentar fazer uma lista do que causa a desigualdade no Brasil. O que faz sentindo é pensar na consequência desse raciocínio.

E qual é essa consequência?

É que nós não temos uma política de combate à desigualdade. Não existe um conjunto de medidas para combater a desigualdade. A preocupação com a desigualdade tem de estar presente em todas as políticas. Essa é a ideia. É algo tão disseminado que todas as políticas têm de prestar a atenção na desigualdade. Quando a gente define, por exemplo, o subsídio para as empresas, temos de parar e perguntar: quem vai ganhar mais e quem vai perder com isso? Quando a gente decide nossa política monetária, temos de fazer uma pergunta o tempo inteiro: quem são os vencedores e quem são os perdedores desse jogo? Em outras palavras, a ideia é pensar todas as políticas como sendo políticas sociais, porque toda política tem impacto social.

A ideia do livro é exatamente que não existe um arcabouço de medidas para reduzir a desigualdade...

Todas as medidas têm de estar preocupadas com a desigualdade, porque a desigualdade está infiltrada em todos os aspectos da nossa vida. Temos vários tipos de desigualdades. E diferentes tipos de desigualdades vão exigir diferentes maneiras de enfrentamento. O que eu faço no livro é justamente tentar tirar alguns mitos sobre o que vai tornar o Brasil um país mais igual. O primeiro, mais fácil de entender, é a educação. É preciso deslocar um pouco esse mito de que basta resolver o problema educacional para a desigualdade do Brasil cair ou que essa é a principal estratégia para reduzir a desigualdade.

Por quê?

A educação é um tema muito genérico. A educação que realmente afeta a desigualdade é a de Ensino Superior, mas sequer o Ensino Superior seria suficiente para provocar quedas muito grandes na desigualdade. Por exemplo, se você desse doutorado para todos os trabalhadores brasileiros, ainda assim, a desigualdade, talvez, não chegasse a cair 20%. Dado, obviamente, que essa situação beira o absurdo, porque tecnicamente está fora de condição de se fazer isso, essa é uma mudança gigantesca no mercado de trabalho, teria de ser feita há quase meio século e, mesmo assim, o impacto não seria tão grande comparado com a magnitude do que está sendo movido. O que isso sinaliza? Educação é alguma coisa necessária, mas ela é insuficiente para acabar com a pobreza.

Outra coisa que eu tento também tirar um pouco da lista de coisas é a discussão de que basta criar um imposto sobre grandes fortunas. Não é também só isso. Não vai ser uma atividade isolada ou um pequeno conjunto de coisas que vai fazer a desigualdade cair.

O sr. acha que esse tipo de diagnóstico vai ser incorporado no País?

É difícil dizer. Existe uma preocupação crescente com a desigualdade. Coisas que eram simplesmente desprezadas no passado, há menos de duas décadas, estão completamente incorporadas na discussão hoje. A desigualdade racial era basicamente um tema tabu até meados dos anos 2000. Hoje em dia, é um tema que marca completamente a pauta brasileira. Nesse sentido, existe um avanço na direção de tornar o Brasil mais igual. As discussões de saúde sexual reprodutiva, que são muito importantes no trabalho da mulher, como, por exemplo aborto e contracepção, que estavam colocadas sempre de fora dessa discussão, agora, já estão incorporadas como parte, inclusive, do debate sobre desigualdade de renda dentro do mercado trabalho entre mulheres e homens. Existe uma tendência de incorporação desses assuntos, mas eu não consigo prever o que vai acontecer no futuro.

Qual é a implicação de ver a desigualdade disseminada?

Uma das implicações é que a maneira de se discutir várias coisas tem de ser mudada. Por exemplo, vamos pensar qual é o assunto típico do jornalismo econômico. Um assunto muito típico é o comportamento do crescimento do País. Um país não cresce, quem cresce são as pessoas desse país. Então, o Brasil pode crescer 5% e esse ser um crescimento pró-ricos ou ser um crescimento pró-pobres. São dois tipos de crescimento completamente diferentes. A questão fundamental não é saber se o Brasil cresceu 5%, mas saber quanto os pobres cresceram e quanto os ricos cresceram. O próprio crescimento deve ser visto pela ótica de desigualdade. Esse crescimento desigual tem impacto diferentes sobre diferentes grupos da população.

No livro, o sr. destaca essa desigualdade tão maior entre os mais ricos. Poderia detalhar?

Esse é um fato muito bem conhecido, mas não é um fato incorporado (na discussão). Os 10% mais ricos são bastante diferentes do 1% mais rico, que é bastante diferente do 0,1% mais rico. Ou seja, existe uma desigualdade imensa dentro desse grupo. As tentativas de classificar esse grupo como uma categoria só estão fadadas ao fracasso. Mas, como existe uma desigualdade gigantesca desse grupo, indica que existe muito espaço para progressividade das políticas. Para, por exemplo, as políticas tributárias, mas não só para elas. Existe para todas as políticas que estão beneficiando esses grupos. Uma política de subsídios, por exemplo, está financiando esse pessoal e por aí vai. Claro que há coisas que vão ter mais aplicação entre os pobres, como a política de assistência social, e há coisas que vão ter maior incidência entre os ricos, como o Imposto de Renda, por exemplo. Mas existe bastante espaço para sermos bem mais progressivos do que estamos sendo.

Diante de todo esse quadro, o que pode ser feito?

Eu não quero dar uma resposta que leve ao imobilismo, mas estamos tratando de um assunto complexo demais para ser respondido por uma resposta simples. O simplismo pode atrapalhar a redução das desigualdades no Brasil. Não existe um conjunto claro de regras simples para resolver um problema dessa magnitude. Quando alguém implementa políticas públicas, elas são implementadas dentro de um contexto político muito restritivo, dentro de um orçamento restritivo e com resistências muito grandes, porque qualquer redução da desigualdade implica em um conflito redistributivo. E esse conflito distributivo implica reação de quem vai perder. Se há alguma coisa por trás do combate da desigualdade que é necessária, é a política. E, como o conflito distributivo vai colocar em posições opostas vários grupos que vão usar todos os recursos que tiveram disponíveis para não perder, é claro que o combate à desigualdade vai passar por mobilização política de larga escala.

O que eu tento fazer nesse livro é colocar na linguagem mais acessível possível o que nós sabemos sobre desigualdade no Brasil, para que as pessoas nas suas empresas, nos seus locais de trabalho, nas suas organizações sociais, nos seus movimentos sociais, em todos os níveis das suas igrejas, se mobilizem usando essas ferramentas para fazer aquilo que cabe a elas como papel na redução da desigualdade. É um livro que busca mais oferecer ferramentas do que uma receita do que deve ser feito.

Autor do recém-lançado livro Os ricos e os pobres: O Brasil e a desigualdade, o sociólogo Marcelo Medeiros diz que não há uma resposta simples para a resolver a desigualdade brasileira, um assunto muito complexo e que domina a pauta de discussão há décadas.

“O simplismo pode atrapalhar a redução das desigualdades no Brasil”, afirma. “Temos vários tipos de desigualdades. E diferentes tipos de desigualdades vão exigir diferentes maneiras de enfrentamento.”

Professor visitante da Universidade Columbia, em Nova York, Medeiros diz que seu livro “busca mais oferecer ferramentas do que uma receita do que deve ser feito” e que todas as políticas adotadas pelo País deveriam ir na direção de reduzir a desigualdade.

“É algo tão disseminado que todas as políticas têm de prestar a atenção na desigualdade. Quando a gente define, por exemplo, o subsídio para as empresas, temos de parar e perguntar: quem vai ganhar mais e quem vai perder com isso?”

Marcelo Medeiros, autor de 'Os ricos e os pobres: O Brasil e a desigualdade' Foto: Esperança Dias/Divulgação/Companhia das letras

A seguir trechos da entrevista concedida ao Estadão.

Quais foram as escolhas feitas no Brasil para chegar à situação em que estamos em relação à desigualdade?

Nenhum país chega em um nível tão grande de desigualdade como o do Brasil em função de um conjunto limitado de fatores. Para o Brasil ser tão desigual, tem de ser resultado de um conjunto gigantesco de coisas acontecendo e todas levando na direção de mais desigualdade. Uma coisa importante é entender que a desigualdade no País não tem uma causa principal nem é um conjunto de causas principais. Ela está espalhada em absolutamente tudo. É fácil a gente pensar nisso. Por exemplo, quando pensamos por que as mulheres são desiguais em relação aos homens. Você não resume isso a um conjunto pequeno de coisas. Tem de entender que é resultado de um conjunto gigantesco de forças o tempo inteiro, levando na direção da desigualdade. É o caso do Brasil. Não faz sentido tentar fazer uma lista do que causa a desigualdade no Brasil. O que faz sentindo é pensar na consequência desse raciocínio.

E qual é essa consequência?

É que nós não temos uma política de combate à desigualdade. Não existe um conjunto de medidas para combater a desigualdade. A preocupação com a desigualdade tem de estar presente em todas as políticas. Essa é a ideia. É algo tão disseminado que todas as políticas têm de prestar a atenção na desigualdade. Quando a gente define, por exemplo, o subsídio para as empresas, temos de parar e perguntar: quem vai ganhar mais e quem vai perder com isso? Quando a gente decide nossa política monetária, temos de fazer uma pergunta o tempo inteiro: quem são os vencedores e quem são os perdedores desse jogo? Em outras palavras, a ideia é pensar todas as políticas como sendo políticas sociais, porque toda política tem impacto social.

A ideia do livro é exatamente que não existe um arcabouço de medidas para reduzir a desigualdade...

Todas as medidas têm de estar preocupadas com a desigualdade, porque a desigualdade está infiltrada em todos os aspectos da nossa vida. Temos vários tipos de desigualdades. E diferentes tipos de desigualdades vão exigir diferentes maneiras de enfrentamento. O que eu faço no livro é justamente tentar tirar alguns mitos sobre o que vai tornar o Brasil um país mais igual. O primeiro, mais fácil de entender, é a educação. É preciso deslocar um pouco esse mito de que basta resolver o problema educacional para a desigualdade do Brasil cair ou que essa é a principal estratégia para reduzir a desigualdade.

Por quê?

A educação é um tema muito genérico. A educação que realmente afeta a desigualdade é a de Ensino Superior, mas sequer o Ensino Superior seria suficiente para provocar quedas muito grandes na desigualdade. Por exemplo, se você desse doutorado para todos os trabalhadores brasileiros, ainda assim, a desigualdade, talvez, não chegasse a cair 20%. Dado, obviamente, que essa situação beira o absurdo, porque tecnicamente está fora de condição de se fazer isso, essa é uma mudança gigantesca no mercado de trabalho, teria de ser feita há quase meio século e, mesmo assim, o impacto não seria tão grande comparado com a magnitude do que está sendo movido. O que isso sinaliza? Educação é alguma coisa necessária, mas ela é insuficiente para acabar com a pobreza.

Outra coisa que eu tento também tirar um pouco da lista de coisas é a discussão de que basta criar um imposto sobre grandes fortunas. Não é também só isso. Não vai ser uma atividade isolada ou um pequeno conjunto de coisas que vai fazer a desigualdade cair.

O sr. acha que esse tipo de diagnóstico vai ser incorporado no País?

É difícil dizer. Existe uma preocupação crescente com a desigualdade. Coisas que eram simplesmente desprezadas no passado, há menos de duas décadas, estão completamente incorporadas na discussão hoje. A desigualdade racial era basicamente um tema tabu até meados dos anos 2000. Hoje em dia, é um tema que marca completamente a pauta brasileira. Nesse sentido, existe um avanço na direção de tornar o Brasil mais igual. As discussões de saúde sexual reprodutiva, que são muito importantes no trabalho da mulher, como, por exemplo aborto e contracepção, que estavam colocadas sempre de fora dessa discussão, agora, já estão incorporadas como parte, inclusive, do debate sobre desigualdade de renda dentro do mercado trabalho entre mulheres e homens. Existe uma tendência de incorporação desses assuntos, mas eu não consigo prever o que vai acontecer no futuro.

Qual é a implicação de ver a desigualdade disseminada?

Uma das implicações é que a maneira de se discutir várias coisas tem de ser mudada. Por exemplo, vamos pensar qual é o assunto típico do jornalismo econômico. Um assunto muito típico é o comportamento do crescimento do País. Um país não cresce, quem cresce são as pessoas desse país. Então, o Brasil pode crescer 5% e esse ser um crescimento pró-ricos ou ser um crescimento pró-pobres. São dois tipos de crescimento completamente diferentes. A questão fundamental não é saber se o Brasil cresceu 5%, mas saber quanto os pobres cresceram e quanto os ricos cresceram. O próprio crescimento deve ser visto pela ótica de desigualdade. Esse crescimento desigual tem impacto diferentes sobre diferentes grupos da população.

No livro, o sr. destaca essa desigualdade tão maior entre os mais ricos. Poderia detalhar?

Esse é um fato muito bem conhecido, mas não é um fato incorporado (na discussão). Os 10% mais ricos são bastante diferentes do 1% mais rico, que é bastante diferente do 0,1% mais rico. Ou seja, existe uma desigualdade imensa dentro desse grupo. As tentativas de classificar esse grupo como uma categoria só estão fadadas ao fracasso. Mas, como existe uma desigualdade gigantesca desse grupo, indica que existe muito espaço para progressividade das políticas. Para, por exemplo, as políticas tributárias, mas não só para elas. Existe para todas as políticas que estão beneficiando esses grupos. Uma política de subsídios, por exemplo, está financiando esse pessoal e por aí vai. Claro que há coisas que vão ter mais aplicação entre os pobres, como a política de assistência social, e há coisas que vão ter maior incidência entre os ricos, como o Imposto de Renda, por exemplo. Mas existe bastante espaço para sermos bem mais progressivos do que estamos sendo.

Diante de todo esse quadro, o que pode ser feito?

Eu não quero dar uma resposta que leve ao imobilismo, mas estamos tratando de um assunto complexo demais para ser respondido por uma resposta simples. O simplismo pode atrapalhar a redução das desigualdades no Brasil. Não existe um conjunto claro de regras simples para resolver um problema dessa magnitude. Quando alguém implementa políticas públicas, elas são implementadas dentro de um contexto político muito restritivo, dentro de um orçamento restritivo e com resistências muito grandes, porque qualquer redução da desigualdade implica em um conflito redistributivo. E esse conflito distributivo implica reação de quem vai perder. Se há alguma coisa por trás do combate da desigualdade que é necessária, é a política. E, como o conflito distributivo vai colocar em posições opostas vários grupos que vão usar todos os recursos que tiveram disponíveis para não perder, é claro que o combate à desigualdade vai passar por mobilização política de larga escala.

O que eu tento fazer nesse livro é colocar na linguagem mais acessível possível o que nós sabemos sobre desigualdade no Brasil, para que as pessoas nas suas empresas, nos seus locais de trabalho, nas suas organizações sociais, nos seus movimentos sociais, em todos os níveis das suas igrejas, se mobilizem usando essas ferramentas para fazer aquilo que cabe a elas como papel na redução da desigualdade. É um livro que busca mais oferecer ferramentas do que uma receita do que deve ser feito.

Entrevista por Luiz Guilherme Gerbelli

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