‘Criatividade na contabilidade pública está voltando com força’, diz Marcos Lisboa


Economista vê com preocupação medidas que melhoram de forma artificial a política fiscal do governo e diz que cumprir a meta não faz diferença se a dívida continua em alta

Por Alvaro Gribel
Foto: Werther Santana/Estadão
Entrevista comMarcos Lisboa Economista, sócio-diretor da Gibraltar Consulting

BRASÍLIA – O economista Marcos Lisboa, sócio-diretor da Gibraltar Consulting, se mantém pessimista sobre o rumo das contas públicas do País. Embora ele reconheça que o momento da economia “é bom”, como mostram os últimos indicadores do PIB, ele diz que os alertas que foram feitos por vários especialistas – como ele próprio e o economista Marcos Mendes –, sobre as inconsistências do arcabouço fiscal estão se provando verdadeiras.

Uma fonte nova de preocupação, afirma, são os chamados “truques fiscais” que voltaram a ser notícia nas últimas semanas. Um deles foi motivo de alerta do próprio Banco Central, que afirmou que não iria contabilizar como receita primária (computada no resultado da meta) a apropriação, por parte do Tesouro Nacional, de recursos esquecidos em bancos por correntistas.

“O Congresso está dizendo que, por lei, essa receita vai ser primária. O Banco Central e as normas da contabilidade dizem que não deveria ser. A criatividade na contabilidade pública está voltando com força”, afirma Lisboa ao Estadão.

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Lisboa diz que as metas fiscais do novo arcabouço estão se mostrando pouco eficazes para controlar a dívida pública, porque excluem da conta vários tipos de despesas. “Em última instância, é o impacto na dívida que realmente importa. Cumprir a meta dessa forma não diz muita coisa”, explica.

Ele entende que o governo precisa encarar com seriedade a agenda de revisão de gastos, o que deveria ser feito por uma agência independente, com mandatos fixos de seus diretores, e que as políticas de indexação de gastos não estão resultando em aumento de qualidade da política pública, especialmente nas áreas de saúde e educação. A seguir, os principais trechos da entrevista.

O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva se aproxima da metade do seu mandato. Que balanço é possível fazer sobre a política econômica até aqui?

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O País vive um bom momento na economia. E há uma dúvida entre os economistas sobre o quanto as reformas que se iniciaram com o governo Temer aumentaram o crescimento potencial. Reforma trabalhista, teto de gastos – por alguns anos –, reforma das estatais, (reforma da) Previdência. Os dados indicam que houve impacto positivo relevante. Por outro lado, também há uma série de medidas, desde o último governo, que aumentaram as distorções microeconômicas. Também houve, desde o governo anterior, o início de uma forte expansão de gastos públicos. É um momento bom, mas estamos agravando os problemas fiscais para frente.

A equipe econômica diz, com razão, que o mercado tem errado muito as projeções de PIB e agora há quem aponte que a meta fiscal pode ser cumprida. A foto está melhor, mas o filme continua ruim?

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O governo enfrenta a questão fiscal de forma muito preocupante, criando receitas temporárias para pagar despesas permanentes. A receita sobe em um ano com medidas pontuais, mas isso aumenta o gasto de forma permanente nos anos seguintes. Um exemplo disso acontece com as decisões do Carf. E também é muito preocupante um governo ter meta de condenação administrativa. Um tribunal como o Carf é para julgar o certo e o errado, não para ter meta de condenação ou de arrecadação. É uma disfuncionalidade da política pública, é bastante grave.

O crescimento das despesas indexadas, como salário mínimo e pisos da saúde e educação, é o principal problema do arcabouço?

Quando saiu o arcabouço, e eu o Marcos Mendes alertamos sobre isso: há uma inconsistência. Não interessa o nível de arrecadação. Como a receita cresce, a despesa obrigatória também cresce. Há um limite para o crescimento da despesa total e isso vai comprimindo as despesas discricionárias (não obrigatórias, como investimentos e custeio da máquina pública). Um ano depois, o problema está aí – e já há membros da equipe econômica que reconhecem isso.

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Marcos Lisboa vê com preocupação medidas que melhoram de forma artificial a política fiscal do governo e diz que cumprir a meta não faz diferença se a dívida continua em alta. Foto: Erica Dezonne/Estadão

Quais as medidas mais essenciais para corrigir essas distorções? O debate passa, por exemplo, pelo fim das indexações?

O que interessa é o crescimento da dívida pública, do ponto de vista fiscal. E, para isso, a gente precisa ter receitas permanentes, de um lado, e despesas permanentes, de outro. A contabilidade não deveria inserir receitas temporárias. Agora, há medida no Congresso para transferir com mais agilidade depósitos judiciais para o Tesouro Nacional. Depósitos pelos quais famílias ainda estão se mobilizando e podem nem pertencer ao governo.

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Essa receita é financeira ou primária?

O Congresso está dizendo, por lei, que vai ser primária. O Banco Central, as normas da contabilidade dizem que não deveriam ser. A criatividade na contabilidade pública está voltando com força.

Também foi apontada uma manobra no Auxílio Gás, embora a equipe econômica já esteja se mobilizando para derrubar a ideia, que veio do Ministério de Minas e Energia...

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Sim, uma ameaça de fazer o pagamento via Caixa, sem transitar da maneira correta pelo Orçamento. Isso tudo significa apresentar contas públicas que sugerem uma solvência que, no fim do dia, não acontece – e a dívida cresce. Mas a conta não vem na hora. O descontrole a partir de 2009 a 2013 se manifestou em 2015. Você vai empurrando os problemas para debaixo do tapete, a economia aparentemente vai bem, mas, de repente, se interrompe o processo.

O cumprimento da meta tem muitas exclusões: precatórios, socorro ao Rio Grande do Sul, parte dos investimentos. Isso é problemático?

São diversos truques. Uma coisa não entra na despesa, outra sai da despesa primária. Se é isso, vamos esquecer o superávit primário, que está se tornando um guia pouco relevante para a preocupação principal, que é o aumento da dívida pública.

E as indexações?

Tem de rever as vinculações. Há indícios de uma série de problemas nas contas da Previdência que estão indexadas ao salário mínimo. O BPC (Benefício de Prestação Continuada), por exemplo, e outros benefícios estão com crescimento muito forte. E tem de mudar o foco na discussão sobre saúde e educação.

Por quê?

O gasto não tem virado melhora na qualidade da política pública. A educação teve um aumento grande de gasto, isso se transformou em aumento de salário para professores e aposentadorias. Mas e do ponto de vista do aluno? O foco deveria ser o aprendizado. Se eles não estão aprendendo, há algo de muito errado. O Brasil não pode ficar atrás dos demais emergentes. Estamos condenando uma geração a ter dificuldades no mercado de trabalho – e num mundo em que a tecnologia do conhecimento está aumentando.

Essas pautas são caras para um governo de esquerda. Como convencer o presidente em um ambiente político extremamente polarizado?

Queria que essa agenda fosse cara ao governo. Queria que o governo estivesse preocupado com a qualidade do ensino, aprendizados dos estudantes, a vacinação. Ou a focalização das políticas sociais dos mais pobres, e não das empresas mais ricas. Essa pauta do patrimonialismo no Brasil é ecumênica. Esquerda e direita votam igual na grande maioria dos casos. Conceder proteção para setores, a emenda Pix, possibilidade de a emenda ir direto para o caixa dos governos locais, sem transparência, isso tudo é compartilhado por esquerda e direita.

A equipe econômica estuda colocar a indexação limitada a um teto de 2,5%. Isso pode ter algum efeito?

Acho que pode ser. Mas queria ver antes uma discussão mais cuidadosa sobre a qualidade da política pública e do gasto. Vamos dando soluções paliativas, como agora pegar depósitos judiciais, dizer que é primário, tira despesa da meta. Truques vão sendo criados. Depois a crise vem e fica todo mundo olhando para o lado, olhando de quem é a culpa.

Por que a agenda de revisão de gastos não está andando?

Acho que isso não é um tema da política pública no Brasil. Em 2005, o Ministério da Fazenda soltou um documento que defendia uma agência independente, com mandato, para avaliar a eficácia do gasto. Mas isso não é o desejo e a prática da política pública no Brasil. Independentemente de ser governo de esquerda e de direita. Há vontade de gastar, de atender a interesses particulares. Sou muito cético de uma agenda de avaliação que não seja realizado por uma agência independente, com mandatos. No Brasil, o próprio gestor que faz a política avalia a política. Ele não vai reconhecer fracasso, vai ter resistência.

O sr. enxerga o risco de termos, em 2027, algo semelhante com o que ocorreu em 2015, ou seja, que a economia seja obrigada a passar por uma crise, ou um ajuste de forma abrupta?

Há tempo para corrigir isso, até lá. Mas veja o déficit das estatais, por exemplo: já houve um forte aumento nos últimos dois anos. A Emgea (Empresa Gestora de Ativos) agora vai poder securitizar crédito imobiliário, e de forma peculiar.

Qual o problema com a Emgea?

Ela vai comprar crédito imobiliário do sistema financeiro e emitir títulos que podem não estar vinculados a esses créditos. Isso permite um descasamento entre o ativo que foi comprado e o título que será emitido. No fim, isso é risco para o Tesouro. Se esse descasamento se realizar, vai ser uma conta adicional para o setor público. Se o governo quer que a Emgea tenha esse papel, ela deveria ser tratada com o mesmo rigor dos bancos: fazer avaliação de perda esperada, risco de descasamento e responsabilização dos gestores públicos que estão fazendo as operações. Isso é fundamental; do contrário, vamos comprar problema para frente, e mais uma vez, a sociedade brasileira vai pagar a conta.

Já se diz que a dívida pode subir 20 pontos (em relação ao PIB) em dez anos. Dá para isso acontecer sem haver uma crise?

Isso custa ao País, principalmente em termos de juros. A economia brasileira é muito volátil. Nos últimos 40 anos, houve 26 anos de crescimento e 14 anos de crise. Isso é muita coisa. País rico tem três, na média. País emergente, também três. O Brasil destoa:tem anos que está bem, crescendo a 3%, como este ano; e aí, de repente, vem a crise, entra em depressão, porque é mais grave. Fica uma visão de que ou vai dar tudo certo ou tudo vai acabar. Temos de sair desse ciclo maníaco-depressivo. Tem de sair também da polarização liberal e desenvolvimentismo. O Estado é fundamental para várias coisas, mas é preciso discutir como, onde, a forma. Política pública tem papel fundamental para melhorar a vida das pessoas.

E na política monetária? Como o sr. está vendo a transição no Banco Central?

A missão do BC é manter inflação estável. A forma usual de fazer isso é garantir a inflação estável minimizando custo social, como atividade e emprego. Isso é a boa prática há 30 anos no mundo. Por que gera tanto barulho no Brasil, me surpreende. Acaba atrapalhando a economia desnecessariamente. Nosso Banco Central funciona muito bem, há muitas décadas. Com exceção do governo Dilma, em que o BC tentou ser criativo e baixou juros quando toda a evidência que não deveria fazer isso, o BC no Brasil faz trabalho incrível.

BRASÍLIA – O economista Marcos Lisboa, sócio-diretor da Gibraltar Consulting, se mantém pessimista sobre o rumo das contas públicas do País. Embora ele reconheça que o momento da economia “é bom”, como mostram os últimos indicadores do PIB, ele diz que os alertas que foram feitos por vários especialistas – como ele próprio e o economista Marcos Mendes –, sobre as inconsistências do arcabouço fiscal estão se provando verdadeiras.

Uma fonte nova de preocupação, afirma, são os chamados “truques fiscais” que voltaram a ser notícia nas últimas semanas. Um deles foi motivo de alerta do próprio Banco Central, que afirmou que não iria contabilizar como receita primária (computada no resultado da meta) a apropriação, por parte do Tesouro Nacional, de recursos esquecidos em bancos por correntistas.

“O Congresso está dizendo que, por lei, essa receita vai ser primária. O Banco Central e as normas da contabilidade dizem que não deveria ser. A criatividade na contabilidade pública está voltando com força”, afirma Lisboa ao Estadão.

Lisboa diz que as metas fiscais do novo arcabouço estão se mostrando pouco eficazes para controlar a dívida pública, porque excluem da conta vários tipos de despesas. “Em última instância, é o impacto na dívida que realmente importa. Cumprir a meta dessa forma não diz muita coisa”, explica.

Ele entende que o governo precisa encarar com seriedade a agenda de revisão de gastos, o que deveria ser feito por uma agência independente, com mandatos fixos de seus diretores, e que as políticas de indexação de gastos não estão resultando em aumento de qualidade da política pública, especialmente nas áreas de saúde e educação. A seguir, os principais trechos da entrevista.

O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva se aproxima da metade do seu mandato. Que balanço é possível fazer sobre a política econômica até aqui?

O País vive um bom momento na economia. E há uma dúvida entre os economistas sobre o quanto as reformas que se iniciaram com o governo Temer aumentaram o crescimento potencial. Reforma trabalhista, teto de gastos – por alguns anos –, reforma das estatais, (reforma da) Previdência. Os dados indicam que houve impacto positivo relevante. Por outro lado, também há uma série de medidas, desde o último governo, que aumentaram as distorções microeconômicas. Também houve, desde o governo anterior, o início de uma forte expansão de gastos públicos. É um momento bom, mas estamos agravando os problemas fiscais para frente.

A equipe econômica diz, com razão, que o mercado tem errado muito as projeções de PIB e agora há quem aponte que a meta fiscal pode ser cumprida. A foto está melhor, mas o filme continua ruim?

O governo enfrenta a questão fiscal de forma muito preocupante, criando receitas temporárias para pagar despesas permanentes. A receita sobe em um ano com medidas pontuais, mas isso aumenta o gasto de forma permanente nos anos seguintes. Um exemplo disso acontece com as decisões do Carf. E também é muito preocupante um governo ter meta de condenação administrativa. Um tribunal como o Carf é para julgar o certo e o errado, não para ter meta de condenação ou de arrecadação. É uma disfuncionalidade da política pública, é bastante grave.

O crescimento das despesas indexadas, como salário mínimo e pisos da saúde e educação, é o principal problema do arcabouço?

Quando saiu o arcabouço, e eu o Marcos Mendes alertamos sobre isso: há uma inconsistência. Não interessa o nível de arrecadação. Como a receita cresce, a despesa obrigatória também cresce. Há um limite para o crescimento da despesa total e isso vai comprimindo as despesas discricionárias (não obrigatórias, como investimentos e custeio da máquina pública). Um ano depois, o problema está aí – e já há membros da equipe econômica que reconhecem isso.

Marcos Lisboa vê com preocupação medidas que melhoram de forma artificial a política fiscal do governo e diz que cumprir a meta não faz diferença se a dívida continua em alta. Foto: Erica Dezonne/Estadão

Quais as medidas mais essenciais para corrigir essas distorções? O debate passa, por exemplo, pelo fim das indexações?

O que interessa é o crescimento da dívida pública, do ponto de vista fiscal. E, para isso, a gente precisa ter receitas permanentes, de um lado, e despesas permanentes, de outro. A contabilidade não deveria inserir receitas temporárias. Agora, há medida no Congresso para transferir com mais agilidade depósitos judiciais para o Tesouro Nacional. Depósitos pelos quais famílias ainda estão se mobilizando e podem nem pertencer ao governo.

Essa receita é financeira ou primária?

O Congresso está dizendo, por lei, que vai ser primária. O Banco Central, as normas da contabilidade dizem que não deveriam ser. A criatividade na contabilidade pública está voltando com força.

Também foi apontada uma manobra no Auxílio Gás, embora a equipe econômica já esteja se mobilizando para derrubar a ideia, que veio do Ministério de Minas e Energia...

Sim, uma ameaça de fazer o pagamento via Caixa, sem transitar da maneira correta pelo Orçamento. Isso tudo significa apresentar contas públicas que sugerem uma solvência que, no fim do dia, não acontece – e a dívida cresce. Mas a conta não vem na hora. O descontrole a partir de 2009 a 2013 se manifestou em 2015. Você vai empurrando os problemas para debaixo do tapete, a economia aparentemente vai bem, mas, de repente, se interrompe o processo.

O cumprimento da meta tem muitas exclusões: precatórios, socorro ao Rio Grande do Sul, parte dos investimentos. Isso é problemático?

São diversos truques. Uma coisa não entra na despesa, outra sai da despesa primária. Se é isso, vamos esquecer o superávit primário, que está se tornando um guia pouco relevante para a preocupação principal, que é o aumento da dívida pública.

E as indexações?

Tem de rever as vinculações. Há indícios de uma série de problemas nas contas da Previdência que estão indexadas ao salário mínimo. O BPC (Benefício de Prestação Continuada), por exemplo, e outros benefícios estão com crescimento muito forte. E tem de mudar o foco na discussão sobre saúde e educação.

Por quê?

O gasto não tem virado melhora na qualidade da política pública. A educação teve um aumento grande de gasto, isso se transformou em aumento de salário para professores e aposentadorias. Mas e do ponto de vista do aluno? O foco deveria ser o aprendizado. Se eles não estão aprendendo, há algo de muito errado. O Brasil não pode ficar atrás dos demais emergentes. Estamos condenando uma geração a ter dificuldades no mercado de trabalho – e num mundo em que a tecnologia do conhecimento está aumentando.

Essas pautas são caras para um governo de esquerda. Como convencer o presidente em um ambiente político extremamente polarizado?

Queria que essa agenda fosse cara ao governo. Queria que o governo estivesse preocupado com a qualidade do ensino, aprendizados dos estudantes, a vacinação. Ou a focalização das políticas sociais dos mais pobres, e não das empresas mais ricas. Essa pauta do patrimonialismo no Brasil é ecumênica. Esquerda e direita votam igual na grande maioria dos casos. Conceder proteção para setores, a emenda Pix, possibilidade de a emenda ir direto para o caixa dos governos locais, sem transparência, isso tudo é compartilhado por esquerda e direita.

A equipe econômica estuda colocar a indexação limitada a um teto de 2,5%. Isso pode ter algum efeito?

Acho que pode ser. Mas queria ver antes uma discussão mais cuidadosa sobre a qualidade da política pública e do gasto. Vamos dando soluções paliativas, como agora pegar depósitos judiciais, dizer que é primário, tira despesa da meta. Truques vão sendo criados. Depois a crise vem e fica todo mundo olhando para o lado, olhando de quem é a culpa.

Por que a agenda de revisão de gastos não está andando?

Acho que isso não é um tema da política pública no Brasil. Em 2005, o Ministério da Fazenda soltou um documento que defendia uma agência independente, com mandato, para avaliar a eficácia do gasto. Mas isso não é o desejo e a prática da política pública no Brasil. Independentemente de ser governo de esquerda e de direita. Há vontade de gastar, de atender a interesses particulares. Sou muito cético de uma agenda de avaliação que não seja realizado por uma agência independente, com mandatos. No Brasil, o próprio gestor que faz a política avalia a política. Ele não vai reconhecer fracasso, vai ter resistência.

O sr. enxerga o risco de termos, em 2027, algo semelhante com o que ocorreu em 2015, ou seja, que a economia seja obrigada a passar por uma crise, ou um ajuste de forma abrupta?

Há tempo para corrigir isso, até lá. Mas veja o déficit das estatais, por exemplo: já houve um forte aumento nos últimos dois anos. A Emgea (Empresa Gestora de Ativos) agora vai poder securitizar crédito imobiliário, e de forma peculiar.

Qual o problema com a Emgea?

Ela vai comprar crédito imobiliário do sistema financeiro e emitir títulos que podem não estar vinculados a esses créditos. Isso permite um descasamento entre o ativo que foi comprado e o título que será emitido. No fim, isso é risco para o Tesouro. Se esse descasamento se realizar, vai ser uma conta adicional para o setor público. Se o governo quer que a Emgea tenha esse papel, ela deveria ser tratada com o mesmo rigor dos bancos: fazer avaliação de perda esperada, risco de descasamento e responsabilização dos gestores públicos que estão fazendo as operações. Isso é fundamental; do contrário, vamos comprar problema para frente, e mais uma vez, a sociedade brasileira vai pagar a conta.

Já se diz que a dívida pode subir 20 pontos (em relação ao PIB) em dez anos. Dá para isso acontecer sem haver uma crise?

Isso custa ao País, principalmente em termos de juros. A economia brasileira é muito volátil. Nos últimos 40 anos, houve 26 anos de crescimento e 14 anos de crise. Isso é muita coisa. País rico tem três, na média. País emergente, também três. O Brasil destoa:tem anos que está bem, crescendo a 3%, como este ano; e aí, de repente, vem a crise, entra em depressão, porque é mais grave. Fica uma visão de que ou vai dar tudo certo ou tudo vai acabar. Temos de sair desse ciclo maníaco-depressivo. Tem de sair também da polarização liberal e desenvolvimentismo. O Estado é fundamental para várias coisas, mas é preciso discutir como, onde, a forma. Política pública tem papel fundamental para melhorar a vida das pessoas.

E na política monetária? Como o sr. está vendo a transição no Banco Central?

A missão do BC é manter inflação estável. A forma usual de fazer isso é garantir a inflação estável minimizando custo social, como atividade e emprego. Isso é a boa prática há 30 anos no mundo. Por que gera tanto barulho no Brasil, me surpreende. Acaba atrapalhando a economia desnecessariamente. Nosso Banco Central funciona muito bem, há muitas décadas. Com exceção do governo Dilma, em que o BC tentou ser criativo e baixou juros quando toda a evidência que não deveria fazer isso, o BC no Brasil faz trabalho incrível.

BRASÍLIA – O economista Marcos Lisboa, sócio-diretor da Gibraltar Consulting, se mantém pessimista sobre o rumo das contas públicas do País. Embora ele reconheça que o momento da economia “é bom”, como mostram os últimos indicadores do PIB, ele diz que os alertas que foram feitos por vários especialistas – como ele próprio e o economista Marcos Mendes –, sobre as inconsistências do arcabouço fiscal estão se provando verdadeiras.

Uma fonte nova de preocupação, afirma, são os chamados “truques fiscais” que voltaram a ser notícia nas últimas semanas. Um deles foi motivo de alerta do próprio Banco Central, que afirmou que não iria contabilizar como receita primária (computada no resultado da meta) a apropriação, por parte do Tesouro Nacional, de recursos esquecidos em bancos por correntistas.

“O Congresso está dizendo que, por lei, essa receita vai ser primária. O Banco Central e as normas da contabilidade dizem que não deveria ser. A criatividade na contabilidade pública está voltando com força”, afirma Lisboa ao Estadão.

Lisboa diz que as metas fiscais do novo arcabouço estão se mostrando pouco eficazes para controlar a dívida pública, porque excluem da conta vários tipos de despesas. “Em última instância, é o impacto na dívida que realmente importa. Cumprir a meta dessa forma não diz muita coisa”, explica.

Ele entende que o governo precisa encarar com seriedade a agenda de revisão de gastos, o que deveria ser feito por uma agência independente, com mandatos fixos de seus diretores, e que as políticas de indexação de gastos não estão resultando em aumento de qualidade da política pública, especialmente nas áreas de saúde e educação. A seguir, os principais trechos da entrevista.

O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva se aproxima da metade do seu mandato. Que balanço é possível fazer sobre a política econômica até aqui?

O País vive um bom momento na economia. E há uma dúvida entre os economistas sobre o quanto as reformas que se iniciaram com o governo Temer aumentaram o crescimento potencial. Reforma trabalhista, teto de gastos – por alguns anos –, reforma das estatais, (reforma da) Previdência. Os dados indicam que houve impacto positivo relevante. Por outro lado, também há uma série de medidas, desde o último governo, que aumentaram as distorções microeconômicas. Também houve, desde o governo anterior, o início de uma forte expansão de gastos públicos. É um momento bom, mas estamos agravando os problemas fiscais para frente.

A equipe econômica diz, com razão, que o mercado tem errado muito as projeções de PIB e agora há quem aponte que a meta fiscal pode ser cumprida. A foto está melhor, mas o filme continua ruim?

O governo enfrenta a questão fiscal de forma muito preocupante, criando receitas temporárias para pagar despesas permanentes. A receita sobe em um ano com medidas pontuais, mas isso aumenta o gasto de forma permanente nos anos seguintes. Um exemplo disso acontece com as decisões do Carf. E também é muito preocupante um governo ter meta de condenação administrativa. Um tribunal como o Carf é para julgar o certo e o errado, não para ter meta de condenação ou de arrecadação. É uma disfuncionalidade da política pública, é bastante grave.

O crescimento das despesas indexadas, como salário mínimo e pisos da saúde e educação, é o principal problema do arcabouço?

Quando saiu o arcabouço, e eu o Marcos Mendes alertamos sobre isso: há uma inconsistência. Não interessa o nível de arrecadação. Como a receita cresce, a despesa obrigatória também cresce. Há um limite para o crescimento da despesa total e isso vai comprimindo as despesas discricionárias (não obrigatórias, como investimentos e custeio da máquina pública). Um ano depois, o problema está aí – e já há membros da equipe econômica que reconhecem isso.

Marcos Lisboa vê com preocupação medidas que melhoram de forma artificial a política fiscal do governo e diz que cumprir a meta não faz diferença se a dívida continua em alta. Foto: Erica Dezonne/Estadão

Quais as medidas mais essenciais para corrigir essas distorções? O debate passa, por exemplo, pelo fim das indexações?

O que interessa é o crescimento da dívida pública, do ponto de vista fiscal. E, para isso, a gente precisa ter receitas permanentes, de um lado, e despesas permanentes, de outro. A contabilidade não deveria inserir receitas temporárias. Agora, há medida no Congresso para transferir com mais agilidade depósitos judiciais para o Tesouro Nacional. Depósitos pelos quais famílias ainda estão se mobilizando e podem nem pertencer ao governo.

Essa receita é financeira ou primária?

O Congresso está dizendo, por lei, que vai ser primária. O Banco Central, as normas da contabilidade dizem que não deveriam ser. A criatividade na contabilidade pública está voltando com força.

Também foi apontada uma manobra no Auxílio Gás, embora a equipe econômica já esteja se mobilizando para derrubar a ideia, que veio do Ministério de Minas e Energia...

Sim, uma ameaça de fazer o pagamento via Caixa, sem transitar da maneira correta pelo Orçamento. Isso tudo significa apresentar contas públicas que sugerem uma solvência que, no fim do dia, não acontece – e a dívida cresce. Mas a conta não vem na hora. O descontrole a partir de 2009 a 2013 se manifestou em 2015. Você vai empurrando os problemas para debaixo do tapete, a economia aparentemente vai bem, mas, de repente, se interrompe o processo.

O cumprimento da meta tem muitas exclusões: precatórios, socorro ao Rio Grande do Sul, parte dos investimentos. Isso é problemático?

São diversos truques. Uma coisa não entra na despesa, outra sai da despesa primária. Se é isso, vamos esquecer o superávit primário, que está se tornando um guia pouco relevante para a preocupação principal, que é o aumento da dívida pública.

E as indexações?

Tem de rever as vinculações. Há indícios de uma série de problemas nas contas da Previdência que estão indexadas ao salário mínimo. O BPC (Benefício de Prestação Continuada), por exemplo, e outros benefícios estão com crescimento muito forte. E tem de mudar o foco na discussão sobre saúde e educação.

Por quê?

O gasto não tem virado melhora na qualidade da política pública. A educação teve um aumento grande de gasto, isso se transformou em aumento de salário para professores e aposentadorias. Mas e do ponto de vista do aluno? O foco deveria ser o aprendizado. Se eles não estão aprendendo, há algo de muito errado. O Brasil não pode ficar atrás dos demais emergentes. Estamos condenando uma geração a ter dificuldades no mercado de trabalho – e num mundo em que a tecnologia do conhecimento está aumentando.

Essas pautas são caras para um governo de esquerda. Como convencer o presidente em um ambiente político extremamente polarizado?

Queria que essa agenda fosse cara ao governo. Queria que o governo estivesse preocupado com a qualidade do ensino, aprendizados dos estudantes, a vacinação. Ou a focalização das políticas sociais dos mais pobres, e não das empresas mais ricas. Essa pauta do patrimonialismo no Brasil é ecumênica. Esquerda e direita votam igual na grande maioria dos casos. Conceder proteção para setores, a emenda Pix, possibilidade de a emenda ir direto para o caixa dos governos locais, sem transparência, isso tudo é compartilhado por esquerda e direita.

A equipe econômica estuda colocar a indexação limitada a um teto de 2,5%. Isso pode ter algum efeito?

Acho que pode ser. Mas queria ver antes uma discussão mais cuidadosa sobre a qualidade da política pública e do gasto. Vamos dando soluções paliativas, como agora pegar depósitos judiciais, dizer que é primário, tira despesa da meta. Truques vão sendo criados. Depois a crise vem e fica todo mundo olhando para o lado, olhando de quem é a culpa.

Por que a agenda de revisão de gastos não está andando?

Acho que isso não é um tema da política pública no Brasil. Em 2005, o Ministério da Fazenda soltou um documento que defendia uma agência independente, com mandato, para avaliar a eficácia do gasto. Mas isso não é o desejo e a prática da política pública no Brasil. Independentemente de ser governo de esquerda e de direita. Há vontade de gastar, de atender a interesses particulares. Sou muito cético de uma agenda de avaliação que não seja realizado por uma agência independente, com mandatos. No Brasil, o próprio gestor que faz a política avalia a política. Ele não vai reconhecer fracasso, vai ter resistência.

O sr. enxerga o risco de termos, em 2027, algo semelhante com o que ocorreu em 2015, ou seja, que a economia seja obrigada a passar por uma crise, ou um ajuste de forma abrupta?

Há tempo para corrigir isso, até lá. Mas veja o déficit das estatais, por exemplo: já houve um forte aumento nos últimos dois anos. A Emgea (Empresa Gestora de Ativos) agora vai poder securitizar crédito imobiliário, e de forma peculiar.

Qual o problema com a Emgea?

Ela vai comprar crédito imobiliário do sistema financeiro e emitir títulos que podem não estar vinculados a esses créditos. Isso permite um descasamento entre o ativo que foi comprado e o título que será emitido. No fim, isso é risco para o Tesouro. Se esse descasamento se realizar, vai ser uma conta adicional para o setor público. Se o governo quer que a Emgea tenha esse papel, ela deveria ser tratada com o mesmo rigor dos bancos: fazer avaliação de perda esperada, risco de descasamento e responsabilização dos gestores públicos que estão fazendo as operações. Isso é fundamental; do contrário, vamos comprar problema para frente, e mais uma vez, a sociedade brasileira vai pagar a conta.

Já se diz que a dívida pode subir 20 pontos (em relação ao PIB) em dez anos. Dá para isso acontecer sem haver uma crise?

Isso custa ao País, principalmente em termos de juros. A economia brasileira é muito volátil. Nos últimos 40 anos, houve 26 anos de crescimento e 14 anos de crise. Isso é muita coisa. País rico tem três, na média. País emergente, também três. O Brasil destoa:tem anos que está bem, crescendo a 3%, como este ano; e aí, de repente, vem a crise, entra em depressão, porque é mais grave. Fica uma visão de que ou vai dar tudo certo ou tudo vai acabar. Temos de sair desse ciclo maníaco-depressivo. Tem de sair também da polarização liberal e desenvolvimentismo. O Estado é fundamental para várias coisas, mas é preciso discutir como, onde, a forma. Política pública tem papel fundamental para melhorar a vida das pessoas.

E na política monetária? Como o sr. está vendo a transição no Banco Central?

A missão do BC é manter inflação estável. A forma usual de fazer isso é garantir a inflação estável minimizando custo social, como atividade e emprego. Isso é a boa prática há 30 anos no mundo. Por que gera tanto barulho no Brasil, me surpreende. Acaba atrapalhando a economia desnecessariamente. Nosso Banco Central funciona muito bem, há muitas décadas. Com exceção do governo Dilma, em que o BC tentou ser criativo e baixou juros quando toda a evidência que não deveria fazer isso, o BC no Brasil faz trabalho incrível.

BRASÍLIA – O economista Marcos Lisboa, sócio-diretor da Gibraltar Consulting, se mantém pessimista sobre o rumo das contas públicas do País. Embora ele reconheça que o momento da economia “é bom”, como mostram os últimos indicadores do PIB, ele diz que os alertas que foram feitos por vários especialistas – como ele próprio e o economista Marcos Mendes –, sobre as inconsistências do arcabouço fiscal estão se provando verdadeiras.

Uma fonte nova de preocupação, afirma, são os chamados “truques fiscais” que voltaram a ser notícia nas últimas semanas. Um deles foi motivo de alerta do próprio Banco Central, que afirmou que não iria contabilizar como receita primária (computada no resultado da meta) a apropriação, por parte do Tesouro Nacional, de recursos esquecidos em bancos por correntistas.

“O Congresso está dizendo que, por lei, essa receita vai ser primária. O Banco Central e as normas da contabilidade dizem que não deveria ser. A criatividade na contabilidade pública está voltando com força”, afirma Lisboa ao Estadão.

Lisboa diz que as metas fiscais do novo arcabouço estão se mostrando pouco eficazes para controlar a dívida pública, porque excluem da conta vários tipos de despesas. “Em última instância, é o impacto na dívida que realmente importa. Cumprir a meta dessa forma não diz muita coisa”, explica.

Ele entende que o governo precisa encarar com seriedade a agenda de revisão de gastos, o que deveria ser feito por uma agência independente, com mandatos fixos de seus diretores, e que as políticas de indexação de gastos não estão resultando em aumento de qualidade da política pública, especialmente nas áreas de saúde e educação. A seguir, os principais trechos da entrevista.

O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva se aproxima da metade do seu mandato. Que balanço é possível fazer sobre a política econômica até aqui?

O País vive um bom momento na economia. E há uma dúvida entre os economistas sobre o quanto as reformas que se iniciaram com o governo Temer aumentaram o crescimento potencial. Reforma trabalhista, teto de gastos – por alguns anos –, reforma das estatais, (reforma da) Previdência. Os dados indicam que houve impacto positivo relevante. Por outro lado, também há uma série de medidas, desde o último governo, que aumentaram as distorções microeconômicas. Também houve, desde o governo anterior, o início de uma forte expansão de gastos públicos. É um momento bom, mas estamos agravando os problemas fiscais para frente.

A equipe econômica diz, com razão, que o mercado tem errado muito as projeções de PIB e agora há quem aponte que a meta fiscal pode ser cumprida. A foto está melhor, mas o filme continua ruim?

O governo enfrenta a questão fiscal de forma muito preocupante, criando receitas temporárias para pagar despesas permanentes. A receita sobe em um ano com medidas pontuais, mas isso aumenta o gasto de forma permanente nos anos seguintes. Um exemplo disso acontece com as decisões do Carf. E também é muito preocupante um governo ter meta de condenação administrativa. Um tribunal como o Carf é para julgar o certo e o errado, não para ter meta de condenação ou de arrecadação. É uma disfuncionalidade da política pública, é bastante grave.

O crescimento das despesas indexadas, como salário mínimo e pisos da saúde e educação, é o principal problema do arcabouço?

Quando saiu o arcabouço, e eu o Marcos Mendes alertamos sobre isso: há uma inconsistência. Não interessa o nível de arrecadação. Como a receita cresce, a despesa obrigatória também cresce. Há um limite para o crescimento da despesa total e isso vai comprimindo as despesas discricionárias (não obrigatórias, como investimentos e custeio da máquina pública). Um ano depois, o problema está aí – e já há membros da equipe econômica que reconhecem isso.

Marcos Lisboa vê com preocupação medidas que melhoram de forma artificial a política fiscal do governo e diz que cumprir a meta não faz diferença se a dívida continua em alta. Foto: Erica Dezonne/Estadão

Quais as medidas mais essenciais para corrigir essas distorções? O debate passa, por exemplo, pelo fim das indexações?

O que interessa é o crescimento da dívida pública, do ponto de vista fiscal. E, para isso, a gente precisa ter receitas permanentes, de um lado, e despesas permanentes, de outro. A contabilidade não deveria inserir receitas temporárias. Agora, há medida no Congresso para transferir com mais agilidade depósitos judiciais para o Tesouro Nacional. Depósitos pelos quais famílias ainda estão se mobilizando e podem nem pertencer ao governo.

Essa receita é financeira ou primária?

O Congresso está dizendo, por lei, que vai ser primária. O Banco Central, as normas da contabilidade dizem que não deveriam ser. A criatividade na contabilidade pública está voltando com força.

Também foi apontada uma manobra no Auxílio Gás, embora a equipe econômica já esteja se mobilizando para derrubar a ideia, que veio do Ministério de Minas e Energia...

Sim, uma ameaça de fazer o pagamento via Caixa, sem transitar da maneira correta pelo Orçamento. Isso tudo significa apresentar contas públicas que sugerem uma solvência que, no fim do dia, não acontece – e a dívida cresce. Mas a conta não vem na hora. O descontrole a partir de 2009 a 2013 se manifestou em 2015. Você vai empurrando os problemas para debaixo do tapete, a economia aparentemente vai bem, mas, de repente, se interrompe o processo.

O cumprimento da meta tem muitas exclusões: precatórios, socorro ao Rio Grande do Sul, parte dos investimentos. Isso é problemático?

São diversos truques. Uma coisa não entra na despesa, outra sai da despesa primária. Se é isso, vamos esquecer o superávit primário, que está se tornando um guia pouco relevante para a preocupação principal, que é o aumento da dívida pública.

E as indexações?

Tem de rever as vinculações. Há indícios de uma série de problemas nas contas da Previdência que estão indexadas ao salário mínimo. O BPC (Benefício de Prestação Continuada), por exemplo, e outros benefícios estão com crescimento muito forte. E tem de mudar o foco na discussão sobre saúde e educação.

Por quê?

O gasto não tem virado melhora na qualidade da política pública. A educação teve um aumento grande de gasto, isso se transformou em aumento de salário para professores e aposentadorias. Mas e do ponto de vista do aluno? O foco deveria ser o aprendizado. Se eles não estão aprendendo, há algo de muito errado. O Brasil não pode ficar atrás dos demais emergentes. Estamos condenando uma geração a ter dificuldades no mercado de trabalho – e num mundo em que a tecnologia do conhecimento está aumentando.

Essas pautas são caras para um governo de esquerda. Como convencer o presidente em um ambiente político extremamente polarizado?

Queria que essa agenda fosse cara ao governo. Queria que o governo estivesse preocupado com a qualidade do ensino, aprendizados dos estudantes, a vacinação. Ou a focalização das políticas sociais dos mais pobres, e não das empresas mais ricas. Essa pauta do patrimonialismo no Brasil é ecumênica. Esquerda e direita votam igual na grande maioria dos casos. Conceder proteção para setores, a emenda Pix, possibilidade de a emenda ir direto para o caixa dos governos locais, sem transparência, isso tudo é compartilhado por esquerda e direita.

A equipe econômica estuda colocar a indexação limitada a um teto de 2,5%. Isso pode ter algum efeito?

Acho que pode ser. Mas queria ver antes uma discussão mais cuidadosa sobre a qualidade da política pública e do gasto. Vamos dando soluções paliativas, como agora pegar depósitos judiciais, dizer que é primário, tira despesa da meta. Truques vão sendo criados. Depois a crise vem e fica todo mundo olhando para o lado, olhando de quem é a culpa.

Por que a agenda de revisão de gastos não está andando?

Acho que isso não é um tema da política pública no Brasil. Em 2005, o Ministério da Fazenda soltou um documento que defendia uma agência independente, com mandato, para avaliar a eficácia do gasto. Mas isso não é o desejo e a prática da política pública no Brasil. Independentemente de ser governo de esquerda e de direita. Há vontade de gastar, de atender a interesses particulares. Sou muito cético de uma agenda de avaliação que não seja realizado por uma agência independente, com mandatos. No Brasil, o próprio gestor que faz a política avalia a política. Ele não vai reconhecer fracasso, vai ter resistência.

O sr. enxerga o risco de termos, em 2027, algo semelhante com o que ocorreu em 2015, ou seja, que a economia seja obrigada a passar por uma crise, ou um ajuste de forma abrupta?

Há tempo para corrigir isso, até lá. Mas veja o déficit das estatais, por exemplo: já houve um forte aumento nos últimos dois anos. A Emgea (Empresa Gestora de Ativos) agora vai poder securitizar crédito imobiliário, e de forma peculiar.

Qual o problema com a Emgea?

Ela vai comprar crédito imobiliário do sistema financeiro e emitir títulos que podem não estar vinculados a esses créditos. Isso permite um descasamento entre o ativo que foi comprado e o título que será emitido. No fim, isso é risco para o Tesouro. Se esse descasamento se realizar, vai ser uma conta adicional para o setor público. Se o governo quer que a Emgea tenha esse papel, ela deveria ser tratada com o mesmo rigor dos bancos: fazer avaliação de perda esperada, risco de descasamento e responsabilização dos gestores públicos que estão fazendo as operações. Isso é fundamental; do contrário, vamos comprar problema para frente, e mais uma vez, a sociedade brasileira vai pagar a conta.

Já se diz que a dívida pode subir 20 pontos (em relação ao PIB) em dez anos. Dá para isso acontecer sem haver uma crise?

Isso custa ao País, principalmente em termos de juros. A economia brasileira é muito volátil. Nos últimos 40 anos, houve 26 anos de crescimento e 14 anos de crise. Isso é muita coisa. País rico tem três, na média. País emergente, também três. O Brasil destoa:tem anos que está bem, crescendo a 3%, como este ano; e aí, de repente, vem a crise, entra em depressão, porque é mais grave. Fica uma visão de que ou vai dar tudo certo ou tudo vai acabar. Temos de sair desse ciclo maníaco-depressivo. Tem de sair também da polarização liberal e desenvolvimentismo. O Estado é fundamental para várias coisas, mas é preciso discutir como, onde, a forma. Política pública tem papel fundamental para melhorar a vida das pessoas.

E na política monetária? Como o sr. está vendo a transição no Banco Central?

A missão do BC é manter inflação estável. A forma usual de fazer isso é garantir a inflação estável minimizando custo social, como atividade e emprego. Isso é a boa prática há 30 anos no mundo. Por que gera tanto barulho no Brasil, me surpreende. Acaba atrapalhando a economia desnecessariamente. Nosso Banco Central funciona muito bem, há muitas décadas. Com exceção do governo Dilma, em que o BC tentou ser criativo e baixou juros quando toda a evidência que não deveria fazer isso, o BC no Brasil faz trabalho incrível.

BRASÍLIA – O economista Marcos Lisboa, sócio-diretor da Gibraltar Consulting, se mantém pessimista sobre o rumo das contas públicas do País. Embora ele reconheça que o momento da economia “é bom”, como mostram os últimos indicadores do PIB, ele diz que os alertas que foram feitos por vários especialistas – como ele próprio e o economista Marcos Mendes –, sobre as inconsistências do arcabouço fiscal estão se provando verdadeiras.

Uma fonte nova de preocupação, afirma, são os chamados “truques fiscais” que voltaram a ser notícia nas últimas semanas. Um deles foi motivo de alerta do próprio Banco Central, que afirmou que não iria contabilizar como receita primária (computada no resultado da meta) a apropriação, por parte do Tesouro Nacional, de recursos esquecidos em bancos por correntistas.

“O Congresso está dizendo que, por lei, essa receita vai ser primária. O Banco Central e as normas da contabilidade dizem que não deveria ser. A criatividade na contabilidade pública está voltando com força”, afirma Lisboa ao Estadão.

Lisboa diz que as metas fiscais do novo arcabouço estão se mostrando pouco eficazes para controlar a dívida pública, porque excluem da conta vários tipos de despesas. “Em última instância, é o impacto na dívida que realmente importa. Cumprir a meta dessa forma não diz muita coisa”, explica.

Ele entende que o governo precisa encarar com seriedade a agenda de revisão de gastos, o que deveria ser feito por uma agência independente, com mandatos fixos de seus diretores, e que as políticas de indexação de gastos não estão resultando em aumento de qualidade da política pública, especialmente nas áreas de saúde e educação. A seguir, os principais trechos da entrevista.

O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva se aproxima da metade do seu mandato. Que balanço é possível fazer sobre a política econômica até aqui?

O País vive um bom momento na economia. E há uma dúvida entre os economistas sobre o quanto as reformas que se iniciaram com o governo Temer aumentaram o crescimento potencial. Reforma trabalhista, teto de gastos – por alguns anos –, reforma das estatais, (reforma da) Previdência. Os dados indicam que houve impacto positivo relevante. Por outro lado, também há uma série de medidas, desde o último governo, que aumentaram as distorções microeconômicas. Também houve, desde o governo anterior, o início de uma forte expansão de gastos públicos. É um momento bom, mas estamos agravando os problemas fiscais para frente.

A equipe econômica diz, com razão, que o mercado tem errado muito as projeções de PIB e agora há quem aponte que a meta fiscal pode ser cumprida. A foto está melhor, mas o filme continua ruim?

O governo enfrenta a questão fiscal de forma muito preocupante, criando receitas temporárias para pagar despesas permanentes. A receita sobe em um ano com medidas pontuais, mas isso aumenta o gasto de forma permanente nos anos seguintes. Um exemplo disso acontece com as decisões do Carf. E também é muito preocupante um governo ter meta de condenação administrativa. Um tribunal como o Carf é para julgar o certo e o errado, não para ter meta de condenação ou de arrecadação. É uma disfuncionalidade da política pública, é bastante grave.

O crescimento das despesas indexadas, como salário mínimo e pisos da saúde e educação, é o principal problema do arcabouço?

Quando saiu o arcabouço, e eu o Marcos Mendes alertamos sobre isso: há uma inconsistência. Não interessa o nível de arrecadação. Como a receita cresce, a despesa obrigatória também cresce. Há um limite para o crescimento da despesa total e isso vai comprimindo as despesas discricionárias (não obrigatórias, como investimentos e custeio da máquina pública). Um ano depois, o problema está aí – e já há membros da equipe econômica que reconhecem isso.

Marcos Lisboa vê com preocupação medidas que melhoram de forma artificial a política fiscal do governo e diz que cumprir a meta não faz diferença se a dívida continua em alta. Foto: Erica Dezonne/Estadão

Quais as medidas mais essenciais para corrigir essas distorções? O debate passa, por exemplo, pelo fim das indexações?

O que interessa é o crescimento da dívida pública, do ponto de vista fiscal. E, para isso, a gente precisa ter receitas permanentes, de um lado, e despesas permanentes, de outro. A contabilidade não deveria inserir receitas temporárias. Agora, há medida no Congresso para transferir com mais agilidade depósitos judiciais para o Tesouro Nacional. Depósitos pelos quais famílias ainda estão se mobilizando e podem nem pertencer ao governo.

Essa receita é financeira ou primária?

O Congresso está dizendo, por lei, que vai ser primária. O Banco Central, as normas da contabilidade dizem que não deveriam ser. A criatividade na contabilidade pública está voltando com força.

Também foi apontada uma manobra no Auxílio Gás, embora a equipe econômica já esteja se mobilizando para derrubar a ideia, que veio do Ministério de Minas e Energia...

Sim, uma ameaça de fazer o pagamento via Caixa, sem transitar da maneira correta pelo Orçamento. Isso tudo significa apresentar contas públicas que sugerem uma solvência que, no fim do dia, não acontece – e a dívida cresce. Mas a conta não vem na hora. O descontrole a partir de 2009 a 2013 se manifestou em 2015. Você vai empurrando os problemas para debaixo do tapete, a economia aparentemente vai bem, mas, de repente, se interrompe o processo.

O cumprimento da meta tem muitas exclusões: precatórios, socorro ao Rio Grande do Sul, parte dos investimentos. Isso é problemático?

São diversos truques. Uma coisa não entra na despesa, outra sai da despesa primária. Se é isso, vamos esquecer o superávit primário, que está se tornando um guia pouco relevante para a preocupação principal, que é o aumento da dívida pública.

E as indexações?

Tem de rever as vinculações. Há indícios de uma série de problemas nas contas da Previdência que estão indexadas ao salário mínimo. O BPC (Benefício de Prestação Continuada), por exemplo, e outros benefícios estão com crescimento muito forte. E tem de mudar o foco na discussão sobre saúde e educação.

Por quê?

O gasto não tem virado melhora na qualidade da política pública. A educação teve um aumento grande de gasto, isso se transformou em aumento de salário para professores e aposentadorias. Mas e do ponto de vista do aluno? O foco deveria ser o aprendizado. Se eles não estão aprendendo, há algo de muito errado. O Brasil não pode ficar atrás dos demais emergentes. Estamos condenando uma geração a ter dificuldades no mercado de trabalho – e num mundo em que a tecnologia do conhecimento está aumentando.

Essas pautas são caras para um governo de esquerda. Como convencer o presidente em um ambiente político extremamente polarizado?

Queria que essa agenda fosse cara ao governo. Queria que o governo estivesse preocupado com a qualidade do ensino, aprendizados dos estudantes, a vacinação. Ou a focalização das políticas sociais dos mais pobres, e não das empresas mais ricas. Essa pauta do patrimonialismo no Brasil é ecumênica. Esquerda e direita votam igual na grande maioria dos casos. Conceder proteção para setores, a emenda Pix, possibilidade de a emenda ir direto para o caixa dos governos locais, sem transparência, isso tudo é compartilhado por esquerda e direita.

A equipe econômica estuda colocar a indexação limitada a um teto de 2,5%. Isso pode ter algum efeito?

Acho que pode ser. Mas queria ver antes uma discussão mais cuidadosa sobre a qualidade da política pública e do gasto. Vamos dando soluções paliativas, como agora pegar depósitos judiciais, dizer que é primário, tira despesa da meta. Truques vão sendo criados. Depois a crise vem e fica todo mundo olhando para o lado, olhando de quem é a culpa.

Por que a agenda de revisão de gastos não está andando?

Acho que isso não é um tema da política pública no Brasil. Em 2005, o Ministério da Fazenda soltou um documento que defendia uma agência independente, com mandato, para avaliar a eficácia do gasto. Mas isso não é o desejo e a prática da política pública no Brasil. Independentemente de ser governo de esquerda e de direita. Há vontade de gastar, de atender a interesses particulares. Sou muito cético de uma agenda de avaliação que não seja realizado por uma agência independente, com mandatos. No Brasil, o próprio gestor que faz a política avalia a política. Ele não vai reconhecer fracasso, vai ter resistência.

O sr. enxerga o risco de termos, em 2027, algo semelhante com o que ocorreu em 2015, ou seja, que a economia seja obrigada a passar por uma crise, ou um ajuste de forma abrupta?

Há tempo para corrigir isso, até lá. Mas veja o déficit das estatais, por exemplo: já houve um forte aumento nos últimos dois anos. A Emgea (Empresa Gestora de Ativos) agora vai poder securitizar crédito imobiliário, e de forma peculiar.

Qual o problema com a Emgea?

Ela vai comprar crédito imobiliário do sistema financeiro e emitir títulos que podem não estar vinculados a esses créditos. Isso permite um descasamento entre o ativo que foi comprado e o título que será emitido. No fim, isso é risco para o Tesouro. Se esse descasamento se realizar, vai ser uma conta adicional para o setor público. Se o governo quer que a Emgea tenha esse papel, ela deveria ser tratada com o mesmo rigor dos bancos: fazer avaliação de perda esperada, risco de descasamento e responsabilização dos gestores públicos que estão fazendo as operações. Isso é fundamental; do contrário, vamos comprar problema para frente, e mais uma vez, a sociedade brasileira vai pagar a conta.

Já se diz que a dívida pode subir 20 pontos (em relação ao PIB) em dez anos. Dá para isso acontecer sem haver uma crise?

Isso custa ao País, principalmente em termos de juros. A economia brasileira é muito volátil. Nos últimos 40 anos, houve 26 anos de crescimento e 14 anos de crise. Isso é muita coisa. País rico tem três, na média. País emergente, também três. O Brasil destoa:tem anos que está bem, crescendo a 3%, como este ano; e aí, de repente, vem a crise, entra em depressão, porque é mais grave. Fica uma visão de que ou vai dar tudo certo ou tudo vai acabar. Temos de sair desse ciclo maníaco-depressivo. Tem de sair também da polarização liberal e desenvolvimentismo. O Estado é fundamental para várias coisas, mas é preciso discutir como, onde, a forma. Política pública tem papel fundamental para melhorar a vida das pessoas.

E na política monetária? Como o sr. está vendo a transição no Banco Central?

A missão do BC é manter inflação estável. A forma usual de fazer isso é garantir a inflação estável minimizando custo social, como atividade e emprego. Isso é a boa prática há 30 anos no mundo. Por que gera tanto barulho no Brasil, me surpreende. Acaba atrapalhando a economia desnecessariamente. Nosso Banco Central funciona muito bem, há muitas décadas. Com exceção do governo Dilma, em que o BC tentou ser criativo e baixou juros quando toda a evidência que não deveria fazer isso, o BC no Brasil faz trabalho incrível.

Entrevista por Alvaro Gribel

Repórter especial e colunista do Estadão em Brasília. Há mais de 15 anos acompanha os principais assuntos macroeconômicos no Brasil e no mundo. Foi colunista e coordenador de economia no Globo.

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