‘Sem cortar gasto, governo não vai cumprir meta fiscal em 2025’, diz ex-secretário da Fazenda do CE


Para Mauro Benevides Filho, hoje deputado federal, o superávit primário é importante, mas é preciso estabelecer também uma meta para a despesa com juros, que é o que turbina a dívida pública

Por José Fucs
Atualização:
Entrevista comMauro Benevides FilhoEconomista, deputado federal (PDT-CE) e ex-secretário da Fazenda do Ceará

O deputado federal Mauro Benevides Filho (PDT-CE), ex-conselheiro econômico de Ciro Gomes na campanha eleitoral de 2022, é um dos poucos economistas de esquerda no País que é a favor do controle de gastos do governo e do equilíbrio fiscal. Como secretário da Fazenda do Ceará, cargo que ocupou por 12 anos, inclusive na gestão do ex-governador Camilo Santana, do PT, hoje ministro da Educação, ele ganhou os holofotes por conseguir manter as contas do Estado em ordem e alavancar o investimento público ao mesmo tempo.

Nesta entrevista ao Estadão, Benevides Filho fala sobre a necessidade de o governo Lula manter o rigor fiscal e afirma que, se não houver corte de gastos, não vai dar para cumprir a meta de déficit zero em 2025. Ele diz, porém, que, diante do elevado gasto do governo com o pagamento de juros, calculado em quase R$ 900 bilhões neste ano, não há como estabilizar o crescimento da dívida pública, mesmo com superávit primário. Por isso, defende que haja “maior transparência” em relação à despesa financeira e uma discussão técnica, “sem bravata política”, sobre o estabelecimento de um limite para o gasto com juros.

Benevides Filho fala também a respeito de seu encontro com o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, para debater o assunto, e analisa a “contabilidade criativa” que está sendo ressuscitada pela atual gestão, segundo muitos analistas. Diz, ainda, que a propalada gastança que estaria sendo promovida pelo governo Lula não é confirmada pelos números e faz profissão de fé de que, em 2024, a meta fiscal será cumprida. Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

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Como secretário da Fazenda do Ceará, o sr. sempre teve uma preocupação em manter o equilíbrio nas contas públicas. Como o sr. está vendo a política fiscal do governo Lula?

Realmente, eu sempre fui muito rigoroso, sou muito rigoroso em relação ao equilíbrio fiscal. Acredito que nós precisamos ter resultado primário positivo. Eu sou da corrente fiscalista, sou ativista no Congresso Nacional, como deputado da bancada fiscal. No Brasil, sempre houve “n” regras para controlar a despesa primária (que exclui o pagamento de juros da dívida pública): a Lei 4.320 (dispositivo que regula os orçamentos e as contas da União, dos Estados e dos municípios), a regra de ouro (que proíbe o governo brasileiro de fazer dívidas para pagar despesas correntes, como aposentadorias, salários do funcionalismo e outras despesas da máquina administrativa), a Emenda Constitucional 109 (que limitou o gasto com serviços públicos além da inflação por 20 anos), o teto de gastos, o arcabouço fiscal.

Só que nada disso foi suficiente para permitir a estabilização da dívida em relação ao PIB (Produto Interno Bruto). Desde 1999, quando foi instituído o tripé macroeconômico, composto pelo resultado primário, pela meta de inflação e pelo câmbio flutuante, nunca houve um superávit primário que cobrisse os gastos com os juros da dívida. Infelizmente, ninguém no Brasil examina a despesa financeira, que é o que mais importa para o crescimento da dívida pública. Todo mundo só quer saber do resultado primário.

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Benevides Filho afirma que a alta taxa real de juros do País não permite uma estabilidade na relação dívida/PIB, mesmo com superávit primário  Foto: Nilton Fukuda/Estadão

O sr. diz que, desde 1999, não ocorreu uma redução da relação dívida/PIB mesmo quando houve superávit primário. E a queda que ocorreu nos governos Lula 1 e 2 e Bolsonaro?

Isso só aconteceu porque eles tiveram receitas não recorrentes. Na gestão do Paulo Guedes, o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) devolveu R$ 300 bilhões ao Tesouro e o TCU (Tribunal de Contas da União) obrigou o governo a usar esse dinheiro para amortizar a dívida pública. Nos governos Lula 1 e 2, houve a receita do pré-sal, de quase R$ 100 bilhões, mais R$ 40 bilhões de Refis (Programa de Recuperação Fiscal) e assim por diante. O modelo brasileiro não permite uma estabilidade na relação dívida/PIB, por causa da taxa real de juros do País. Não faz sentido essa taxa ser tão elevada, em função desse “risco Brasil” que é tão demandado pelo sistema financeiro. E não me venha com essa história de que “ah, isso é política”. Eu estou falando aqui de teoria econômica.

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No Brasil, a gente cobra o governo, porque os R$ 500 milhões que serão destinados ao combate das queimadas deverão ficar fora do resultado primário e vão aumentar a dívida pública. Recentemente, numa entrevista ao Estadão, o (economista) Marcos Mendes disse “olha, tem aí três, quatro despesas que estão ficando fora do resultado primário e isso pode ser considerado como ‘contabilidade criativa’”. Mas ninguém fala que esses R$ 500 milhões, mais aqueles R$ 4 bilhões ali e outros R$ 2 bilhões acolá, que também deverão ficar fora do resultado primário, não calçam nem o chinelo dos quase R$ 900 bilhões que nós deveremos pagar de juros neste ano. O que está aumentando a dívida pública não é o déficit primário, mas o que a gente gasta com o pagamento de juros. Este é o ponto.

Agora, independentemente do impacto na dívida pública, os juros guardam uma relação com o resultado primário. Quando o resultado primário é positivo, os juros tendem a ser mais baixos, com um impacto menor na dívida. E, quando há um resultado primário negativo, a taxa tende a ser maior. A gente não tem de levar isso em conta nessa equação?

Veja, não interessa se a dívida pública está aumentando 2% com primário negativo ou se vai aumentar 1% com primário positivo. Ela continua aumentando. Aqui no Brasil, quando eu vou dar minhas palestras nos bancos e entro nessa questão, eles dizem “ah, você não quer pagar a dívida, quer dar um calote”. Aí eu digo para eles: “Vamos pegar, então, o caso dos Estados Unidos. Vocês adoram os Estados Unidos. Pois bem, os Estados Unidos, que são o país mais capitalista do mundo, têm meta financeira”. Lá, todo ano o orçamento coloca um limite na dívida. Quando o gasto chega no limite, para tudo. Não para só o pagamento da dívida, não. Para o pagamento de pessoal, também. Fecha museu, fecha tudo. E veja que os Estados Unidos são o ancoradouro da poupança internacional. O risco não é só interno. A Alemanha também tem um limite para a despesa financeira, que está na Constituição. Cada um tem a sua regra. Agora, aqui no Brasil não tem regra. Por que o Brasil não pode ter uma única meta de cunho financeiro? Essa discussão está interditada aqui. O sistema financeiro não permite que ela exista.

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No orçamento da União, quando você quer suplementar uma despesa primária, há uma regra que diz que o governo só pode suplementar por decreto. Ele faz o decreto e publica no Diário Oficial, que ninguém lê. Se o governo quiser fazer uma suplementação maior do que 20%, é obrigado a mandar um PLN (projeto de lei) para o Congresso Nacional tomar conhecimento. No caso do gasto com juros, é diferente. No ano passado, o Orçamento previa um gasto de R$ 386 bilhões com juros da dívida, mas o total chegou a R$ 760 bilhões, quase o dobro. Como é que o governo cobriu essa diferença? Fez um decreto para suplementar esses valores. Você sabe qual é o limite para suplementação de gasto financeiro por decreto no Brasil? Não tem. O céu é o limite.

Não faz sentido o governo federal aumentar o gasto com juros de R$ 400 bilhões para R$ 900 bilhões e isso não reverberar como o resultado primário

O sr. falou que, nos Estados Unidos e na Alemanha, o déficit financeiro, a despesa com juros, está dentro do limite de gastos. Mas tanto nos Estados Unidos como na Alemanha o Banco Central tem liberdade para fixar os juros.

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Sim, eles são livres para fixar os juros. Nos Estados Unidos, o Federal Reserve Bank (Fed, o banco central americano) pratica a taxa de juros que quer. Na Alemanha, com o Bundesbank (banco central alemão), é a mesma coisa. Não tem diferença. O limite para o gasto financeiro não tira a liberdade de o Banco Central fixar a taxa de juros.

Em sua avaliação, como deve ser tratada essa questão do déficit financeiro no Brasil?

Eu acredito que o primeiro passo é dar transparência ao gasto financeiro. Esta palavra é muito importante: transparência. Não faz sentido o governo federal aumentar o gasto com juros de R$ 400 bilhões para R$ 900 bilhões e isso não reverberar como ocorre quando o resultado primário fica fora da meta. As pessoas vão dizer “não, mas isso é publicado no Diário Oficial”. Um gasto desse tamanho não pode ficar só nos documentos oficiais. Isso tem de ser reverberado como o acorre com o resultado primário, como esses R$ 40 bilhões que deverão ficar fora da regra fiscal e que há dias vêm pautando o noticiário econômico do País. Como eu disse há pouco, acredito que nós temos de ter um resultado primário positivo, mas isso não é suficiente para estabilizar a relação dívida/PIB, se não tivermos uma regra para controlar a despesa financeira.

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O sr. acha, então, que o resultado primário não tem influência no nível de juros, no déficit financeiro? As duas coisas não têm relação nenhuma?

É claro que o resultado primário tem relação com os juros. Só que eu acredito que praticamente não há influência do primário na relação dívida/PIB. A Argentina deu um calote na dívida há seis anos e paga uma taxa de juro real menor do que a nossa. Como é que é isso? O México também, com mil problemas, tem um juro real menor. E o Brasil, que não dá calote, que só deu um calote lá nos anos 1970, sei lá quando, tem a maior taxa de juros real do mundo, tirando a Rússia. Não estou dizendo que o sistema financeiro não tem de cobrar o risco dele. Tem de cobrar. É óbvio que ninguém vai financiar o governo sem receber um prêmio por isso. O que eu estou questionando é o tamanho desse juro real. Com primário positivo ou com primário negativo, o juro real no Brasil continua sendo o maior do mundo. Por isso é que eu digo que tem de haver uma regra para balizar a despesa financeira. Não faz sentido aumentar o gasto com juros de R$ 400 bilhões para R$ 900 bilhões por decreto.

Mais uma vez, deputado, independentemente da discussão sobre o nível dos juros no País, a gente tem de levar em conta que o patamar da taxa é muito influenciado pela política fiscal, pelo resultado primário. Quando não há uma política fiscal equilibrada, fica mais difícil cortar os juros. Todo o peso da estabilização da moeda, da contenção de um eventual impulso inflacionário, fica em cima da política monetária. E hoje o que a gente observa é que, do ponto de vista do resultado primário, há uma atitude relapsa do governo, que acaba contribuindo para manter os juros num patamar mais elevado do que eles poderiam ser se a política fiscal fosse mais equilibrada. Como o sr. analisa essa questão?

Não procede, porque, mesmo com resultado primário positivo, como eu falei, o Brasil sempre teve um crescimento da relação dívida/PIB, salvo nesses dois períodos que eu mencionei. Não por causa do resultado primário, mas pelas receitas extraordinárias obtidas na época. Do ponto de vista da dívida pública, não faz diferença se a taxa de juros vai cair de 10,25% ao ano para 9,75% ao ano, se houver um superávit primário de R$ 10 bilhões, em vez de um déficit. Isso não resolve o problema. O que eu estou questionando é o nível dos juros que a gente pratica. Para mim, essa taxa real de juros que o sistema financeiro demanda está além do risco que o País efetivamente apresenta.

Tive uma conversa de alto nível, de duas horas e meia, com o Campos Neto sobre os juros. Ele viu que eu não estava com bravata

Agora, mesmo considerando isso que o senhor está dizendo, a gente não tem de levar em conta também que, quando não há superávit primário, a tendência é o juro ser mais alto, levando a um crescimento maior da relação dívida/PIB?

O ponto não é esse. O ponto, mais uma vez, é que, independentemente de o resultado primário ser positivo ou negativo, o patamar da taxa de juros real é brutal. Não há razão para isso. A gente precisa discutir abertamente essa questão. É isso que aumentando a dívida pública e não a despesa primária.

Eu entendo o ponto que o senhor está colocando, mas não dá para negar que o grande salto da dívida pública no País se deu logo após a aprovação da Constituição de 1988, em função do aumento das atribuições da União sem a existência de receitas correspondentes, e nos governos Dilma 1 e 2, quando o déficit primário e a “contabilidade criativa” prosperaram. Então, como a gente pode desconsiderar a contribuição do déficit primário para a alta dos juros e o crescimento da dívida pública?

De novo, eu sou favorável ao resultado primário positivo. Não abro mão disso. O que estou querendo dizer é que só isso não é suficiente para estabilizar a relação dívida/PIB, que é o que nós queremos. E que, mesmo com o primário sendo positivo, como eu acho que deve ser, que é algo importante, isso não é suficiente para a gente estabilizar a relação dívida/PIB.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem feito críticas pesadas, com forte viés político, ao presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, por causa dos juros altos. O sr. não teme que as suas colocações sejam vistas como uma “passada de pano” para as bravatas do presidente?

Não, pelo contrário. (Isso) vai ser mantido como está. Você tem a bravata política e tem a prática. Tem a bravata (do presidente), mas como é que está (agindo) o indicado dele?

Eu é que pergunto para o sr.

Está dentro (do sistema).

O que sr. quer dizer com isso? Que, na prática, independentemente das bravatas do Lula, o governo acaba fazendo o jogo do sistema financeiro em relação à taxa de juros?

Lá na Câmara, é isso que os deputados me questionam. Eles me chamam de “professor”, porque lá eu tenho abordado essas questões de forma mais aprofundada, para tentar abrir um pouco a cabeça do pessoal, inclusive de alguns jornalistas que cobrem a gente. Tudo para eles é resultado primário. Se eu falo de resultado financeiro, eles dizem “como assim?”. Quem é o brasileiro que sabe que o Brasil vai gastar neste ano quase R$ 900 bilhões com juros? Ninguém sabe. A gente precisa contar o impacto disso na dívida pública e dar transparência à despesa financeira do governo. Por isso, eu resolvi enfrentar essa questão tecnicamente, dentro da teoria econômica, sem ficar na bravata. Alguns meses atrás, eu até estive com o Roberto Campos Neto, para falar sobre isso.

Como foi esse encontro com o presidente do Banco Central?

Ele é um gentleman. Foi me receber lá embaixo, na portaria. Foi uma conversa de umas duas horas e meia, de alto nível. Ele viu que eu não estava com bravata. Fui com uma orientanda minha do doutorado na UFC (Universidade Federal do Ceará), a Isadora Osterno, que fez uma tese sobre o Banco Central e acabou de ser aprovada em concurso público para lecionar lá, e o professor Flávio Ataliba, que é pós-doutor em Harvard. Nós rodamos tanto o modelo de equilíbrio geral do Banco Central, que é o Samba, como o modelo de curto prazo. Depois de cinco horas para rodar isso no nosso computador da UFC, chegamos à conclusão de que a taxa básica (Selic) deveria ser de 11,25% ao ano, em vez dos 13,75% ao ano praticados na época, e levamos os indicadores para ele.

O que o Roberto Campos achou do levantamento que vocês realizaram?

Quando a gente chegou lá e eu disse o que nós tínhamos rodado, o técnico que estava com ele disse “eu sou matemático, não sou economista, deixa eu chamar aqui o pessoal da área”. Ele chamou três técnicos do Samba, aliás muito competentes, para conversar com a gente. Aí, um deles falou: “Dra. Isadora, no modelo que sra. estimou há vários coeficientes que nós achamos que estão equivocados”. Então, eu disse: “Se o senhor acha que os nossos coeficientes estão equivocados, por que não me dá os seus, para a gente poder rodar os modelos?”. Mas eles não deram, não.

É complicado. Eles não vão compartilhar isso com alguém de fora do Banco Central.

Você veja como as coisas não são tão fáceis.

É difícil ver alguém como o sr. querer levar essa discussão de um ponto de vista técnico. Quando isso acontece, o debate fica mais produtivo. A pessoa pode até discordar das suas ideias e apresentar argumentos em sentido contrário, mas não é aquela coisa de dizer que o presidente do Banco Central é “bolsonarista” por manter os juros altos.

Isso, a pessoa pode até discordar. Sem problema. Eu não quero saber desse negócio de política, de bravata. Eu quero falar de modelagem.

Eu não sei se o Roberto Campos Neto é bolsonarista ou não, mas acredito que, se ele quisesse ter ajudado o Bolsonaro nas eleições de 2022, não tinha deixado a taxa de juros lá em cima, em 13,75% ao ano, certo?

É claro. Eu também não penso por esse viés. Nem sei se ele ora para o Bolsonaro. Ele ora para o mercado financeiro. O viés é outro.

Qual é a gastança? O déficit primário deste ano está dentro da meta prevista no arcabouço fiscal, mesmo que seja na banda inferior

Isso eu também não sei. O sr. é que está dizendo. Agora, é o mercado que compra o papelório do governo para rolar a dívida pública, não é? Então, acredito que o mercado deve ser levado em conta, porque, no dia que em que ele não quiser bancar o financiamento do Tesouro, nós vamos ter um problema sério. O sr. não acha?

Se o Brasil tivesse, como teve no passado, 27% ou 28% da dívida pública indexada ao câmbio, haveria o risco de o investidor não vir mais para o País. Mas hoje a dívida pública brasileira é quase todo em real. Apenas 7% são indexados ao câmbio, o que não é nada. Não tem possibilidade de default. “Ah, mas vai ter inflação depois”. Pode ser. Mas default? O que é isso? Essa possibilidade não existe. O máximo que pode acontecer é o Brasil, num eventual descalabro total, ter de pagar, sei lá, R$ 50 bilhões, R$ 100 bilhões de juros a mais para poder rolar a dívida pública.

Deixando essa questão do default de lado, o sr. concorda que, se o governo não fizesse a gastança que está fazendo, essa despesa de quase R$ 900 bilhões com juros provavelmente seria bem menor?

Qual é a gastança? O déficit primário deste ano está dentro da meta prevista no arcabouço fiscal (déficit de zero a 0,25% do PIB), mesmo que seja na banda inferior, com previsão de um resultado negativo de R$ 28 bilhões. Em agosto, a arrecadação aumentou 12% em termos reais em relação ao mesmo mês do ano passado. Então, a gente tem de fazer uma reflexão de como essa coisa está evoluindo. Não dá para cantar que o déficit primário ficará acima de R$ 30 bilhões. Se ele for de até R$ 30 bilhões, ainda ficará dentro da meta. Essa gastança da qual todo mundo fala tem de ser traduzida em números concretos. O pessoal fala “ah, o teto do gasto foi muito importante” para controlar as despesas públicas. O teto do gasto só teve um efeito: reduziu o investimento. Ele não diminuiu em nada a despesa obrigatória. Este é outro mito. Os gastos obrigatórios até aumentaram de 90% para 92% do total da despesa primária com a adoção do teto dos gastos.

Desculpe, deputado, mas eu tenho esses números de cabeça, porque produzi uma reportagem recentemente sobre isso. Segundo os dados do próprio Tesouro, a despesa primária líquida caiu de forma significativa, de 19,9% do PIB no fim do governo Dilma e de 19,3% do PIB em 2018 para 18% do PIB em 2021 e 2022. Não só por causa da queda dos investimentos do governo, mas também porque não houve aumento salarial do funcionalismo nem aumento real do salário mínimo, das aposentadorias e de outros benefícios sociais. Ao mesmo tempo, o quadro de servidores teve uma redução de 47 mil funcionários, ou seja, de 7,5% do total no fim do governo Temer. Como o sr. pode afirmar que não há gastança no governo Lula?

A despesa primária se estabilizou em 19% do PIB com o teto de gastos e só veio para 18,8% em 2022, porque o governo cortou o investimento. Na média, de 2017 a 2022, a despesa obrigatória ficou em 19,1% do PIB. Então, a despesa obrigatória não caiu e o investimento é que foi penalizado.

Se o PIB cresceu nesse período e não houve aumento real nesses quesitos que eu mencionei, não tem como a despesa ter caído só no investimento. Até porque o investimento do governo federal, sem contar as estatais, representava apenas 0,25% do PIB, enquanto a queda nas despesas foi de 1,3 ponto percentual em relação a 2018.

Eu estou dando um dado. A despesa obrigatória, do total da despesa, aumentou de 90% para 92% do total. Só para a gente enxergar o que aconteceu.

Agora, deputado, só em 2023, de acordo com os dados oficiais, a despesa primária líquida aumentou de 18% para 19,6% do PIB, quase 9% em termos reais num ano só. Isso não é gastança?

Quando é que eu vou caracterizar a gastança? Eu vou caracterizar a gastança quando o governo descumprir as metas já chanceladas pelo mercado, pelo Orçamento e pelo arcabouço fiscal. Você pode dizer “não, mas no fim do ano pode ser que ele não cumpra”. Aí nós vamos discutir o assunto novamente lá no fim do ano. Mas querer imputar a gastança sem antes ela se concretizar não dá.

Só no ano passado, foram R$ 230 bilhões de déficit primário, o equivalente a 2,1% do PIB, o segundo maior déficit da história.

Não, não houve R$230 bilhões de déficit. É preciso levar em conta que houve R$ 92 bilhões de precatórios dentro do resultado primário. Então, não vamos distorcer as coisas. Uma das principais despesas que foram feitas foi o pagamento da dívida dos precatórios que o Paulo Guedes não pagou, sem que o atual governo fosse responsável por ela. O Paulo Guedes fez isso aí e todo mundo achou lindo. Era para o mercado ter penalizado o governo com essa medida que foi tomada para adiar os pagamentos dos precatórios. Agora, não. O governo tanto está fazendo aumento de receita como está passando para a sociedade que ele vai, sim, se preocupar com a despesa. Isso tem de ficar claro.

Não estou achando maravilhosa a política fiscal, mas o governo tem feito esforços para equacionar o resultado primário

O pagamento dos precatórios já estava já previsto para ser feito em parcelas.

Isso, em 2027.

Não sou advogado do Paulo Guedes, mas o governo resolveu pagar tudo de uma vez por uma opção própria. Ele não precisava ter feito isso. Inclusive o próprio Ciro Gomes, com quem o sr. tem uma ligação política, criticou muito a antecipação desses pagamentos, que os bancos aplaudiram.

Sim, mas, de qualquer forma, não foi um gasto promovido pelo atual governo.

Agora, mesmo descontando os R$ 90 bilhões dos precatórios, ainda sobrariam R$ 140 bilhões de déficit primário em 2023.

Mas o governo está corrigindo isso agora. O governo está está preocupado com a despesa previdenciária, está preocupado com o BPC (Benefício de Prestação continuada), está cortando alguns gastos, dizendo que vai economizar pelo menos R$ 18 bilhões.

Só que o governo está deixando de fora do resultado primário cerca de R$ 40 bilhões de despesas, em bolsas do programa Pé-de-Meia, concessão de auxílio-gás, recursos para combate a queimadas, projeto que autoriza a estatal Emgea a comprar créditos podres dos bancos. O governo está ressuscitando a velha “contabilidade criativa” que levou ao impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Então, fica difícil dizer que o governo está cumprindo a meta. Assim, é fácil, não é, deputado?

Não tem aumento de gasto. Primeiro, a exclusão do auxílio gás só vai acontecer no ano que vem. Em segundo lugar, no caso da despesa relacionada às enchentes do Rio Grande do Sul, que é a maior entre as que vão ficar fora do primário, a Constituição diz que em calamidade pública você pode fazer crédito extraordinário. Isso acontece em qualquer lugar do mundo. Não é contabilidade criativa. Esses R$ 500 milhões para combate aos incêndios florestais não representam um valor relevante. Então, não é assim como você está falando.

Do jeito que o sr. está colocando o quadro, parece que a política fiscal do governo Lula é maravilhosa. É isso mesmo?

Não, não estou achando maravilhosa. Eu estou dizendo que o governo tem feito esforços, na tentativa de equacionar o resultado primário. Acredito que o governo está procurando perseguir isso, mas ainda assim não será suficiente com esses juros estratosféricos para estabilizar a relação dívida/PIB. A política fiscal sozinha – isso eu já disse para o ministro Fernando Haddad – não dá uma segurança de estabilização na relação dívida/PIB.

Em sua visão, então, o governo não precisa cortar gasto nenhum?

Não, não é isso. Como eu acabei de falar, o governo está procurando cortar gasto. Já anunciou onde vai cortar. Ele está revendo os gastos da Previdência. Está revendo os gastos com o BPC. Está trabalhando em cima disso e vai apresentar os resultados em dezembro. Agora, eu faria diferente. Eu cortaria mais. Acredito que a despesa obrigatória tem de ser observada com lupa. Tem de cortar os excessos, aprimorar o controle, porque, se o governo não fizer isso em 2025, ele não conseguirá cumprir o resultado primário.

O sr. se refere ao “pente fino” que será feito para apurar irregularidades nos benefícios sociais?

Sim, sim. Eu não tenho dúvida de que em todos eles têm gente recebendo benefício de maneira inadequada.

Pelo que eu vi outro dia, a previsão oficial de economia com essas medidas, que o sr. falou que seria de R$ 18 bilhões, na verdade era de R$ 15 bilhões, mas o governo já está revendo R$ 1,7 bilhões de cortes, reduzindo o valor total para cerca de R$ 13 bilhões. É curioso que o sr. minimiza os gastos fora da meta, mas maximiza os cortes.

Se eu tirar o Rio Grande do Sul da conta dos gastos que deverão ficar fora do resultado primário, sobraria algo em torno de R$ 5 bilhões, na pior hipótese. É isso que o pessoal chama de “contabilidade criativa”? R$ 5 bilhões? Eu gostaria de ter o mesmo tempo que a gente gasta para discutir esse gasto de R$ 5 bilhões para debater os R$ 900 bilhões de gasto financeiro previstos para 2024.

O mercado estimou um crescimento de 1,3% do PIB neste ano e ele deverá ser de 3%

O TCU soltou um relatório estes dias, aprovado por unanimidade, abordando o alto risco de o governo não cumprir a meta fiscal em 2024 também pelo lado da frustração de receitas. No Orçamento, o governo previu quase R$ 32 bilhões de arrecadação com ações no Carf (tribunal onde são julgados recursos administrativos de débitos dos pagadores de impostos), mas até agora, quase no fim de setembro, entraram apenas R$ 83 milhões no caixa do Tesouro, segundo o TCU. Isso já está na sua conta?

Na estimativa do TCU, o crescimento da receita neste ano é de 8% em termos reais. Em agosto, como eu disse há pouco, o aumento da arrecadação chegou a 12% em relação ao mesmo período do ano passado. Veja quantos bilhões a mais foram acrescentados na receita. Então, depende do que você está analisando. O que é que o TCU vai dizer agora, com a receita crescendo 12%? Se você previu uma elevação da arrecadação de 8%, mas ela está subindo 12%, como está acontecendo, as projeções têm de mudar. E a tendência é de que a arrecadação continue a subir nos próximos meses, porque o mercado estimou um crescimento de 1,3% do PIB neste ano e ele deverá ser de 3%.

Agora, o ministro Fernando Haddad, que foi apelidado de Taxad, pela sua volúpia tributária, vem buscando o equilíbrio fiscal muito em cima do aumento de tributos, mesmo com o País já tendo uma das maiores cargas tributárias, se não a maior, entre os mercados emergentes, e está cortando gastos apenas de forma marginal, até por determinação do Lula. O sr. também acredita que é por aí que deve ser feito o ajuste nas contas públicas?

Essa é uma coisa que tem de ser melhor explicada. Não houve aumento do imposto de renda das pessoas jurídicas. O que houve foi a cobrança de imposto de renda dos fundos exclusivos, que pagavam zero. Alguém tem de dizer isso. Tinha de taxar mesmo os fundos exclusivos, que atendem 2.846 pessoas, com um saldo de R$ 746 bilhões em aplicações. Além disso, houve a cobrança de imposto de renda dos fundos offshore, que também pagavam zero. Muita gente pensa que a cobrança é sobre o estoque, mas é sobre o ganho. Depois, houve também a cobrança de imposto das bets, que faturam R$ 140 bilhões por ano, pagam R$ 36 bilhões aos apostadores e ficavam com R$ 104 bilhões limpos para elas As bets não pagavam nada de imposto no Brasil. Agora, isso é aumento de tributo? Ah, espera aí. Como bom tributarista, eu não posso permitir que isso seja passado como aumento de tributo.

Se dependesse do ministro Fernando Haddad, a gente ainda teria uma taxação adicional sobre as empresas, com a limitação do uso de créditos de PIS (Programa de Integração Social) e Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), para compensar a desoneração da folha de pagamento. Era algo tão despropositado que gerou um movimento contrário dos empresários como há muito não se via no País.

Esse pessoal está há 13,14 anos com incentivo fiscal, desde 2011. De cinco em cinco anos, ele é renovado. E todo mundo acha que estava tudo lindo e agora isso vai continuar por mais dez anos. Aliás, essa medida do PIS/Cofins nem passou no Congresso. Nós estamos discutindo uma coisa hipotética, que não passou pelo Legislativo.

Não passou porque o ministro teve de recuar diante da celeuma que foi gerada.

Exatamente. O Congresso teve a responsabilidade de calibrar isso. Agora, isso aí traz de volta a discussão se nós temos de dar incentivo fiscal a vida inteira. A União dá R$ 540 bilhões de incentivo fiscal por ano. Se a gente tirar os R$ 100 bilhões das microempresas e os R$ 35 bilhões da Zona Franca de Manaus, ainda estamos falando de R$ 400 bilhões. Vamos deixar isso a vida toda? Esse pessoal vai continuar tendo esse privilégio para sempre?

É, mas o sr. acha que é correto tentar mexer nisso na calada da noite, empurrando goela abaixo dos empresários, sem qualquer discussão prévia, como fez o ministro?

Aí, está certo. Isso tem de ser discutido com a população, como eu quero que os R$ 900 bilhões de despesas financeiras também sejam.

Quer dizer, em vez de cortar gastos, o governo vai continuar torrando o dinheiro dos pagadores de impostos e alavancando a arrecadação com aumento de tributos?

Mas não tem aumento de imposto. Acabei de explicar. Você dá a entender que esse aumento de carga tributária está indo para o mais pobre, que o governo está aumentando o imposto na base. Vamos fazer isso com correção, dizer onde está se dando esse aumento do tributo, porque senão a gente passa uma imagem de que é taxa, taxa, taxa.

O deputado federal Mauro Benevides Filho (PDT-CE), ex-conselheiro econômico de Ciro Gomes na campanha eleitoral de 2022, é um dos poucos economistas de esquerda no País que é a favor do controle de gastos do governo e do equilíbrio fiscal. Como secretário da Fazenda do Ceará, cargo que ocupou por 12 anos, inclusive na gestão do ex-governador Camilo Santana, do PT, hoje ministro da Educação, ele ganhou os holofotes por conseguir manter as contas do Estado em ordem e alavancar o investimento público ao mesmo tempo.

Nesta entrevista ao Estadão, Benevides Filho fala sobre a necessidade de o governo Lula manter o rigor fiscal e afirma que, se não houver corte de gastos, não vai dar para cumprir a meta de déficit zero em 2025. Ele diz, porém, que, diante do elevado gasto do governo com o pagamento de juros, calculado em quase R$ 900 bilhões neste ano, não há como estabilizar o crescimento da dívida pública, mesmo com superávit primário. Por isso, defende que haja “maior transparência” em relação à despesa financeira e uma discussão técnica, “sem bravata política”, sobre o estabelecimento de um limite para o gasto com juros.

Benevides Filho fala também a respeito de seu encontro com o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, para debater o assunto, e analisa a “contabilidade criativa” que está sendo ressuscitada pela atual gestão, segundo muitos analistas. Diz, ainda, que a propalada gastança que estaria sendo promovida pelo governo Lula não é confirmada pelos números e faz profissão de fé de que, em 2024, a meta fiscal será cumprida. Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

Como secretário da Fazenda do Ceará, o sr. sempre teve uma preocupação em manter o equilíbrio nas contas públicas. Como o sr. está vendo a política fiscal do governo Lula?

Realmente, eu sempre fui muito rigoroso, sou muito rigoroso em relação ao equilíbrio fiscal. Acredito que nós precisamos ter resultado primário positivo. Eu sou da corrente fiscalista, sou ativista no Congresso Nacional, como deputado da bancada fiscal. No Brasil, sempre houve “n” regras para controlar a despesa primária (que exclui o pagamento de juros da dívida pública): a Lei 4.320 (dispositivo que regula os orçamentos e as contas da União, dos Estados e dos municípios), a regra de ouro (que proíbe o governo brasileiro de fazer dívidas para pagar despesas correntes, como aposentadorias, salários do funcionalismo e outras despesas da máquina administrativa), a Emenda Constitucional 109 (que limitou o gasto com serviços públicos além da inflação por 20 anos), o teto de gastos, o arcabouço fiscal.

Só que nada disso foi suficiente para permitir a estabilização da dívida em relação ao PIB (Produto Interno Bruto). Desde 1999, quando foi instituído o tripé macroeconômico, composto pelo resultado primário, pela meta de inflação e pelo câmbio flutuante, nunca houve um superávit primário que cobrisse os gastos com os juros da dívida. Infelizmente, ninguém no Brasil examina a despesa financeira, que é o que mais importa para o crescimento da dívida pública. Todo mundo só quer saber do resultado primário.

Benevides Filho afirma que a alta taxa real de juros do País não permite uma estabilidade na relação dívida/PIB, mesmo com superávit primário  Foto: Nilton Fukuda/Estadão

O sr. diz que, desde 1999, não ocorreu uma redução da relação dívida/PIB mesmo quando houve superávit primário. E a queda que ocorreu nos governos Lula 1 e 2 e Bolsonaro?

Isso só aconteceu porque eles tiveram receitas não recorrentes. Na gestão do Paulo Guedes, o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) devolveu R$ 300 bilhões ao Tesouro e o TCU (Tribunal de Contas da União) obrigou o governo a usar esse dinheiro para amortizar a dívida pública. Nos governos Lula 1 e 2, houve a receita do pré-sal, de quase R$ 100 bilhões, mais R$ 40 bilhões de Refis (Programa de Recuperação Fiscal) e assim por diante. O modelo brasileiro não permite uma estabilidade na relação dívida/PIB, por causa da taxa real de juros do País. Não faz sentido essa taxa ser tão elevada, em função desse “risco Brasil” que é tão demandado pelo sistema financeiro. E não me venha com essa história de que “ah, isso é política”. Eu estou falando aqui de teoria econômica.

No Brasil, a gente cobra o governo, porque os R$ 500 milhões que serão destinados ao combate das queimadas deverão ficar fora do resultado primário e vão aumentar a dívida pública. Recentemente, numa entrevista ao Estadão, o (economista) Marcos Mendes disse “olha, tem aí três, quatro despesas que estão ficando fora do resultado primário e isso pode ser considerado como ‘contabilidade criativa’”. Mas ninguém fala que esses R$ 500 milhões, mais aqueles R$ 4 bilhões ali e outros R$ 2 bilhões acolá, que também deverão ficar fora do resultado primário, não calçam nem o chinelo dos quase R$ 900 bilhões que nós deveremos pagar de juros neste ano. O que está aumentando a dívida pública não é o déficit primário, mas o que a gente gasta com o pagamento de juros. Este é o ponto.

Agora, independentemente do impacto na dívida pública, os juros guardam uma relação com o resultado primário. Quando o resultado primário é positivo, os juros tendem a ser mais baixos, com um impacto menor na dívida. E, quando há um resultado primário negativo, a taxa tende a ser maior. A gente não tem de levar isso em conta nessa equação?

Veja, não interessa se a dívida pública está aumentando 2% com primário negativo ou se vai aumentar 1% com primário positivo. Ela continua aumentando. Aqui no Brasil, quando eu vou dar minhas palestras nos bancos e entro nessa questão, eles dizem “ah, você não quer pagar a dívida, quer dar um calote”. Aí eu digo para eles: “Vamos pegar, então, o caso dos Estados Unidos. Vocês adoram os Estados Unidos. Pois bem, os Estados Unidos, que são o país mais capitalista do mundo, têm meta financeira”. Lá, todo ano o orçamento coloca um limite na dívida. Quando o gasto chega no limite, para tudo. Não para só o pagamento da dívida, não. Para o pagamento de pessoal, também. Fecha museu, fecha tudo. E veja que os Estados Unidos são o ancoradouro da poupança internacional. O risco não é só interno. A Alemanha também tem um limite para a despesa financeira, que está na Constituição. Cada um tem a sua regra. Agora, aqui no Brasil não tem regra. Por que o Brasil não pode ter uma única meta de cunho financeiro? Essa discussão está interditada aqui. O sistema financeiro não permite que ela exista.

No orçamento da União, quando você quer suplementar uma despesa primária, há uma regra que diz que o governo só pode suplementar por decreto. Ele faz o decreto e publica no Diário Oficial, que ninguém lê. Se o governo quiser fazer uma suplementação maior do que 20%, é obrigado a mandar um PLN (projeto de lei) para o Congresso Nacional tomar conhecimento. No caso do gasto com juros, é diferente. No ano passado, o Orçamento previa um gasto de R$ 386 bilhões com juros da dívida, mas o total chegou a R$ 760 bilhões, quase o dobro. Como é que o governo cobriu essa diferença? Fez um decreto para suplementar esses valores. Você sabe qual é o limite para suplementação de gasto financeiro por decreto no Brasil? Não tem. O céu é o limite.

Não faz sentido o governo federal aumentar o gasto com juros de R$ 400 bilhões para R$ 900 bilhões e isso não reverberar como o resultado primário

O sr. falou que, nos Estados Unidos e na Alemanha, o déficit financeiro, a despesa com juros, está dentro do limite de gastos. Mas tanto nos Estados Unidos como na Alemanha o Banco Central tem liberdade para fixar os juros.

Sim, eles são livres para fixar os juros. Nos Estados Unidos, o Federal Reserve Bank (Fed, o banco central americano) pratica a taxa de juros que quer. Na Alemanha, com o Bundesbank (banco central alemão), é a mesma coisa. Não tem diferença. O limite para o gasto financeiro não tira a liberdade de o Banco Central fixar a taxa de juros.

Em sua avaliação, como deve ser tratada essa questão do déficit financeiro no Brasil?

Eu acredito que o primeiro passo é dar transparência ao gasto financeiro. Esta palavra é muito importante: transparência. Não faz sentido o governo federal aumentar o gasto com juros de R$ 400 bilhões para R$ 900 bilhões e isso não reverberar como ocorre quando o resultado primário fica fora da meta. As pessoas vão dizer “não, mas isso é publicado no Diário Oficial”. Um gasto desse tamanho não pode ficar só nos documentos oficiais. Isso tem de ser reverberado como o acorre com o resultado primário, como esses R$ 40 bilhões que deverão ficar fora da regra fiscal e que há dias vêm pautando o noticiário econômico do País. Como eu disse há pouco, acredito que nós temos de ter um resultado primário positivo, mas isso não é suficiente para estabilizar a relação dívida/PIB, se não tivermos uma regra para controlar a despesa financeira.

O sr. acha, então, que o resultado primário não tem influência no nível de juros, no déficit financeiro? As duas coisas não têm relação nenhuma?

É claro que o resultado primário tem relação com os juros. Só que eu acredito que praticamente não há influência do primário na relação dívida/PIB. A Argentina deu um calote na dívida há seis anos e paga uma taxa de juro real menor do que a nossa. Como é que é isso? O México também, com mil problemas, tem um juro real menor. E o Brasil, que não dá calote, que só deu um calote lá nos anos 1970, sei lá quando, tem a maior taxa de juros real do mundo, tirando a Rússia. Não estou dizendo que o sistema financeiro não tem de cobrar o risco dele. Tem de cobrar. É óbvio que ninguém vai financiar o governo sem receber um prêmio por isso. O que eu estou questionando é o tamanho desse juro real. Com primário positivo ou com primário negativo, o juro real no Brasil continua sendo o maior do mundo. Por isso é que eu digo que tem de haver uma regra para balizar a despesa financeira. Não faz sentido aumentar o gasto com juros de R$ 400 bilhões para R$ 900 bilhões por decreto.

Mais uma vez, deputado, independentemente da discussão sobre o nível dos juros no País, a gente tem de levar em conta que o patamar da taxa é muito influenciado pela política fiscal, pelo resultado primário. Quando não há uma política fiscal equilibrada, fica mais difícil cortar os juros. Todo o peso da estabilização da moeda, da contenção de um eventual impulso inflacionário, fica em cima da política monetária. E hoje o que a gente observa é que, do ponto de vista do resultado primário, há uma atitude relapsa do governo, que acaba contribuindo para manter os juros num patamar mais elevado do que eles poderiam ser se a política fiscal fosse mais equilibrada. Como o sr. analisa essa questão?

Não procede, porque, mesmo com resultado primário positivo, como eu falei, o Brasil sempre teve um crescimento da relação dívida/PIB, salvo nesses dois períodos que eu mencionei. Não por causa do resultado primário, mas pelas receitas extraordinárias obtidas na época. Do ponto de vista da dívida pública, não faz diferença se a taxa de juros vai cair de 10,25% ao ano para 9,75% ao ano, se houver um superávit primário de R$ 10 bilhões, em vez de um déficit. Isso não resolve o problema. O que eu estou questionando é o nível dos juros que a gente pratica. Para mim, essa taxa real de juros que o sistema financeiro demanda está além do risco que o País efetivamente apresenta.

Tive uma conversa de alto nível, de duas horas e meia, com o Campos Neto sobre os juros. Ele viu que eu não estava com bravata

Agora, mesmo considerando isso que o senhor está dizendo, a gente não tem de levar em conta também que, quando não há superávit primário, a tendência é o juro ser mais alto, levando a um crescimento maior da relação dívida/PIB?

O ponto não é esse. O ponto, mais uma vez, é que, independentemente de o resultado primário ser positivo ou negativo, o patamar da taxa de juros real é brutal. Não há razão para isso. A gente precisa discutir abertamente essa questão. É isso que aumentando a dívida pública e não a despesa primária.

Eu entendo o ponto que o senhor está colocando, mas não dá para negar que o grande salto da dívida pública no País se deu logo após a aprovação da Constituição de 1988, em função do aumento das atribuições da União sem a existência de receitas correspondentes, e nos governos Dilma 1 e 2, quando o déficit primário e a “contabilidade criativa” prosperaram. Então, como a gente pode desconsiderar a contribuição do déficit primário para a alta dos juros e o crescimento da dívida pública?

De novo, eu sou favorável ao resultado primário positivo. Não abro mão disso. O que estou querendo dizer é que só isso não é suficiente para estabilizar a relação dívida/PIB, que é o que nós queremos. E que, mesmo com o primário sendo positivo, como eu acho que deve ser, que é algo importante, isso não é suficiente para a gente estabilizar a relação dívida/PIB.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem feito críticas pesadas, com forte viés político, ao presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, por causa dos juros altos. O sr. não teme que as suas colocações sejam vistas como uma “passada de pano” para as bravatas do presidente?

Não, pelo contrário. (Isso) vai ser mantido como está. Você tem a bravata política e tem a prática. Tem a bravata (do presidente), mas como é que está (agindo) o indicado dele?

Eu é que pergunto para o sr.

Está dentro (do sistema).

O que sr. quer dizer com isso? Que, na prática, independentemente das bravatas do Lula, o governo acaba fazendo o jogo do sistema financeiro em relação à taxa de juros?

Lá na Câmara, é isso que os deputados me questionam. Eles me chamam de “professor”, porque lá eu tenho abordado essas questões de forma mais aprofundada, para tentar abrir um pouco a cabeça do pessoal, inclusive de alguns jornalistas que cobrem a gente. Tudo para eles é resultado primário. Se eu falo de resultado financeiro, eles dizem “como assim?”. Quem é o brasileiro que sabe que o Brasil vai gastar neste ano quase R$ 900 bilhões com juros? Ninguém sabe. A gente precisa contar o impacto disso na dívida pública e dar transparência à despesa financeira do governo. Por isso, eu resolvi enfrentar essa questão tecnicamente, dentro da teoria econômica, sem ficar na bravata. Alguns meses atrás, eu até estive com o Roberto Campos Neto, para falar sobre isso.

Como foi esse encontro com o presidente do Banco Central?

Ele é um gentleman. Foi me receber lá embaixo, na portaria. Foi uma conversa de umas duas horas e meia, de alto nível. Ele viu que eu não estava com bravata. Fui com uma orientanda minha do doutorado na UFC (Universidade Federal do Ceará), a Isadora Osterno, que fez uma tese sobre o Banco Central e acabou de ser aprovada em concurso público para lecionar lá, e o professor Flávio Ataliba, que é pós-doutor em Harvard. Nós rodamos tanto o modelo de equilíbrio geral do Banco Central, que é o Samba, como o modelo de curto prazo. Depois de cinco horas para rodar isso no nosso computador da UFC, chegamos à conclusão de que a taxa básica (Selic) deveria ser de 11,25% ao ano, em vez dos 13,75% ao ano praticados na época, e levamos os indicadores para ele.

O que o Roberto Campos achou do levantamento que vocês realizaram?

Quando a gente chegou lá e eu disse o que nós tínhamos rodado, o técnico que estava com ele disse “eu sou matemático, não sou economista, deixa eu chamar aqui o pessoal da área”. Ele chamou três técnicos do Samba, aliás muito competentes, para conversar com a gente. Aí, um deles falou: “Dra. Isadora, no modelo que sra. estimou há vários coeficientes que nós achamos que estão equivocados”. Então, eu disse: “Se o senhor acha que os nossos coeficientes estão equivocados, por que não me dá os seus, para a gente poder rodar os modelos?”. Mas eles não deram, não.

É complicado. Eles não vão compartilhar isso com alguém de fora do Banco Central.

Você veja como as coisas não são tão fáceis.

É difícil ver alguém como o sr. querer levar essa discussão de um ponto de vista técnico. Quando isso acontece, o debate fica mais produtivo. A pessoa pode até discordar das suas ideias e apresentar argumentos em sentido contrário, mas não é aquela coisa de dizer que o presidente do Banco Central é “bolsonarista” por manter os juros altos.

Isso, a pessoa pode até discordar. Sem problema. Eu não quero saber desse negócio de política, de bravata. Eu quero falar de modelagem.

Eu não sei se o Roberto Campos Neto é bolsonarista ou não, mas acredito que, se ele quisesse ter ajudado o Bolsonaro nas eleições de 2022, não tinha deixado a taxa de juros lá em cima, em 13,75% ao ano, certo?

É claro. Eu também não penso por esse viés. Nem sei se ele ora para o Bolsonaro. Ele ora para o mercado financeiro. O viés é outro.

Qual é a gastança? O déficit primário deste ano está dentro da meta prevista no arcabouço fiscal, mesmo que seja na banda inferior

Isso eu também não sei. O sr. é que está dizendo. Agora, é o mercado que compra o papelório do governo para rolar a dívida pública, não é? Então, acredito que o mercado deve ser levado em conta, porque, no dia que em que ele não quiser bancar o financiamento do Tesouro, nós vamos ter um problema sério. O sr. não acha?

Se o Brasil tivesse, como teve no passado, 27% ou 28% da dívida pública indexada ao câmbio, haveria o risco de o investidor não vir mais para o País. Mas hoje a dívida pública brasileira é quase todo em real. Apenas 7% são indexados ao câmbio, o que não é nada. Não tem possibilidade de default. “Ah, mas vai ter inflação depois”. Pode ser. Mas default? O que é isso? Essa possibilidade não existe. O máximo que pode acontecer é o Brasil, num eventual descalabro total, ter de pagar, sei lá, R$ 50 bilhões, R$ 100 bilhões de juros a mais para poder rolar a dívida pública.

Deixando essa questão do default de lado, o sr. concorda que, se o governo não fizesse a gastança que está fazendo, essa despesa de quase R$ 900 bilhões com juros provavelmente seria bem menor?

Qual é a gastança? O déficit primário deste ano está dentro da meta prevista no arcabouço fiscal (déficit de zero a 0,25% do PIB), mesmo que seja na banda inferior, com previsão de um resultado negativo de R$ 28 bilhões. Em agosto, a arrecadação aumentou 12% em termos reais em relação ao mesmo mês do ano passado. Então, a gente tem de fazer uma reflexão de como essa coisa está evoluindo. Não dá para cantar que o déficit primário ficará acima de R$ 30 bilhões. Se ele for de até R$ 30 bilhões, ainda ficará dentro da meta. Essa gastança da qual todo mundo fala tem de ser traduzida em números concretos. O pessoal fala “ah, o teto do gasto foi muito importante” para controlar as despesas públicas. O teto do gasto só teve um efeito: reduziu o investimento. Ele não diminuiu em nada a despesa obrigatória. Este é outro mito. Os gastos obrigatórios até aumentaram de 90% para 92% do total da despesa primária com a adoção do teto dos gastos.

Desculpe, deputado, mas eu tenho esses números de cabeça, porque produzi uma reportagem recentemente sobre isso. Segundo os dados do próprio Tesouro, a despesa primária líquida caiu de forma significativa, de 19,9% do PIB no fim do governo Dilma e de 19,3% do PIB em 2018 para 18% do PIB em 2021 e 2022. Não só por causa da queda dos investimentos do governo, mas também porque não houve aumento salarial do funcionalismo nem aumento real do salário mínimo, das aposentadorias e de outros benefícios sociais. Ao mesmo tempo, o quadro de servidores teve uma redução de 47 mil funcionários, ou seja, de 7,5% do total no fim do governo Temer. Como o sr. pode afirmar que não há gastança no governo Lula?

A despesa primária se estabilizou em 19% do PIB com o teto de gastos e só veio para 18,8% em 2022, porque o governo cortou o investimento. Na média, de 2017 a 2022, a despesa obrigatória ficou em 19,1% do PIB. Então, a despesa obrigatória não caiu e o investimento é que foi penalizado.

Se o PIB cresceu nesse período e não houve aumento real nesses quesitos que eu mencionei, não tem como a despesa ter caído só no investimento. Até porque o investimento do governo federal, sem contar as estatais, representava apenas 0,25% do PIB, enquanto a queda nas despesas foi de 1,3 ponto percentual em relação a 2018.

Eu estou dando um dado. A despesa obrigatória, do total da despesa, aumentou de 90% para 92% do total. Só para a gente enxergar o que aconteceu.

Agora, deputado, só em 2023, de acordo com os dados oficiais, a despesa primária líquida aumentou de 18% para 19,6% do PIB, quase 9% em termos reais num ano só. Isso não é gastança?

Quando é que eu vou caracterizar a gastança? Eu vou caracterizar a gastança quando o governo descumprir as metas já chanceladas pelo mercado, pelo Orçamento e pelo arcabouço fiscal. Você pode dizer “não, mas no fim do ano pode ser que ele não cumpra”. Aí nós vamos discutir o assunto novamente lá no fim do ano. Mas querer imputar a gastança sem antes ela se concretizar não dá.

Só no ano passado, foram R$ 230 bilhões de déficit primário, o equivalente a 2,1% do PIB, o segundo maior déficit da história.

Não, não houve R$230 bilhões de déficit. É preciso levar em conta que houve R$ 92 bilhões de precatórios dentro do resultado primário. Então, não vamos distorcer as coisas. Uma das principais despesas que foram feitas foi o pagamento da dívida dos precatórios que o Paulo Guedes não pagou, sem que o atual governo fosse responsável por ela. O Paulo Guedes fez isso aí e todo mundo achou lindo. Era para o mercado ter penalizado o governo com essa medida que foi tomada para adiar os pagamentos dos precatórios. Agora, não. O governo tanto está fazendo aumento de receita como está passando para a sociedade que ele vai, sim, se preocupar com a despesa. Isso tem de ficar claro.

Não estou achando maravilhosa a política fiscal, mas o governo tem feito esforços para equacionar o resultado primário

O pagamento dos precatórios já estava já previsto para ser feito em parcelas.

Isso, em 2027.

Não sou advogado do Paulo Guedes, mas o governo resolveu pagar tudo de uma vez por uma opção própria. Ele não precisava ter feito isso. Inclusive o próprio Ciro Gomes, com quem o sr. tem uma ligação política, criticou muito a antecipação desses pagamentos, que os bancos aplaudiram.

Sim, mas, de qualquer forma, não foi um gasto promovido pelo atual governo.

Agora, mesmo descontando os R$ 90 bilhões dos precatórios, ainda sobrariam R$ 140 bilhões de déficit primário em 2023.

Mas o governo está corrigindo isso agora. O governo está está preocupado com a despesa previdenciária, está preocupado com o BPC (Benefício de Prestação continuada), está cortando alguns gastos, dizendo que vai economizar pelo menos R$ 18 bilhões.

Só que o governo está deixando de fora do resultado primário cerca de R$ 40 bilhões de despesas, em bolsas do programa Pé-de-Meia, concessão de auxílio-gás, recursos para combate a queimadas, projeto que autoriza a estatal Emgea a comprar créditos podres dos bancos. O governo está ressuscitando a velha “contabilidade criativa” que levou ao impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Então, fica difícil dizer que o governo está cumprindo a meta. Assim, é fácil, não é, deputado?

Não tem aumento de gasto. Primeiro, a exclusão do auxílio gás só vai acontecer no ano que vem. Em segundo lugar, no caso da despesa relacionada às enchentes do Rio Grande do Sul, que é a maior entre as que vão ficar fora do primário, a Constituição diz que em calamidade pública você pode fazer crédito extraordinário. Isso acontece em qualquer lugar do mundo. Não é contabilidade criativa. Esses R$ 500 milhões para combate aos incêndios florestais não representam um valor relevante. Então, não é assim como você está falando.

Do jeito que o sr. está colocando o quadro, parece que a política fiscal do governo Lula é maravilhosa. É isso mesmo?

Não, não estou achando maravilhosa. Eu estou dizendo que o governo tem feito esforços, na tentativa de equacionar o resultado primário. Acredito que o governo está procurando perseguir isso, mas ainda assim não será suficiente com esses juros estratosféricos para estabilizar a relação dívida/PIB. A política fiscal sozinha – isso eu já disse para o ministro Fernando Haddad – não dá uma segurança de estabilização na relação dívida/PIB.

Em sua visão, então, o governo não precisa cortar gasto nenhum?

Não, não é isso. Como eu acabei de falar, o governo está procurando cortar gasto. Já anunciou onde vai cortar. Ele está revendo os gastos da Previdência. Está revendo os gastos com o BPC. Está trabalhando em cima disso e vai apresentar os resultados em dezembro. Agora, eu faria diferente. Eu cortaria mais. Acredito que a despesa obrigatória tem de ser observada com lupa. Tem de cortar os excessos, aprimorar o controle, porque, se o governo não fizer isso em 2025, ele não conseguirá cumprir o resultado primário.

O sr. se refere ao “pente fino” que será feito para apurar irregularidades nos benefícios sociais?

Sim, sim. Eu não tenho dúvida de que em todos eles têm gente recebendo benefício de maneira inadequada.

Pelo que eu vi outro dia, a previsão oficial de economia com essas medidas, que o sr. falou que seria de R$ 18 bilhões, na verdade era de R$ 15 bilhões, mas o governo já está revendo R$ 1,7 bilhões de cortes, reduzindo o valor total para cerca de R$ 13 bilhões. É curioso que o sr. minimiza os gastos fora da meta, mas maximiza os cortes.

Se eu tirar o Rio Grande do Sul da conta dos gastos que deverão ficar fora do resultado primário, sobraria algo em torno de R$ 5 bilhões, na pior hipótese. É isso que o pessoal chama de “contabilidade criativa”? R$ 5 bilhões? Eu gostaria de ter o mesmo tempo que a gente gasta para discutir esse gasto de R$ 5 bilhões para debater os R$ 900 bilhões de gasto financeiro previstos para 2024.

O mercado estimou um crescimento de 1,3% do PIB neste ano e ele deverá ser de 3%

O TCU soltou um relatório estes dias, aprovado por unanimidade, abordando o alto risco de o governo não cumprir a meta fiscal em 2024 também pelo lado da frustração de receitas. No Orçamento, o governo previu quase R$ 32 bilhões de arrecadação com ações no Carf (tribunal onde são julgados recursos administrativos de débitos dos pagadores de impostos), mas até agora, quase no fim de setembro, entraram apenas R$ 83 milhões no caixa do Tesouro, segundo o TCU. Isso já está na sua conta?

Na estimativa do TCU, o crescimento da receita neste ano é de 8% em termos reais. Em agosto, como eu disse há pouco, o aumento da arrecadação chegou a 12% em relação ao mesmo período do ano passado. Veja quantos bilhões a mais foram acrescentados na receita. Então, depende do que você está analisando. O que é que o TCU vai dizer agora, com a receita crescendo 12%? Se você previu uma elevação da arrecadação de 8%, mas ela está subindo 12%, como está acontecendo, as projeções têm de mudar. E a tendência é de que a arrecadação continue a subir nos próximos meses, porque o mercado estimou um crescimento de 1,3% do PIB neste ano e ele deverá ser de 3%.

Agora, o ministro Fernando Haddad, que foi apelidado de Taxad, pela sua volúpia tributária, vem buscando o equilíbrio fiscal muito em cima do aumento de tributos, mesmo com o País já tendo uma das maiores cargas tributárias, se não a maior, entre os mercados emergentes, e está cortando gastos apenas de forma marginal, até por determinação do Lula. O sr. também acredita que é por aí que deve ser feito o ajuste nas contas públicas?

Essa é uma coisa que tem de ser melhor explicada. Não houve aumento do imposto de renda das pessoas jurídicas. O que houve foi a cobrança de imposto de renda dos fundos exclusivos, que pagavam zero. Alguém tem de dizer isso. Tinha de taxar mesmo os fundos exclusivos, que atendem 2.846 pessoas, com um saldo de R$ 746 bilhões em aplicações. Além disso, houve a cobrança de imposto de renda dos fundos offshore, que também pagavam zero. Muita gente pensa que a cobrança é sobre o estoque, mas é sobre o ganho. Depois, houve também a cobrança de imposto das bets, que faturam R$ 140 bilhões por ano, pagam R$ 36 bilhões aos apostadores e ficavam com R$ 104 bilhões limpos para elas As bets não pagavam nada de imposto no Brasil. Agora, isso é aumento de tributo? Ah, espera aí. Como bom tributarista, eu não posso permitir que isso seja passado como aumento de tributo.

Se dependesse do ministro Fernando Haddad, a gente ainda teria uma taxação adicional sobre as empresas, com a limitação do uso de créditos de PIS (Programa de Integração Social) e Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), para compensar a desoneração da folha de pagamento. Era algo tão despropositado que gerou um movimento contrário dos empresários como há muito não se via no País.

Esse pessoal está há 13,14 anos com incentivo fiscal, desde 2011. De cinco em cinco anos, ele é renovado. E todo mundo acha que estava tudo lindo e agora isso vai continuar por mais dez anos. Aliás, essa medida do PIS/Cofins nem passou no Congresso. Nós estamos discutindo uma coisa hipotética, que não passou pelo Legislativo.

Não passou porque o ministro teve de recuar diante da celeuma que foi gerada.

Exatamente. O Congresso teve a responsabilidade de calibrar isso. Agora, isso aí traz de volta a discussão se nós temos de dar incentivo fiscal a vida inteira. A União dá R$ 540 bilhões de incentivo fiscal por ano. Se a gente tirar os R$ 100 bilhões das microempresas e os R$ 35 bilhões da Zona Franca de Manaus, ainda estamos falando de R$ 400 bilhões. Vamos deixar isso a vida toda? Esse pessoal vai continuar tendo esse privilégio para sempre?

É, mas o sr. acha que é correto tentar mexer nisso na calada da noite, empurrando goela abaixo dos empresários, sem qualquer discussão prévia, como fez o ministro?

Aí, está certo. Isso tem de ser discutido com a população, como eu quero que os R$ 900 bilhões de despesas financeiras também sejam.

Quer dizer, em vez de cortar gastos, o governo vai continuar torrando o dinheiro dos pagadores de impostos e alavancando a arrecadação com aumento de tributos?

Mas não tem aumento de imposto. Acabei de explicar. Você dá a entender que esse aumento de carga tributária está indo para o mais pobre, que o governo está aumentando o imposto na base. Vamos fazer isso com correção, dizer onde está se dando esse aumento do tributo, porque senão a gente passa uma imagem de que é taxa, taxa, taxa.

O deputado federal Mauro Benevides Filho (PDT-CE), ex-conselheiro econômico de Ciro Gomes na campanha eleitoral de 2022, é um dos poucos economistas de esquerda no País que é a favor do controle de gastos do governo e do equilíbrio fiscal. Como secretário da Fazenda do Ceará, cargo que ocupou por 12 anos, inclusive na gestão do ex-governador Camilo Santana, do PT, hoje ministro da Educação, ele ganhou os holofotes por conseguir manter as contas do Estado em ordem e alavancar o investimento público ao mesmo tempo.

Nesta entrevista ao Estadão, Benevides Filho fala sobre a necessidade de o governo Lula manter o rigor fiscal e afirma que, se não houver corte de gastos, não vai dar para cumprir a meta de déficit zero em 2025. Ele diz, porém, que, diante do elevado gasto do governo com o pagamento de juros, calculado em quase R$ 900 bilhões neste ano, não há como estabilizar o crescimento da dívida pública, mesmo com superávit primário. Por isso, defende que haja “maior transparência” em relação à despesa financeira e uma discussão técnica, “sem bravata política”, sobre o estabelecimento de um limite para o gasto com juros.

Benevides Filho fala também a respeito de seu encontro com o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, para debater o assunto, e analisa a “contabilidade criativa” que está sendo ressuscitada pela atual gestão, segundo muitos analistas. Diz, ainda, que a propalada gastança que estaria sendo promovida pelo governo Lula não é confirmada pelos números e faz profissão de fé de que, em 2024, a meta fiscal será cumprida. Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

Como secretário da Fazenda do Ceará, o sr. sempre teve uma preocupação em manter o equilíbrio nas contas públicas. Como o sr. está vendo a política fiscal do governo Lula?

Realmente, eu sempre fui muito rigoroso, sou muito rigoroso em relação ao equilíbrio fiscal. Acredito que nós precisamos ter resultado primário positivo. Eu sou da corrente fiscalista, sou ativista no Congresso Nacional, como deputado da bancada fiscal. No Brasil, sempre houve “n” regras para controlar a despesa primária (que exclui o pagamento de juros da dívida pública): a Lei 4.320 (dispositivo que regula os orçamentos e as contas da União, dos Estados e dos municípios), a regra de ouro (que proíbe o governo brasileiro de fazer dívidas para pagar despesas correntes, como aposentadorias, salários do funcionalismo e outras despesas da máquina administrativa), a Emenda Constitucional 109 (que limitou o gasto com serviços públicos além da inflação por 20 anos), o teto de gastos, o arcabouço fiscal.

Só que nada disso foi suficiente para permitir a estabilização da dívida em relação ao PIB (Produto Interno Bruto). Desde 1999, quando foi instituído o tripé macroeconômico, composto pelo resultado primário, pela meta de inflação e pelo câmbio flutuante, nunca houve um superávit primário que cobrisse os gastos com os juros da dívida. Infelizmente, ninguém no Brasil examina a despesa financeira, que é o que mais importa para o crescimento da dívida pública. Todo mundo só quer saber do resultado primário.

Benevides Filho afirma que a alta taxa real de juros do País não permite uma estabilidade na relação dívida/PIB, mesmo com superávit primário  Foto: Nilton Fukuda/Estadão

O sr. diz que, desde 1999, não ocorreu uma redução da relação dívida/PIB mesmo quando houve superávit primário. E a queda que ocorreu nos governos Lula 1 e 2 e Bolsonaro?

Isso só aconteceu porque eles tiveram receitas não recorrentes. Na gestão do Paulo Guedes, o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) devolveu R$ 300 bilhões ao Tesouro e o TCU (Tribunal de Contas da União) obrigou o governo a usar esse dinheiro para amortizar a dívida pública. Nos governos Lula 1 e 2, houve a receita do pré-sal, de quase R$ 100 bilhões, mais R$ 40 bilhões de Refis (Programa de Recuperação Fiscal) e assim por diante. O modelo brasileiro não permite uma estabilidade na relação dívida/PIB, por causa da taxa real de juros do País. Não faz sentido essa taxa ser tão elevada, em função desse “risco Brasil” que é tão demandado pelo sistema financeiro. E não me venha com essa história de que “ah, isso é política”. Eu estou falando aqui de teoria econômica.

No Brasil, a gente cobra o governo, porque os R$ 500 milhões que serão destinados ao combate das queimadas deverão ficar fora do resultado primário e vão aumentar a dívida pública. Recentemente, numa entrevista ao Estadão, o (economista) Marcos Mendes disse “olha, tem aí três, quatro despesas que estão ficando fora do resultado primário e isso pode ser considerado como ‘contabilidade criativa’”. Mas ninguém fala que esses R$ 500 milhões, mais aqueles R$ 4 bilhões ali e outros R$ 2 bilhões acolá, que também deverão ficar fora do resultado primário, não calçam nem o chinelo dos quase R$ 900 bilhões que nós deveremos pagar de juros neste ano. O que está aumentando a dívida pública não é o déficit primário, mas o que a gente gasta com o pagamento de juros. Este é o ponto.

Agora, independentemente do impacto na dívida pública, os juros guardam uma relação com o resultado primário. Quando o resultado primário é positivo, os juros tendem a ser mais baixos, com um impacto menor na dívida. E, quando há um resultado primário negativo, a taxa tende a ser maior. A gente não tem de levar isso em conta nessa equação?

Veja, não interessa se a dívida pública está aumentando 2% com primário negativo ou se vai aumentar 1% com primário positivo. Ela continua aumentando. Aqui no Brasil, quando eu vou dar minhas palestras nos bancos e entro nessa questão, eles dizem “ah, você não quer pagar a dívida, quer dar um calote”. Aí eu digo para eles: “Vamos pegar, então, o caso dos Estados Unidos. Vocês adoram os Estados Unidos. Pois bem, os Estados Unidos, que são o país mais capitalista do mundo, têm meta financeira”. Lá, todo ano o orçamento coloca um limite na dívida. Quando o gasto chega no limite, para tudo. Não para só o pagamento da dívida, não. Para o pagamento de pessoal, também. Fecha museu, fecha tudo. E veja que os Estados Unidos são o ancoradouro da poupança internacional. O risco não é só interno. A Alemanha também tem um limite para a despesa financeira, que está na Constituição. Cada um tem a sua regra. Agora, aqui no Brasil não tem regra. Por que o Brasil não pode ter uma única meta de cunho financeiro? Essa discussão está interditada aqui. O sistema financeiro não permite que ela exista.

No orçamento da União, quando você quer suplementar uma despesa primária, há uma regra que diz que o governo só pode suplementar por decreto. Ele faz o decreto e publica no Diário Oficial, que ninguém lê. Se o governo quiser fazer uma suplementação maior do que 20%, é obrigado a mandar um PLN (projeto de lei) para o Congresso Nacional tomar conhecimento. No caso do gasto com juros, é diferente. No ano passado, o Orçamento previa um gasto de R$ 386 bilhões com juros da dívida, mas o total chegou a R$ 760 bilhões, quase o dobro. Como é que o governo cobriu essa diferença? Fez um decreto para suplementar esses valores. Você sabe qual é o limite para suplementação de gasto financeiro por decreto no Brasil? Não tem. O céu é o limite.

Não faz sentido o governo federal aumentar o gasto com juros de R$ 400 bilhões para R$ 900 bilhões e isso não reverberar como o resultado primário

O sr. falou que, nos Estados Unidos e na Alemanha, o déficit financeiro, a despesa com juros, está dentro do limite de gastos. Mas tanto nos Estados Unidos como na Alemanha o Banco Central tem liberdade para fixar os juros.

Sim, eles são livres para fixar os juros. Nos Estados Unidos, o Federal Reserve Bank (Fed, o banco central americano) pratica a taxa de juros que quer. Na Alemanha, com o Bundesbank (banco central alemão), é a mesma coisa. Não tem diferença. O limite para o gasto financeiro não tira a liberdade de o Banco Central fixar a taxa de juros.

Em sua avaliação, como deve ser tratada essa questão do déficit financeiro no Brasil?

Eu acredito que o primeiro passo é dar transparência ao gasto financeiro. Esta palavra é muito importante: transparência. Não faz sentido o governo federal aumentar o gasto com juros de R$ 400 bilhões para R$ 900 bilhões e isso não reverberar como ocorre quando o resultado primário fica fora da meta. As pessoas vão dizer “não, mas isso é publicado no Diário Oficial”. Um gasto desse tamanho não pode ficar só nos documentos oficiais. Isso tem de ser reverberado como o acorre com o resultado primário, como esses R$ 40 bilhões que deverão ficar fora da regra fiscal e que há dias vêm pautando o noticiário econômico do País. Como eu disse há pouco, acredito que nós temos de ter um resultado primário positivo, mas isso não é suficiente para estabilizar a relação dívida/PIB, se não tivermos uma regra para controlar a despesa financeira.

O sr. acha, então, que o resultado primário não tem influência no nível de juros, no déficit financeiro? As duas coisas não têm relação nenhuma?

É claro que o resultado primário tem relação com os juros. Só que eu acredito que praticamente não há influência do primário na relação dívida/PIB. A Argentina deu um calote na dívida há seis anos e paga uma taxa de juro real menor do que a nossa. Como é que é isso? O México também, com mil problemas, tem um juro real menor. E o Brasil, que não dá calote, que só deu um calote lá nos anos 1970, sei lá quando, tem a maior taxa de juros real do mundo, tirando a Rússia. Não estou dizendo que o sistema financeiro não tem de cobrar o risco dele. Tem de cobrar. É óbvio que ninguém vai financiar o governo sem receber um prêmio por isso. O que eu estou questionando é o tamanho desse juro real. Com primário positivo ou com primário negativo, o juro real no Brasil continua sendo o maior do mundo. Por isso é que eu digo que tem de haver uma regra para balizar a despesa financeira. Não faz sentido aumentar o gasto com juros de R$ 400 bilhões para R$ 900 bilhões por decreto.

Mais uma vez, deputado, independentemente da discussão sobre o nível dos juros no País, a gente tem de levar em conta que o patamar da taxa é muito influenciado pela política fiscal, pelo resultado primário. Quando não há uma política fiscal equilibrada, fica mais difícil cortar os juros. Todo o peso da estabilização da moeda, da contenção de um eventual impulso inflacionário, fica em cima da política monetária. E hoje o que a gente observa é que, do ponto de vista do resultado primário, há uma atitude relapsa do governo, que acaba contribuindo para manter os juros num patamar mais elevado do que eles poderiam ser se a política fiscal fosse mais equilibrada. Como o sr. analisa essa questão?

Não procede, porque, mesmo com resultado primário positivo, como eu falei, o Brasil sempre teve um crescimento da relação dívida/PIB, salvo nesses dois períodos que eu mencionei. Não por causa do resultado primário, mas pelas receitas extraordinárias obtidas na época. Do ponto de vista da dívida pública, não faz diferença se a taxa de juros vai cair de 10,25% ao ano para 9,75% ao ano, se houver um superávit primário de R$ 10 bilhões, em vez de um déficit. Isso não resolve o problema. O que eu estou questionando é o nível dos juros que a gente pratica. Para mim, essa taxa real de juros que o sistema financeiro demanda está além do risco que o País efetivamente apresenta.

Tive uma conversa de alto nível, de duas horas e meia, com o Campos Neto sobre os juros. Ele viu que eu não estava com bravata

Agora, mesmo considerando isso que o senhor está dizendo, a gente não tem de levar em conta também que, quando não há superávit primário, a tendência é o juro ser mais alto, levando a um crescimento maior da relação dívida/PIB?

O ponto não é esse. O ponto, mais uma vez, é que, independentemente de o resultado primário ser positivo ou negativo, o patamar da taxa de juros real é brutal. Não há razão para isso. A gente precisa discutir abertamente essa questão. É isso que aumentando a dívida pública e não a despesa primária.

Eu entendo o ponto que o senhor está colocando, mas não dá para negar que o grande salto da dívida pública no País se deu logo após a aprovação da Constituição de 1988, em função do aumento das atribuições da União sem a existência de receitas correspondentes, e nos governos Dilma 1 e 2, quando o déficit primário e a “contabilidade criativa” prosperaram. Então, como a gente pode desconsiderar a contribuição do déficit primário para a alta dos juros e o crescimento da dívida pública?

De novo, eu sou favorável ao resultado primário positivo. Não abro mão disso. O que estou querendo dizer é que só isso não é suficiente para estabilizar a relação dívida/PIB, que é o que nós queremos. E que, mesmo com o primário sendo positivo, como eu acho que deve ser, que é algo importante, isso não é suficiente para a gente estabilizar a relação dívida/PIB.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem feito críticas pesadas, com forte viés político, ao presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, por causa dos juros altos. O sr. não teme que as suas colocações sejam vistas como uma “passada de pano” para as bravatas do presidente?

Não, pelo contrário. (Isso) vai ser mantido como está. Você tem a bravata política e tem a prática. Tem a bravata (do presidente), mas como é que está (agindo) o indicado dele?

Eu é que pergunto para o sr.

Está dentro (do sistema).

O que sr. quer dizer com isso? Que, na prática, independentemente das bravatas do Lula, o governo acaba fazendo o jogo do sistema financeiro em relação à taxa de juros?

Lá na Câmara, é isso que os deputados me questionam. Eles me chamam de “professor”, porque lá eu tenho abordado essas questões de forma mais aprofundada, para tentar abrir um pouco a cabeça do pessoal, inclusive de alguns jornalistas que cobrem a gente. Tudo para eles é resultado primário. Se eu falo de resultado financeiro, eles dizem “como assim?”. Quem é o brasileiro que sabe que o Brasil vai gastar neste ano quase R$ 900 bilhões com juros? Ninguém sabe. A gente precisa contar o impacto disso na dívida pública e dar transparência à despesa financeira do governo. Por isso, eu resolvi enfrentar essa questão tecnicamente, dentro da teoria econômica, sem ficar na bravata. Alguns meses atrás, eu até estive com o Roberto Campos Neto, para falar sobre isso.

Como foi esse encontro com o presidente do Banco Central?

Ele é um gentleman. Foi me receber lá embaixo, na portaria. Foi uma conversa de umas duas horas e meia, de alto nível. Ele viu que eu não estava com bravata. Fui com uma orientanda minha do doutorado na UFC (Universidade Federal do Ceará), a Isadora Osterno, que fez uma tese sobre o Banco Central e acabou de ser aprovada em concurso público para lecionar lá, e o professor Flávio Ataliba, que é pós-doutor em Harvard. Nós rodamos tanto o modelo de equilíbrio geral do Banco Central, que é o Samba, como o modelo de curto prazo. Depois de cinco horas para rodar isso no nosso computador da UFC, chegamos à conclusão de que a taxa básica (Selic) deveria ser de 11,25% ao ano, em vez dos 13,75% ao ano praticados na época, e levamos os indicadores para ele.

O que o Roberto Campos achou do levantamento que vocês realizaram?

Quando a gente chegou lá e eu disse o que nós tínhamos rodado, o técnico que estava com ele disse “eu sou matemático, não sou economista, deixa eu chamar aqui o pessoal da área”. Ele chamou três técnicos do Samba, aliás muito competentes, para conversar com a gente. Aí, um deles falou: “Dra. Isadora, no modelo que sra. estimou há vários coeficientes que nós achamos que estão equivocados”. Então, eu disse: “Se o senhor acha que os nossos coeficientes estão equivocados, por que não me dá os seus, para a gente poder rodar os modelos?”. Mas eles não deram, não.

É complicado. Eles não vão compartilhar isso com alguém de fora do Banco Central.

Você veja como as coisas não são tão fáceis.

É difícil ver alguém como o sr. querer levar essa discussão de um ponto de vista técnico. Quando isso acontece, o debate fica mais produtivo. A pessoa pode até discordar das suas ideias e apresentar argumentos em sentido contrário, mas não é aquela coisa de dizer que o presidente do Banco Central é “bolsonarista” por manter os juros altos.

Isso, a pessoa pode até discordar. Sem problema. Eu não quero saber desse negócio de política, de bravata. Eu quero falar de modelagem.

Eu não sei se o Roberto Campos Neto é bolsonarista ou não, mas acredito que, se ele quisesse ter ajudado o Bolsonaro nas eleições de 2022, não tinha deixado a taxa de juros lá em cima, em 13,75% ao ano, certo?

É claro. Eu também não penso por esse viés. Nem sei se ele ora para o Bolsonaro. Ele ora para o mercado financeiro. O viés é outro.

Qual é a gastança? O déficit primário deste ano está dentro da meta prevista no arcabouço fiscal, mesmo que seja na banda inferior

Isso eu também não sei. O sr. é que está dizendo. Agora, é o mercado que compra o papelório do governo para rolar a dívida pública, não é? Então, acredito que o mercado deve ser levado em conta, porque, no dia que em que ele não quiser bancar o financiamento do Tesouro, nós vamos ter um problema sério. O sr. não acha?

Se o Brasil tivesse, como teve no passado, 27% ou 28% da dívida pública indexada ao câmbio, haveria o risco de o investidor não vir mais para o País. Mas hoje a dívida pública brasileira é quase todo em real. Apenas 7% são indexados ao câmbio, o que não é nada. Não tem possibilidade de default. “Ah, mas vai ter inflação depois”. Pode ser. Mas default? O que é isso? Essa possibilidade não existe. O máximo que pode acontecer é o Brasil, num eventual descalabro total, ter de pagar, sei lá, R$ 50 bilhões, R$ 100 bilhões de juros a mais para poder rolar a dívida pública.

Deixando essa questão do default de lado, o sr. concorda que, se o governo não fizesse a gastança que está fazendo, essa despesa de quase R$ 900 bilhões com juros provavelmente seria bem menor?

Qual é a gastança? O déficit primário deste ano está dentro da meta prevista no arcabouço fiscal (déficit de zero a 0,25% do PIB), mesmo que seja na banda inferior, com previsão de um resultado negativo de R$ 28 bilhões. Em agosto, a arrecadação aumentou 12% em termos reais em relação ao mesmo mês do ano passado. Então, a gente tem de fazer uma reflexão de como essa coisa está evoluindo. Não dá para cantar que o déficit primário ficará acima de R$ 30 bilhões. Se ele for de até R$ 30 bilhões, ainda ficará dentro da meta. Essa gastança da qual todo mundo fala tem de ser traduzida em números concretos. O pessoal fala “ah, o teto do gasto foi muito importante” para controlar as despesas públicas. O teto do gasto só teve um efeito: reduziu o investimento. Ele não diminuiu em nada a despesa obrigatória. Este é outro mito. Os gastos obrigatórios até aumentaram de 90% para 92% do total da despesa primária com a adoção do teto dos gastos.

Desculpe, deputado, mas eu tenho esses números de cabeça, porque produzi uma reportagem recentemente sobre isso. Segundo os dados do próprio Tesouro, a despesa primária líquida caiu de forma significativa, de 19,9% do PIB no fim do governo Dilma e de 19,3% do PIB em 2018 para 18% do PIB em 2021 e 2022. Não só por causa da queda dos investimentos do governo, mas também porque não houve aumento salarial do funcionalismo nem aumento real do salário mínimo, das aposentadorias e de outros benefícios sociais. Ao mesmo tempo, o quadro de servidores teve uma redução de 47 mil funcionários, ou seja, de 7,5% do total no fim do governo Temer. Como o sr. pode afirmar que não há gastança no governo Lula?

A despesa primária se estabilizou em 19% do PIB com o teto de gastos e só veio para 18,8% em 2022, porque o governo cortou o investimento. Na média, de 2017 a 2022, a despesa obrigatória ficou em 19,1% do PIB. Então, a despesa obrigatória não caiu e o investimento é que foi penalizado.

Se o PIB cresceu nesse período e não houve aumento real nesses quesitos que eu mencionei, não tem como a despesa ter caído só no investimento. Até porque o investimento do governo federal, sem contar as estatais, representava apenas 0,25% do PIB, enquanto a queda nas despesas foi de 1,3 ponto percentual em relação a 2018.

Eu estou dando um dado. A despesa obrigatória, do total da despesa, aumentou de 90% para 92% do total. Só para a gente enxergar o que aconteceu.

Agora, deputado, só em 2023, de acordo com os dados oficiais, a despesa primária líquida aumentou de 18% para 19,6% do PIB, quase 9% em termos reais num ano só. Isso não é gastança?

Quando é que eu vou caracterizar a gastança? Eu vou caracterizar a gastança quando o governo descumprir as metas já chanceladas pelo mercado, pelo Orçamento e pelo arcabouço fiscal. Você pode dizer “não, mas no fim do ano pode ser que ele não cumpra”. Aí nós vamos discutir o assunto novamente lá no fim do ano. Mas querer imputar a gastança sem antes ela se concretizar não dá.

Só no ano passado, foram R$ 230 bilhões de déficit primário, o equivalente a 2,1% do PIB, o segundo maior déficit da história.

Não, não houve R$230 bilhões de déficit. É preciso levar em conta que houve R$ 92 bilhões de precatórios dentro do resultado primário. Então, não vamos distorcer as coisas. Uma das principais despesas que foram feitas foi o pagamento da dívida dos precatórios que o Paulo Guedes não pagou, sem que o atual governo fosse responsável por ela. O Paulo Guedes fez isso aí e todo mundo achou lindo. Era para o mercado ter penalizado o governo com essa medida que foi tomada para adiar os pagamentos dos precatórios. Agora, não. O governo tanto está fazendo aumento de receita como está passando para a sociedade que ele vai, sim, se preocupar com a despesa. Isso tem de ficar claro.

Não estou achando maravilhosa a política fiscal, mas o governo tem feito esforços para equacionar o resultado primário

O pagamento dos precatórios já estava já previsto para ser feito em parcelas.

Isso, em 2027.

Não sou advogado do Paulo Guedes, mas o governo resolveu pagar tudo de uma vez por uma opção própria. Ele não precisava ter feito isso. Inclusive o próprio Ciro Gomes, com quem o sr. tem uma ligação política, criticou muito a antecipação desses pagamentos, que os bancos aplaudiram.

Sim, mas, de qualquer forma, não foi um gasto promovido pelo atual governo.

Agora, mesmo descontando os R$ 90 bilhões dos precatórios, ainda sobrariam R$ 140 bilhões de déficit primário em 2023.

Mas o governo está corrigindo isso agora. O governo está está preocupado com a despesa previdenciária, está preocupado com o BPC (Benefício de Prestação continuada), está cortando alguns gastos, dizendo que vai economizar pelo menos R$ 18 bilhões.

Só que o governo está deixando de fora do resultado primário cerca de R$ 40 bilhões de despesas, em bolsas do programa Pé-de-Meia, concessão de auxílio-gás, recursos para combate a queimadas, projeto que autoriza a estatal Emgea a comprar créditos podres dos bancos. O governo está ressuscitando a velha “contabilidade criativa” que levou ao impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Então, fica difícil dizer que o governo está cumprindo a meta. Assim, é fácil, não é, deputado?

Não tem aumento de gasto. Primeiro, a exclusão do auxílio gás só vai acontecer no ano que vem. Em segundo lugar, no caso da despesa relacionada às enchentes do Rio Grande do Sul, que é a maior entre as que vão ficar fora do primário, a Constituição diz que em calamidade pública você pode fazer crédito extraordinário. Isso acontece em qualquer lugar do mundo. Não é contabilidade criativa. Esses R$ 500 milhões para combate aos incêndios florestais não representam um valor relevante. Então, não é assim como você está falando.

Do jeito que o sr. está colocando o quadro, parece que a política fiscal do governo Lula é maravilhosa. É isso mesmo?

Não, não estou achando maravilhosa. Eu estou dizendo que o governo tem feito esforços, na tentativa de equacionar o resultado primário. Acredito que o governo está procurando perseguir isso, mas ainda assim não será suficiente com esses juros estratosféricos para estabilizar a relação dívida/PIB. A política fiscal sozinha – isso eu já disse para o ministro Fernando Haddad – não dá uma segurança de estabilização na relação dívida/PIB.

Em sua visão, então, o governo não precisa cortar gasto nenhum?

Não, não é isso. Como eu acabei de falar, o governo está procurando cortar gasto. Já anunciou onde vai cortar. Ele está revendo os gastos da Previdência. Está revendo os gastos com o BPC. Está trabalhando em cima disso e vai apresentar os resultados em dezembro. Agora, eu faria diferente. Eu cortaria mais. Acredito que a despesa obrigatória tem de ser observada com lupa. Tem de cortar os excessos, aprimorar o controle, porque, se o governo não fizer isso em 2025, ele não conseguirá cumprir o resultado primário.

O sr. se refere ao “pente fino” que será feito para apurar irregularidades nos benefícios sociais?

Sim, sim. Eu não tenho dúvida de que em todos eles têm gente recebendo benefício de maneira inadequada.

Pelo que eu vi outro dia, a previsão oficial de economia com essas medidas, que o sr. falou que seria de R$ 18 bilhões, na verdade era de R$ 15 bilhões, mas o governo já está revendo R$ 1,7 bilhões de cortes, reduzindo o valor total para cerca de R$ 13 bilhões. É curioso que o sr. minimiza os gastos fora da meta, mas maximiza os cortes.

Se eu tirar o Rio Grande do Sul da conta dos gastos que deverão ficar fora do resultado primário, sobraria algo em torno de R$ 5 bilhões, na pior hipótese. É isso que o pessoal chama de “contabilidade criativa”? R$ 5 bilhões? Eu gostaria de ter o mesmo tempo que a gente gasta para discutir esse gasto de R$ 5 bilhões para debater os R$ 900 bilhões de gasto financeiro previstos para 2024.

O mercado estimou um crescimento de 1,3% do PIB neste ano e ele deverá ser de 3%

O TCU soltou um relatório estes dias, aprovado por unanimidade, abordando o alto risco de o governo não cumprir a meta fiscal em 2024 também pelo lado da frustração de receitas. No Orçamento, o governo previu quase R$ 32 bilhões de arrecadação com ações no Carf (tribunal onde são julgados recursos administrativos de débitos dos pagadores de impostos), mas até agora, quase no fim de setembro, entraram apenas R$ 83 milhões no caixa do Tesouro, segundo o TCU. Isso já está na sua conta?

Na estimativa do TCU, o crescimento da receita neste ano é de 8% em termos reais. Em agosto, como eu disse há pouco, o aumento da arrecadação chegou a 12% em relação ao mesmo período do ano passado. Veja quantos bilhões a mais foram acrescentados na receita. Então, depende do que você está analisando. O que é que o TCU vai dizer agora, com a receita crescendo 12%? Se você previu uma elevação da arrecadação de 8%, mas ela está subindo 12%, como está acontecendo, as projeções têm de mudar. E a tendência é de que a arrecadação continue a subir nos próximos meses, porque o mercado estimou um crescimento de 1,3% do PIB neste ano e ele deverá ser de 3%.

Agora, o ministro Fernando Haddad, que foi apelidado de Taxad, pela sua volúpia tributária, vem buscando o equilíbrio fiscal muito em cima do aumento de tributos, mesmo com o País já tendo uma das maiores cargas tributárias, se não a maior, entre os mercados emergentes, e está cortando gastos apenas de forma marginal, até por determinação do Lula. O sr. também acredita que é por aí que deve ser feito o ajuste nas contas públicas?

Essa é uma coisa que tem de ser melhor explicada. Não houve aumento do imposto de renda das pessoas jurídicas. O que houve foi a cobrança de imposto de renda dos fundos exclusivos, que pagavam zero. Alguém tem de dizer isso. Tinha de taxar mesmo os fundos exclusivos, que atendem 2.846 pessoas, com um saldo de R$ 746 bilhões em aplicações. Além disso, houve a cobrança de imposto de renda dos fundos offshore, que também pagavam zero. Muita gente pensa que a cobrança é sobre o estoque, mas é sobre o ganho. Depois, houve também a cobrança de imposto das bets, que faturam R$ 140 bilhões por ano, pagam R$ 36 bilhões aos apostadores e ficavam com R$ 104 bilhões limpos para elas As bets não pagavam nada de imposto no Brasil. Agora, isso é aumento de tributo? Ah, espera aí. Como bom tributarista, eu não posso permitir que isso seja passado como aumento de tributo.

Se dependesse do ministro Fernando Haddad, a gente ainda teria uma taxação adicional sobre as empresas, com a limitação do uso de créditos de PIS (Programa de Integração Social) e Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), para compensar a desoneração da folha de pagamento. Era algo tão despropositado que gerou um movimento contrário dos empresários como há muito não se via no País.

Esse pessoal está há 13,14 anos com incentivo fiscal, desde 2011. De cinco em cinco anos, ele é renovado. E todo mundo acha que estava tudo lindo e agora isso vai continuar por mais dez anos. Aliás, essa medida do PIS/Cofins nem passou no Congresso. Nós estamos discutindo uma coisa hipotética, que não passou pelo Legislativo.

Não passou porque o ministro teve de recuar diante da celeuma que foi gerada.

Exatamente. O Congresso teve a responsabilidade de calibrar isso. Agora, isso aí traz de volta a discussão se nós temos de dar incentivo fiscal a vida inteira. A União dá R$ 540 bilhões de incentivo fiscal por ano. Se a gente tirar os R$ 100 bilhões das microempresas e os R$ 35 bilhões da Zona Franca de Manaus, ainda estamos falando de R$ 400 bilhões. Vamos deixar isso a vida toda? Esse pessoal vai continuar tendo esse privilégio para sempre?

É, mas o sr. acha que é correto tentar mexer nisso na calada da noite, empurrando goela abaixo dos empresários, sem qualquer discussão prévia, como fez o ministro?

Aí, está certo. Isso tem de ser discutido com a população, como eu quero que os R$ 900 bilhões de despesas financeiras também sejam.

Quer dizer, em vez de cortar gastos, o governo vai continuar torrando o dinheiro dos pagadores de impostos e alavancando a arrecadação com aumento de tributos?

Mas não tem aumento de imposto. Acabei de explicar. Você dá a entender que esse aumento de carga tributária está indo para o mais pobre, que o governo está aumentando o imposto na base. Vamos fazer isso com correção, dizer onde está se dando esse aumento do tributo, porque senão a gente passa uma imagem de que é taxa, taxa, taxa.

O deputado federal Mauro Benevides Filho (PDT-CE), ex-conselheiro econômico de Ciro Gomes na campanha eleitoral de 2022, é um dos poucos economistas de esquerda no País que é a favor do controle de gastos do governo e do equilíbrio fiscal. Como secretário da Fazenda do Ceará, cargo que ocupou por 12 anos, inclusive na gestão do ex-governador Camilo Santana, do PT, hoje ministro da Educação, ele ganhou os holofotes por conseguir manter as contas do Estado em ordem e alavancar o investimento público ao mesmo tempo.

Nesta entrevista ao Estadão, Benevides Filho fala sobre a necessidade de o governo Lula manter o rigor fiscal e afirma que, se não houver corte de gastos, não vai dar para cumprir a meta de déficit zero em 2025. Ele diz, porém, que, diante do elevado gasto do governo com o pagamento de juros, calculado em quase R$ 900 bilhões neste ano, não há como estabilizar o crescimento da dívida pública, mesmo com superávit primário. Por isso, defende que haja “maior transparência” em relação à despesa financeira e uma discussão técnica, “sem bravata política”, sobre o estabelecimento de um limite para o gasto com juros.

Benevides Filho fala também a respeito de seu encontro com o presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, para debater o assunto, e analisa a “contabilidade criativa” que está sendo ressuscitada pela atual gestão, segundo muitos analistas. Diz, ainda, que a propalada gastança que estaria sendo promovida pelo governo Lula não é confirmada pelos números e faz profissão de fé de que, em 2024, a meta fiscal será cumprida. Confira a seguir os principais trechos da entrevista.

Como secretário da Fazenda do Ceará, o sr. sempre teve uma preocupação em manter o equilíbrio nas contas públicas. Como o sr. está vendo a política fiscal do governo Lula?

Realmente, eu sempre fui muito rigoroso, sou muito rigoroso em relação ao equilíbrio fiscal. Acredito que nós precisamos ter resultado primário positivo. Eu sou da corrente fiscalista, sou ativista no Congresso Nacional, como deputado da bancada fiscal. No Brasil, sempre houve “n” regras para controlar a despesa primária (que exclui o pagamento de juros da dívida pública): a Lei 4.320 (dispositivo que regula os orçamentos e as contas da União, dos Estados e dos municípios), a regra de ouro (que proíbe o governo brasileiro de fazer dívidas para pagar despesas correntes, como aposentadorias, salários do funcionalismo e outras despesas da máquina administrativa), a Emenda Constitucional 109 (que limitou o gasto com serviços públicos além da inflação por 20 anos), o teto de gastos, o arcabouço fiscal.

Só que nada disso foi suficiente para permitir a estabilização da dívida em relação ao PIB (Produto Interno Bruto). Desde 1999, quando foi instituído o tripé macroeconômico, composto pelo resultado primário, pela meta de inflação e pelo câmbio flutuante, nunca houve um superávit primário que cobrisse os gastos com os juros da dívida. Infelizmente, ninguém no Brasil examina a despesa financeira, que é o que mais importa para o crescimento da dívida pública. Todo mundo só quer saber do resultado primário.

Benevides Filho afirma que a alta taxa real de juros do País não permite uma estabilidade na relação dívida/PIB, mesmo com superávit primário  Foto: Nilton Fukuda/Estadão

O sr. diz que, desde 1999, não ocorreu uma redução da relação dívida/PIB mesmo quando houve superávit primário. E a queda que ocorreu nos governos Lula 1 e 2 e Bolsonaro?

Isso só aconteceu porque eles tiveram receitas não recorrentes. Na gestão do Paulo Guedes, o BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social) devolveu R$ 300 bilhões ao Tesouro e o TCU (Tribunal de Contas da União) obrigou o governo a usar esse dinheiro para amortizar a dívida pública. Nos governos Lula 1 e 2, houve a receita do pré-sal, de quase R$ 100 bilhões, mais R$ 40 bilhões de Refis (Programa de Recuperação Fiscal) e assim por diante. O modelo brasileiro não permite uma estabilidade na relação dívida/PIB, por causa da taxa real de juros do País. Não faz sentido essa taxa ser tão elevada, em função desse “risco Brasil” que é tão demandado pelo sistema financeiro. E não me venha com essa história de que “ah, isso é política”. Eu estou falando aqui de teoria econômica.

No Brasil, a gente cobra o governo, porque os R$ 500 milhões que serão destinados ao combate das queimadas deverão ficar fora do resultado primário e vão aumentar a dívida pública. Recentemente, numa entrevista ao Estadão, o (economista) Marcos Mendes disse “olha, tem aí três, quatro despesas que estão ficando fora do resultado primário e isso pode ser considerado como ‘contabilidade criativa’”. Mas ninguém fala que esses R$ 500 milhões, mais aqueles R$ 4 bilhões ali e outros R$ 2 bilhões acolá, que também deverão ficar fora do resultado primário, não calçam nem o chinelo dos quase R$ 900 bilhões que nós deveremos pagar de juros neste ano. O que está aumentando a dívida pública não é o déficit primário, mas o que a gente gasta com o pagamento de juros. Este é o ponto.

Agora, independentemente do impacto na dívida pública, os juros guardam uma relação com o resultado primário. Quando o resultado primário é positivo, os juros tendem a ser mais baixos, com um impacto menor na dívida. E, quando há um resultado primário negativo, a taxa tende a ser maior. A gente não tem de levar isso em conta nessa equação?

Veja, não interessa se a dívida pública está aumentando 2% com primário negativo ou se vai aumentar 1% com primário positivo. Ela continua aumentando. Aqui no Brasil, quando eu vou dar minhas palestras nos bancos e entro nessa questão, eles dizem “ah, você não quer pagar a dívida, quer dar um calote”. Aí eu digo para eles: “Vamos pegar, então, o caso dos Estados Unidos. Vocês adoram os Estados Unidos. Pois bem, os Estados Unidos, que são o país mais capitalista do mundo, têm meta financeira”. Lá, todo ano o orçamento coloca um limite na dívida. Quando o gasto chega no limite, para tudo. Não para só o pagamento da dívida, não. Para o pagamento de pessoal, também. Fecha museu, fecha tudo. E veja que os Estados Unidos são o ancoradouro da poupança internacional. O risco não é só interno. A Alemanha também tem um limite para a despesa financeira, que está na Constituição. Cada um tem a sua regra. Agora, aqui no Brasil não tem regra. Por que o Brasil não pode ter uma única meta de cunho financeiro? Essa discussão está interditada aqui. O sistema financeiro não permite que ela exista.

No orçamento da União, quando você quer suplementar uma despesa primária, há uma regra que diz que o governo só pode suplementar por decreto. Ele faz o decreto e publica no Diário Oficial, que ninguém lê. Se o governo quiser fazer uma suplementação maior do que 20%, é obrigado a mandar um PLN (projeto de lei) para o Congresso Nacional tomar conhecimento. No caso do gasto com juros, é diferente. No ano passado, o Orçamento previa um gasto de R$ 386 bilhões com juros da dívida, mas o total chegou a R$ 760 bilhões, quase o dobro. Como é que o governo cobriu essa diferença? Fez um decreto para suplementar esses valores. Você sabe qual é o limite para suplementação de gasto financeiro por decreto no Brasil? Não tem. O céu é o limite.

Não faz sentido o governo federal aumentar o gasto com juros de R$ 400 bilhões para R$ 900 bilhões e isso não reverberar como o resultado primário

O sr. falou que, nos Estados Unidos e na Alemanha, o déficit financeiro, a despesa com juros, está dentro do limite de gastos. Mas tanto nos Estados Unidos como na Alemanha o Banco Central tem liberdade para fixar os juros.

Sim, eles são livres para fixar os juros. Nos Estados Unidos, o Federal Reserve Bank (Fed, o banco central americano) pratica a taxa de juros que quer. Na Alemanha, com o Bundesbank (banco central alemão), é a mesma coisa. Não tem diferença. O limite para o gasto financeiro não tira a liberdade de o Banco Central fixar a taxa de juros.

Em sua avaliação, como deve ser tratada essa questão do déficit financeiro no Brasil?

Eu acredito que o primeiro passo é dar transparência ao gasto financeiro. Esta palavra é muito importante: transparência. Não faz sentido o governo federal aumentar o gasto com juros de R$ 400 bilhões para R$ 900 bilhões e isso não reverberar como ocorre quando o resultado primário fica fora da meta. As pessoas vão dizer “não, mas isso é publicado no Diário Oficial”. Um gasto desse tamanho não pode ficar só nos documentos oficiais. Isso tem de ser reverberado como o acorre com o resultado primário, como esses R$ 40 bilhões que deverão ficar fora da regra fiscal e que há dias vêm pautando o noticiário econômico do País. Como eu disse há pouco, acredito que nós temos de ter um resultado primário positivo, mas isso não é suficiente para estabilizar a relação dívida/PIB, se não tivermos uma regra para controlar a despesa financeira.

O sr. acha, então, que o resultado primário não tem influência no nível de juros, no déficit financeiro? As duas coisas não têm relação nenhuma?

É claro que o resultado primário tem relação com os juros. Só que eu acredito que praticamente não há influência do primário na relação dívida/PIB. A Argentina deu um calote na dívida há seis anos e paga uma taxa de juro real menor do que a nossa. Como é que é isso? O México também, com mil problemas, tem um juro real menor. E o Brasil, que não dá calote, que só deu um calote lá nos anos 1970, sei lá quando, tem a maior taxa de juros real do mundo, tirando a Rússia. Não estou dizendo que o sistema financeiro não tem de cobrar o risco dele. Tem de cobrar. É óbvio que ninguém vai financiar o governo sem receber um prêmio por isso. O que eu estou questionando é o tamanho desse juro real. Com primário positivo ou com primário negativo, o juro real no Brasil continua sendo o maior do mundo. Por isso é que eu digo que tem de haver uma regra para balizar a despesa financeira. Não faz sentido aumentar o gasto com juros de R$ 400 bilhões para R$ 900 bilhões por decreto.

Mais uma vez, deputado, independentemente da discussão sobre o nível dos juros no País, a gente tem de levar em conta que o patamar da taxa é muito influenciado pela política fiscal, pelo resultado primário. Quando não há uma política fiscal equilibrada, fica mais difícil cortar os juros. Todo o peso da estabilização da moeda, da contenção de um eventual impulso inflacionário, fica em cima da política monetária. E hoje o que a gente observa é que, do ponto de vista do resultado primário, há uma atitude relapsa do governo, que acaba contribuindo para manter os juros num patamar mais elevado do que eles poderiam ser se a política fiscal fosse mais equilibrada. Como o sr. analisa essa questão?

Não procede, porque, mesmo com resultado primário positivo, como eu falei, o Brasil sempre teve um crescimento da relação dívida/PIB, salvo nesses dois períodos que eu mencionei. Não por causa do resultado primário, mas pelas receitas extraordinárias obtidas na época. Do ponto de vista da dívida pública, não faz diferença se a taxa de juros vai cair de 10,25% ao ano para 9,75% ao ano, se houver um superávit primário de R$ 10 bilhões, em vez de um déficit. Isso não resolve o problema. O que eu estou questionando é o nível dos juros que a gente pratica. Para mim, essa taxa real de juros que o sistema financeiro demanda está além do risco que o País efetivamente apresenta.

Tive uma conversa de alto nível, de duas horas e meia, com o Campos Neto sobre os juros. Ele viu que eu não estava com bravata

Agora, mesmo considerando isso que o senhor está dizendo, a gente não tem de levar em conta também que, quando não há superávit primário, a tendência é o juro ser mais alto, levando a um crescimento maior da relação dívida/PIB?

O ponto não é esse. O ponto, mais uma vez, é que, independentemente de o resultado primário ser positivo ou negativo, o patamar da taxa de juros real é brutal. Não há razão para isso. A gente precisa discutir abertamente essa questão. É isso que aumentando a dívida pública e não a despesa primária.

Eu entendo o ponto que o senhor está colocando, mas não dá para negar que o grande salto da dívida pública no País se deu logo após a aprovação da Constituição de 1988, em função do aumento das atribuições da União sem a existência de receitas correspondentes, e nos governos Dilma 1 e 2, quando o déficit primário e a “contabilidade criativa” prosperaram. Então, como a gente pode desconsiderar a contribuição do déficit primário para a alta dos juros e o crescimento da dívida pública?

De novo, eu sou favorável ao resultado primário positivo. Não abro mão disso. O que estou querendo dizer é que só isso não é suficiente para estabilizar a relação dívida/PIB, que é o que nós queremos. E que, mesmo com o primário sendo positivo, como eu acho que deve ser, que é algo importante, isso não é suficiente para a gente estabilizar a relação dívida/PIB.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva tem feito críticas pesadas, com forte viés político, ao presidente do Banco Central, Roberto Campos Neto, por causa dos juros altos. O sr. não teme que as suas colocações sejam vistas como uma “passada de pano” para as bravatas do presidente?

Não, pelo contrário. (Isso) vai ser mantido como está. Você tem a bravata política e tem a prática. Tem a bravata (do presidente), mas como é que está (agindo) o indicado dele?

Eu é que pergunto para o sr.

Está dentro (do sistema).

O que sr. quer dizer com isso? Que, na prática, independentemente das bravatas do Lula, o governo acaba fazendo o jogo do sistema financeiro em relação à taxa de juros?

Lá na Câmara, é isso que os deputados me questionam. Eles me chamam de “professor”, porque lá eu tenho abordado essas questões de forma mais aprofundada, para tentar abrir um pouco a cabeça do pessoal, inclusive de alguns jornalistas que cobrem a gente. Tudo para eles é resultado primário. Se eu falo de resultado financeiro, eles dizem “como assim?”. Quem é o brasileiro que sabe que o Brasil vai gastar neste ano quase R$ 900 bilhões com juros? Ninguém sabe. A gente precisa contar o impacto disso na dívida pública e dar transparência à despesa financeira do governo. Por isso, eu resolvi enfrentar essa questão tecnicamente, dentro da teoria econômica, sem ficar na bravata. Alguns meses atrás, eu até estive com o Roberto Campos Neto, para falar sobre isso.

Como foi esse encontro com o presidente do Banco Central?

Ele é um gentleman. Foi me receber lá embaixo, na portaria. Foi uma conversa de umas duas horas e meia, de alto nível. Ele viu que eu não estava com bravata. Fui com uma orientanda minha do doutorado na UFC (Universidade Federal do Ceará), a Isadora Osterno, que fez uma tese sobre o Banco Central e acabou de ser aprovada em concurso público para lecionar lá, e o professor Flávio Ataliba, que é pós-doutor em Harvard. Nós rodamos tanto o modelo de equilíbrio geral do Banco Central, que é o Samba, como o modelo de curto prazo. Depois de cinco horas para rodar isso no nosso computador da UFC, chegamos à conclusão de que a taxa básica (Selic) deveria ser de 11,25% ao ano, em vez dos 13,75% ao ano praticados na época, e levamos os indicadores para ele.

O que o Roberto Campos achou do levantamento que vocês realizaram?

Quando a gente chegou lá e eu disse o que nós tínhamos rodado, o técnico que estava com ele disse “eu sou matemático, não sou economista, deixa eu chamar aqui o pessoal da área”. Ele chamou três técnicos do Samba, aliás muito competentes, para conversar com a gente. Aí, um deles falou: “Dra. Isadora, no modelo que sra. estimou há vários coeficientes que nós achamos que estão equivocados”. Então, eu disse: “Se o senhor acha que os nossos coeficientes estão equivocados, por que não me dá os seus, para a gente poder rodar os modelos?”. Mas eles não deram, não.

É complicado. Eles não vão compartilhar isso com alguém de fora do Banco Central.

Você veja como as coisas não são tão fáceis.

É difícil ver alguém como o sr. querer levar essa discussão de um ponto de vista técnico. Quando isso acontece, o debate fica mais produtivo. A pessoa pode até discordar das suas ideias e apresentar argumentos em sentido contrário, mas não é aquela coisa de dizer que o presidente do Banco Central é “bolsonarista” por manter os juros altos.

Isso, a pessoa pode até discordar. Sem problema. Eu não quero saber desse negócio de política, de bravata. Eu quero falar de modelagem.

Eu não sei se o Roberto Campos Neto é bolsonarista ou não, mas acredito que, se ele quisesse ter ajudado o Bolsonaro nas eleições de 2022, não tinha deixado a taxa de juros lá em cima, em 13,75% ao ano, certo?

É claro. Eu também não penso por esse viés. Nem sei se ele ora para o Bolsonaro. Ele ora para o mercado financeiro. O viés é outro.

Qual é a gastança? O déficit primário deste ano está dentro da meta prevista no arcabouço fiscal, mesmo que seja na banda inferior

Isso eu também não sei. O sr. é que está dizendo. Agora, é o mercado que compra o papelório do governo para rolar a dívida pública, não é? Então, acredito que o mercado deve ser levado em conta, porque, no dia que em que ele não quiser bancar o financiamento do Tesouro, nós vamos ter um problema sério. O sr. não acha?

Se o Brasil tivesse, como teve no passado, 27% ou 28% da dívida pública indexada ao câmbio, haveria o risco de o investidor não vir mais para o País. Mas hoje a dívida pública brasileira é quase todo em real. Apenas 7% são indexados ao câmbio, o que não é nada. Não tem possibilidade de default. “Ah, mas vai ter inflação depois”. Pode ser. Mas default? O que é isso? Essa possibilidade não existe. O máximo que pode acontecer é o Brasil, num eventual descalabro total, ter de pagar, sei lá, R$ 50 bilhões, R$ 100 bilhões de juros a mais para poder rolar a dívida pública.

Deixando essa questão do default de lado, o sr. concorda que, se o governo não fizesse a gastança que está fazendo, essa despesa de quase R$ 900 bilhões com juros provavelmente seria bem menor?

Qual é a gastança? O déficit primário deste ano está dentro da meta prevista no arcabouço fiscal (déficit de zero a 0,25% do PIB), mesmo que seja na banda inferior, com previsão de um resultado negativo de R$ 28 bilhões. Em agosto, a arrecadação aumentou 12% em termos reais em relação ao mesmo mês do ano passado. Então, a gente tem de fazer uma reflexão de como essa coisa está evoluindo. Não dá para cantar que o déficit primário ficará acima de R$ 30 bilhões. Se ele for de até R$ 30 bilhões, ainda ficará dentro da meta. Essa gastança da qual todo mundo fala tem de ser traduzida em números concretos. O pessoal fala “ah, o teto do gasto foi muito importante” para controlar as despesas públicas. O teto do gasto só teve um efeito: reduziu o investimento. Ele não diminuiu em nada a despesa obrigatória. Este é outro mito. Os gastos obrigatórios até aumentaram de 90% para 92% do total da despesa primária com a adoção do teto dos gastos.

Desculpe, deputado, mas eu tenho esses números de cabeça, porque produzi uma reportagem recentemente sobre isso. Segundo os dados do próprio Tesouro, a despesa primária líquida caiu de forma significativa, de 19,9% do PIB no fim do governo Dilma e de 19,3% do PIB em 2018 para 18% do PIB em 2021 e 2022. Não só por causa da queda dos investimentos do governo, mas também porque não houve aumento salarial do funcionalismo nem aumento real do salário mínimo, das aposentadorias e de outros benefícios sociais. Ao mesmo tempo, o quadro de servidores teve uma redução de 47 mil funcionários, ou seja, de 7,5% do total no fim do governo Temer. Como o sr. pode afirmar que não há gastança no governo Lula?

A despesa primária se estabilizou em 19% do PIB com o teto de gastos e só veio para 18,8% em 2022, porque o governo cortou o investimento. Na média, de 2017 a 2022, a despesa obrigatória ficou em 19,1% do PIB. Então, a despesa obrigatória não caiu e o investimento é que foi penalizado.

Se o PIB cresceu nesse período e não houve aumento real nesses quesitos que eu mencionei, não tem como a despesa ter caído só no investimento. Até porque o investimento do governo federal, sem contar as estatais, representava apenas 0,25% do PIB, enquanto a queda nas despesas foi de 1,3 ponto percentual em relação a 2018.

Eu estou dando um dado. A despesa obrigatória, do total da despesa, aumentou de 90% para 92% do total. Só para a gente enxergar o que aconteceu.

Agora, deputado, só em 2023, de acordo com os dados oficiais, a despesa primária líquida aumentou de 18% para 19,6% do PIB, quase 9% em termos reais num ano só. Isso não é gastança?

Quando é que eu vou caracterizar a gastança? Eu vou caracterizar a gastança quando o governo descumprir as metas já chanceladas pelo mercado, pelo Orçamento e pelo arcabouço fiscal. Você pode dizer “não, mas no fim do ano pode ser que ele não cumpra”. Aí nós vamos discutir o assunto novamente lá no fim do ano. Mas querer imputar a gastança sem antes ela se concretizar não dá.

Só no ano passado, foram R$ 230 bilhões de déficit primário, o equivalente a 2,1% do PIB, o segundo maior déficit da história.

Não, não houve R$230 bilhões de déficit. É preciso levar em conta que houve R$ 92 bilhões de precatórios dentro do resultado primário. Então, não vamos distorcer as coisas. Uma das principais despesas que foram feitas foi o pagamento da dívida dos precatórios que o Paulo Guedes não pagou, sem que o atual governo fosse responsável por ela. O Paulo Guedes fez isso aí e todo mundo achou lindo. Era para o mercado ter penalizado o governo com essa medida que foi tomada para adiar os pagamentos dos precatórios. Agora, não. O governo tanto está fazendo aumento de receita como está passando para a sociedade que ele vai, sim, se preocupar com a despesa. Isso tem de ficar claro.

Não estou achando maravilhosa a política fiscal, mas o governo tem feito esforços para equacionar o resultado primário

O pagamento dos precatórios já estava já previsto para ser feito em parcelas.

Isso, em 2027.

Não sou advogado do Paulo Guedes, mas o governo resolveu pagar tudo de uma vez por uma opção própria. Ele não precisava ter feito isso. Inclusive o próprio Ciro Gomes, com quem o sr. tem uma ligação política, criticou muito a antecipação desses pagamentos, que os bancos aplaudiram.

Sim, mas, de qualquer forma, não foi um gasto promovido pelo atual governo.

Agora, mesmo descontando os R$ 90 bilhões dos precatórios, ainda sobrariam R$ 140 bilhões de déficit primário em 2023.

Mas o governo está corrigindo isso agora. O governo está está preocupado com a despesa previdenciária, está preocupado com o BPC (Benefício de Prestação continuada), está cortando alguns gastos, dizendo que vai economizar pelo menos R$ 18 bilhões.

Só que o governo está deixando de fora do resultado primário cerca de R$ 40 bilhões de despesas, em bolsas do programa Pé-de-Meia, concessão de auxílio-gás, recursos para combate a queimadas, projeto que autoriza a estatal Emgea a comprar créditos podres dos bancos. O governo está ressuscitando a velha “contabilidade criativa” que levou ao impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff. Então, fica difícil dizer que o governo está cumprindo a meta. Assim, é fácil, não é, deputado?

Não tem aumento de gasto. Primeiro, a exclusão do auxílio gás só vai acontecer no ano que vem. Em segundo lugar, no caso da despesa relacionada às enchentes do Rio Grande do Sul, que é a maior entre as que vão ficar fora do primário, a Constituição diz que em calamidade pública você pode fazer crédito extraordinário. Isso acontece em qualquer lugar do mundo. Não é contabilidade criativa. Esses R$ 500 milhões para combate aos incêndios florestais não representam um valor relevante. Então, não é assim como você está falando.

Do jeito que o sr. está colocando o quadro, parece que a política fiscal do governo Lula é maravilhosa. É isso mesmo?

Não, não estou achando maravilhosa. Eu estou dizendo que o governo tem feito esforços, na tentativa de equacionar o resultado primário. Acredito que o governo está procurando perseguir isso, mas ainda assim não será suficiente com esses juros estratosféricos para estabilizar a relação dívida/PIB. A política fiscal sozinha – isso eu já disse para o ministro Fernando Haddad – não dá uma segurança de estabilização na relação dívida/PIB.

Em sua visão, então, o governo não precisa cortar gasto nenhum?

Não, não é isso. Como eu acabei de falar, o governo está procurando cortar gasto. Já anunciou onde vai cortar. Ele está revendo os gastos da Previdência. Está revendo os gastos com o BPC. Está trabalhando em cima disso e vai apresentar os resultados em dezembro. Agora, eu faria diferente. Eu cortaria mais. Acredito que a despesa obrigatória tem de ser observada com lupa. Tem de cortar os excessos, aprimorar o controle, porque, se o governo não fizer isso em 2025, ele não conseguirá cumprir o resultado primário.

O sr. se refere ao “pente fino” que será feito para apurar irregularidades nos benefícios sociais?

Sim, sim. Eu não tenho dúvida de que em todos eles têm gente recebendo benefício de maneira inadequada.

Pelo que eu vi outro dia, a previsão oficial de economia com essas medidas, que o sr. falou que seria de R$ 18 bilhões, na verdade era de R$ 15 bilhões, mas o governo já está revendo R$ 1,7 bilhões de cortes, reduzindo o valor total para cerca de R$ 13 bilhões. É curioso que o sr. minimiza os gastos fora da meta, mas maximiza os cortes.

Se eu tirar o Rio Grande do Sul da conta dos gastos que deverão ficar fora do resultado primário, sobraria algo em torno de R$ 5 bilhões, na pior hipótese. É isso que o pessoal chama de “contabilidade criativa”? R$ 5 bilhões? Eu gostaria de ter o mesmo tempo que a gente gasta para discutir esse gasto de R$ 5 bilhões para debater os R$ 900 bilhões de gasto financeiro previstos para 2024.

O mercado estimou um crescimento de 1,3% do PIB neste ano e ele deverá ser de 3%

O TCU soltou um relatório estes dias, aprovado por unanimidade, abordando o alto risco de o governo não cumprir a meta fiscal em 2024 também pelo lado da frustração de receitas. No Orçamento, o governo previu quase R$ 32 bilhões de arrecadação com ações no Carf (tribunal onde são julgados recursos administrativos de débitos dos pagadores de impostos), mas até agora, quase no fim de setembro, entraram apenas R$ 83 milhões no caixa do Tesouro, segundo o TCU. Isso já está na sua conta?

Na estimativa do TCU, o crescimento da receita neste ano é de 8% em termos reais. Em agosto, como eu disse há pouco, o aumento da arrecadação chegou a 12% em relação ao mesmo período do ano passado. Veja quantos bilhões a mais foram acrescentados na receita. Então, depende do que você está analisando. O que é que o TCU vai dizer agora, com a receita crescendo 12%? Se você previu uma elevação da arrecadação de 8%, mas ela está subindo 12%, como está acontecendo, as projeções têm de mudar. E a tendência é de que a arrecadação continue a subir nos próximos meses, porque o mercado estimou um crescimento de 1,3% do PIB neste ano e ele deverá ser de 3%.

Agora, o ministro Fernando Haddad, que foi apelidado de Taxad, pela sua volúpia tributária, vem buscando o equilíbrio fiscal muito em cima do aumento de tributos, mesmo com o País já tendo uma das maiores cargas tributárias, se não a maior, entre os mercados emergentes, e está cortando gastos apenas de forma marginal, até por determinação do Lula. O sr. também acredita que é por aí que deve ser feito o ajuste nas contas públicas?

Essa é uma coisa que tem de ser melhor explicada. Não houve aumento do imposto de renda das pessoas jurídicas. O que houve foi a cobrança de imposto de renda dos fundos exclusivos, que pagavam zero. Alguém tem de dizer isso. Tinha de taxar mesmo os fundos exclusivos, que atendem 2.846 pessoas, com um saldo de R$ 746 bilhões em aplicações. Além disso, houve a cobrança de imposto de renda dos fundos offshore, que também pagavam zero. Muita gente pensa que a cobrança é sobre o estoque, mas é sobre o ganho. Depois, houve também a cobrança de imposto das bets, que faturam R$ 140 bilhões por ano, pagam R$ 36 bilhões aos apostadores e ficavam com R$ 104 bilhões limpos para elas As bets não pagavam nada de imposto no Brasil. Agora, isso é aumento de tributo? Ah, espera aí. Como bom tributarista, eu não posso permitir que isso seja passado como aumento de tributo.

Se dependesse do ministro Fernando Haddad, a gente ainda teria uma taxação adicional sobre as empresas, com a limitação do uso de créditos de PIS (Programa de Integração Social) e Cofins (Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social), para compensar a desoneração da folha de pagamento. Era algo tão despropositado que gerou um movimento contrário dos empresários como há muito não se via no País.

Esse pessoal está há 13,14 anos com incentivo fiscal, desde 2011. De cinco em cinco anos, ele é renovado. E todo mundo acha que estava tudo lindo e agora isso vai continuar por mais dez anos. Aliás, essa medida do PIS/Cofins nem passou no Congresso. Nós estamos discutindo uma coisa hipotética, que não passou pelo Legislativo.

Não passou porque o ministro teve de recuar diante da celeuma que foi gerada.

Exatamente. O Congresso teve a responsabilidade de calibrar isso. Agora, isso aí traz de volta a discussão se nós temos de dar incentivo fiscal a vida inteira. A União dá R$ 540 bilhões de incentivo fiscal por ano. Se a gente tirar os R$ 100 bilhões das microempresas e os R$ 35 bilhões da Zona Franca de Manaus, ainda estamos falando de R$ 400 bilhões. Vamos deixar isso a vida toda? Esse pessoal vai continuar tendo esse privilégio para sempre?

É, mas o sr. acha que é correto tentar mexer nisso na calada da noite, empurrando goela abaixo dos empresários, sem qualquer discussão prévia, como fez o ministro?

Aí, está certo. Isso tem de ser discutido com a população, como eu quero que os R$ 900 bilhões de despesas financeiras também sejam.

Quer dizer, em vez de cortar gastos, o governo vai continuar torrando o dinheiro dos pagadores de impostos e alavancando a arrecadação com aumento de tributos?

Mas não tem aumento de imposto. Acabei de explicar. Você dá a entender que esse aumento de carga tributária está indo para o mais pobre, que o governo está aumentando o imposto na base. Vamos fazer isso com correção, dizer onde está se dando esse aumento do tributo, porque senão a gente passa uma imagem de que é taxa, taxa, taxa.

Entrevista por José Fucs

É repórter especial do Estadão. Jornalista desde 1983, foi repórter especial e editor de Economia da revista Época, editor-chefe da revista Pequenas Empresas & Grandes Negócios, editor-executivo da Exame e repórter do Estadão, da Gazeta Mercantil e da Folha. Leia publicações anteriores a 18/4/23 em www.estadao.com.br/politica/blog-do-fucs/

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