BRASÍLIA - A reforma tributária em votação no Brasil ficou no meio do caminho entre os projetos mais modernos que existem hoje no mundo e os primeiros modelos de Imposto sobre Valor Agregado (IVA) implementados na Europa. Essa é a avaliação da consultora Melina Rocha, que prestou assessoria técnica para o governo brasileiro, diretamente do Canadá, para onde se mudou justamente para estudar essa forma de tributação.
“Os IVAs mais modernos em geral têm alíquota única. Então ficamos no meio-termo, porque abrimos muitas exceções. Mas, tendo em consideração o ponto de partida, que é o nosso sistema atual, acho que o resultado foi muito satisfatório”, disse em entrevista ao Estadão.
Ela avalia que o avanço para o Brasil com a troca de modelo é imensurável, porque saímos de um sistema altamente complexo, que afasta investimentos, estimula disputas judiciais e é pouco transparente. Entre os principais avanços do projeto, ela aponta três medidas pioneiras: a criação de um Comitê Gestor para gerir os recursos dos Estados e municípios, a adoção do ‘split payment’, que vai separar no ato da compra o que é receita de imposto do que é receita para o fornecedor do bem ou serviço, e a adoção do IVA para o sistema financeiro.
Com o envio da regulamentação da reforma, e sua provável aprovação ainda este ano, Melina Rocha entende que os benefícios da reforma vão começar a ser sentidos em 2027, ou seja, no primeiro ano do próximo governo, com substituição do PIS/Cofins pelo CBS, o novo imposto federal.
Veja abaixo os principais pontos da entrevista:
O Imposto sobre Valor Agregado (IVA) completou 70 anos de criação, na França. O Brasil chegou por último a esse modelo, com o lado bom de aprender com a experiência internacional. Como ficamos com esse projeto?
O IVA mais antigo, principalmente da União Europeia, tem alíquotas diferenciadas, muitas isenções e tratamentos diferenciados. Já o IVA mais moderno, da Nova Zelândia, Canadá, África do Sul e Índia, já vem com menos diferenciações. O projeto tomou decisões de cunho político de introduzir uma série de bens e serviços sujeitos à alíquota reduzida. Então a nossa reforma está no meio-termo, entre os IVAs mais antigos e os IVAS mais modernos, que, em geral, têm alíquota única.
Então mesmo tendo ficado por último, não podemos nos comparar com os mais modernos?
Sim, mas acho que é um bom resultado ficar no meio-termo. Tendo em consideração o ponto de partida que estamos saindo, do modelo atual, com ICMS, várias alíquotas, vários regimes diferenciados, vários benefícios fiscais, que também ocorrem no PIS/Cofins, IPI e ISS. Levando em consideração isso, passar desse sistema para um que tem só 3 alíquotas, acho que é um grande avanço. O ideal era uma alíquota única, mas acho que o resultado foi muito satisfatório.
Em quais pontos o governo enfrentará mais resistência na tramitação da regulamentação?
A espinha dorsal da reforma está garantida pela aprovação da Emenda Constitucional. Base ampla de incidência, não cumulatividade plena, o princípio do destino muito bem colocado. Não há muita margem para mudar. Acho que as discussões principais que o Congresso vai enfrentar é a questão dos alimentos da cesta básica. Que produtos terão alíquota zero e quais terão redução de 60%. Mas isso vale para todos os serviços sujeitos a essas alíquotas diferenciadas. Acredito que vai haver uma pressão dos grupos de querer incluir mais coisas.
Como evitar essas pressões?
O Congresso tem de ter atenção, porque cada produto que entrar na alíquota diferenciada vai implicar em aumento da alíquota padrão, calculada em 26,5%.
Muita gente reclamou que o projeto tem 500 artigos, que isso demonstraria que não há tanta simplificação no modelo.
Não acho que seja exagerado ter 500 artigos, só o regulamento do PIS/Cofins tem 800 artigos. Fora o ICMS, com leis complementares, mais as leis estaduais, municipais. Além disso, uma lei mais detalhada dá mais segurança jurídica para os entes federativos, e os contribuintes terão regras bem claras. Quanto mais detalhado, mais segurança jurídica e menos contencioso.
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Quais os principais pontos positivos da reforma?
Haverá uma redução de custo da cadeia produtiva, por causa da implementação da não cumulatividade plena. Acho que esse é o grande ganho. Mas a gente só vai realmente ver a consequência disso quando for implementado, porque hoje é até difícil calcular o impacto. Vamos fazer uma limpeza na cadeia em termos de eliminar resíduos tributários que são custos e que hoje não podem ser recuperados.
Só daqui a 10 anos o País começará a colher esses benefícios, ao término da transição, em 2033?
Como a CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços, o IVA federal) vai ser implementada em 2027 e já vai substituir dois tributos que são muito ruins, que são PIS e Cofins, já vamos ver algum impacto em termos de diminuição de custos.
Ou seja, no próximo governo.
Sim, mas já com a promulgação da Emenda Constitucional acredito que já teve um ganho de expectativa, principalmente do investidor estrangeiro. Porque a multinacional que tem subsidiária no Brasil já conhece o IVA, é o sistema padrão. Ao saber que o Brasil vai ter o IVA, já sabe que vai ter menos contencioso, regras mais claras, mais segurança jurídica. Essa expectativa já começou, principalmente para os investidores estrangeiros.
Essa informação já circula entre os investidores?
Tenho acompanhado as discussões internacionais, vários jornais estrangeiros fizeram reportagens sobre a reforma brasileira, participei de alguns eventos na Câmara de Comércio de Nova York. Havia vários investidores interessados em saber sobre a reforma.
O que destacaria do projeto brasileiro?
Queria chamar atenção para três coisas que vão colocar o Brasil como pioneiro com essa reforma, em nível mundial. Primeiro, o Comitê Gestor. Há outros países federativos no mundo, como Índia e Canadá e a própria União Europeia, que não têm sistema centralizado, em que Estados e municípios vão gerir as receitas de forma autônoma. Além disso, duas outras inovações, uma delas, o split payment.
Como funciona o split payment?
Como funciona o IVA no mundo? Você coloca na nota fiscal R$ 100, mais o IVA de R$ 18, por exemplo, e aí o preço vai para R$ 118. O fornecedor pega o dinheiro, e no final do período de apuração ele abate os créditos. Se não tiver crédito, ele tem que recolher R$ 18 para o fisco. Com o split payment, em vez de eu pagar os R$ 18 para o fornecedor, para depois ele repassar, já vai ser feito o pagamento diretamente para os cofres públicos. O benefício é que vai diminuir a evasão fiscal. Porque quando você paga no primeiro modelo, o fornecedor pode não pagar para o fisco. Pode ter algo que esse dinheiro não seja recolhido.
Já temos a tecnologia para isso?
Está bem avançado, segundo o secretário Bernard Appy. Acredito que o Brasil pode ser pioneiro, como o Brasil foi na nota fiscal eletrônica no mundo, foi um dos primeiros a implementar. O sistema bancário brasileiro é bem desenvolvido também, a ponto de permitir essa tecnologia.
E o terceiro avanço?
São os serviços financeiros, que, em geral, são isentos no IVA. Essa reforma está sendo inovadora, aplicando IBS e CBS também sobre a intermediação financeira. Vários países do mundo estão estudando essa possibilidade. A UE tinha um grupo de discussão para implementar, mas não implementou. O Brasil está trazendo um modelo inovador para tributar a intermediação financeira.