BRASÍLIA - A brasileira Melina Rocha, consultora internacional na área tributária, alerta que os Estados poderão ficar dependentes de São Paulo caso aceitem a proposta do governo paulista de substituir, na reforma tributária, a criação do Conselho Federativo para gerir o novo imposto por uma câmara de compensação para o repasse dos recursos arrecadados.
A criação do conselho é um dos pontos mais polêmicos do parecer do relator da reforma, deputado Aguinaldo Ribeiro (PP-PB). Pela proposta, o Conselho terá independência, gestão compartilhada e paritária entre Estados e municípios. O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, como antecipou o Estadão, lidera uma frente para barrar o modelo.
De Toronto, no Canadá, onde mora e é diretora de cursos na York University, Melina explica o que está em jogo nessa queda de braço. Especialista em Imposto sobre Valor Agregado (IVA), ela participou da elaboração do parecer da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 110 do Senado, que serviu de base também para o parecer do relator Aguinaldo Ribeiro.
“Esse modelo deixa São Paulo numa posição muito confortável. Vai ter mais garantia para São Paulo porque é ele que vai ter que repassar para os outros”, afirma ela, lembrando que o Estado fornece mais produtos para todos os demais Estados. Para ela, o Conselho dará mais autonomia aos Estados, ao contrário do que disse ao Estadão o governador de Goiás, Ronaldo Caiado - que afirmou que não iria viver de “mesada” com a reforma.
A sra. estudou o histórico das tentativas de reforma tributária ao longo dos últimos 35 anos. O ambiente de fato está mais favorável agora?
Sou bastante otimista. Tem o apoio do Lira (presidente da Câmara). Lembra que o Lira dissolveu a comissão mista de reforma (Senado e Câmara), no governo passado, no dia que o deputado Aguinaldo Ribeiro estava lendo o relatório. O Aguinaldo conseguiu superar isso e está afinado com o Lira. Dá para ver nas manifestações públicas que ele está querendo aprovar a reforma e fazer todos os alinhamentos necessários. Sou otimista por conta desse elemento do relator com o governo e o Lira.
Durante governo Lula, em 2008, os Estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais foram contrários à reforma. Não chegou a ser votada em plenário. O que mudou agora?
Ela foi barrada depois da apresentação (do relatório) do deputado Sandro Mabel. O José Serra (governador de SP na época) usava o contexto da crise econômica de 2008, com medo de perda de arrecadação. Uma coisa muito interessante de ver é que a adoção do princípio do destino (tributação onde o bem ou serviço é consumido) sempre foi um critério que trouxe resistência. Agora, o que eu vejo é que, até o ano passado, tínhamos uma convergência por parte de todos os Estados. Estava muito claro no Comsefaz (que reúne secretários de Fazenda dos Estados) que todos aceitavam o princípio de destino. O governo (Bolsonaro) era contrário ao IVA (Imposto sobre Valor Agregado) único, não aceitava financiar nenhum tipo de fundo, nem de compensação e nem de desenvolvimento regional.
Mudou a convergência?
Os Estados estavam num consenso e aceitaram na PEC 110 (do Senado) um Fundo de Desenvolvimento Regional, o FDR, sem participação da União. Tinha ali, com o aval do Comsefaz, o fundo sendo financiado pela arrecadação do próprio IBS (novo imposto que vai unificar o ICMS, estadual, e o ISS, municipal). E veio o governo Lula, com uma vontade política muito maior e apoio financeiro. Mas agora, infelizmente, aquele consenso que se atingiu... parece que alguns Estados não estão apoiando certas coisas. Mas o princípio do destino está sendo apoiado, mesmo o Caiado (governador de Goiás). A questão agora é como implementar o destino.
A divergência maior é na criação do Conselho Federativo para gerir o IBS, o novo tributo que será criado com a reforma?
Alguns Estados estão dizendo que o Conselho fere a autonomia, o que não é verdade.
O governador de SP, Tarcísio de Freitas, diz que é a favor da reforma, mas tem se colocado contra. As resistências dos governadores agora são maiores ou menores do que as do passado, quando a reforma foi barrada? Podem melar a reforma?
O Kinoshita (secretário de Fazenda de São Paulo) já falou que não é contra o princípio de destino e só está contrário à forma de operacionalização, por meio desse conselho federativo. Ele vê o conselho com uma centralização que é desnecessária e apoia uma câmara de compensação entre os Estados para fazer essa intermediação das operações interestaduais. O problema todo é que temos os municípios nesse tributo e é impossível fazer uma câmara de compensação.
Como funcionaria essa câmara de compensação?
Nas operações interestaduais, a empresa recolhe para o Estado e, como é o princípio de destino, é o Estado do destino que deve receber essa arrecadação. O Estado que arrecadou tem que repassar o dinheiro para o Estado de destino. Todos os Estados que arrecadam na origem das empresas, da saída do produto, tem que ficar passando do dinheiro para o destino. Isso a gente pode até imaginar no nível estadual, nos 27 Estados; mas, no municipal, isso é impossível de ser feito numa câmara de compensação. É por isso que se propõe o conselho federativo: para centralizar essas operações interestaduais, para fazer a gestão disso. Só vai entregar mesmo o dinheiro quando for mesmo para o destino.
Leia Também:
Como fica a pressão de São Paulo, o Estado mais rico e com maior produção no País?
Esse modelo deixa São Paulo numa posição muito confortável, porque ele sempre vai receber. Vai ter mais garantia para São Paulo, porque é ele que vai ter que repassar para os outros. A balança comercial dele é positiva. São Paulo fornece mais produtos para todos os demais Estados. Eles recebem mais produtos de São Paulo e iriam receber os repasses de São Paulo nesse esquema de câmara de compensação. São Paulo não ficaria dependendo do repasse de ninguém. Ele que teria repassar o dinheiro para o destino, porque os produtos prioritariamente saem de São Paulo, onde tem mais indústria. É muito conveniente defender esse tipo de proposta.
Poderia explicar melhor a razão dessa conveniência?
São Paulo é o Estado produtor. Os produtos saem de lá e vão para os outros Estados. Ele que teria repassar o dinheiro da arrecadação. Os outros Estados ficariam dependentes de São Paulo.
São Paulo teria o maior poder nessa Câmara?
Isso, com a proposta de São Paulo, que é não ter conselho.
O ex-secretário de Fazenda de São Paulo, Felipe Salto, se manifestou contrário ao Conselho em entrevista ao Estadão. Você se posicionou em defesa da reforma, contra o posicionamento dele no Twitter. Qual é a importância do Conselho?
Ele evita que haja esse repasse de dinheiro entre os Estados e municípios, do produtor para o destino. O próprio conselho já vai fazer isso e vai garantir que o dinheiro arrecadado com o IBS no meio da cadeia produtiva já seja descontado como crédito, garantindo a não cumulatividade (sem tributação em cascata). Se a empresa acumular crédito, imediatamente vai ter o crédito devolvido. Sem esse conselho, como o professor Nelson Machado falou, vai acontecer o que acontece hoje no ICMS. O dinheiro entra para os cofres dos Estados e eles não devolvem (para o contribuinte). Eles criam uma série de empecilhos para não devolver crédito para o ICMS. Isso vai acontecer se não tiver um conselho federativo centralizado para fazer a administração da devolução de crédito.
O Conselho asseguraria essa devolução?
O Conselho é muito melhor para os Estados para garantir autonomia. São os próprios entes que vão fazer parte da gestão. É melhor do que ficar dependente de um Estado só, por exemplo. O Caiado falou: “não quero ficar dependente de mesada”, mas no sistema que não seja o Conselho, ele vai ficar dependendo de mesada de outros Estados, prioritariamente São Paulo. Estão trocando uma coisa que é garantia para ficarem dependentes. Tem um detalhe importante: quando o tributo vai para o destino a grande autonomia que os Estados tinham, que era conceder benefício, investimento, fazer guerra fiscal, se acaba. Não pelo conselho, mas pelo princípio do destino.
Dos Estados mais ricos produtores?
Isso, exatamente.
O sistema chamado de ‘split payment’ vai vingar no Brasil com a reforma? Ele possibilita que o novo tributo seja pago já no momento da compra, para facilitar o recebimento do crédito. O banco separa, já na hora do pagamento, o imposto para os cofres dos governos (federal, estadual e municipal).
No Brasil, temos todas as condições de ter esse sistema porque somos muito informatizados. Os sistemas são pioneiros. No Canadá, o Fisco é por fax. Não tem nada online. O Brasil foi pioneiro na nota fiscal eletrônica, tem um sistema bancarizado muito bom. Por meio do Conselho Federativo, a arrecadação da venda entre empresas será retida para o crédito. Vai receber (o crédito) instantaneamente na hora do pagamento. Pagou o fornecedor e já paga o IVA. O sistema bancário faz o “split payment”: uma parte para o fornecedor e outra para o Fisco. Os Estados só vão receber o dinheiro quando for a venda para o consumidor final. Aí, sim chegou ao destino. É bom isso porque só tem o crédito quando efetivamente é recolhido o dinheiro.
O que é o crédito, nesse caso?
É o IVA que paguei na minha aquisição. Eu comprei, por exemplo, insumo e tenho direito ao crédito, o abatimento do IVA que paguei. O que acontece é que existe muita nota fria (fraude) de um compra que nunca ocorreu.
Quem vai cuidar da cobrança? Uma procuradoria do conselho?
O substitutivo não traz uma gestão clara com relação a isso. A ideia é que o conselho não tenha um corpo de fiscalização e procuradoria próprios. Vai ter o mínimo de funcionários para cuidar da administração dessa coordenação. Como vai se dar essa cooperação, fica para lei complementar. O Brasil será pioneiro com esse conselho. No mundo tem poucos países com Federação. A maior parte delas tem IVA federal. Somente duas federações – Índia e Canadá – fazem compartilhamento do IVA com o governo federal e os entes subnacionais. No Canada, a União criou o IVA dela e as províncias se harmonizaram.
O relatório do deputado Aguinaldo Ribeiro fala que o fundo de compensação de benefícios fiscais, bancado com recursos do governo, permite que os Estados concedam subvenções (subsídios). Como avalia?
A lei complementar 160 que revalidou os benefícios concedidos no contexto de guerra fiscal. Conforme a lei, os benefícios são válidos até 2032. O que acontece é que alguns benefícios são concedidos com contrapartida onerosa, exigindo que as empresas invistam no Estado. A questão toda é que há um risco político de que, se os benefícios acabarem antes de 2032, há o risco jurídico de essas empresas pedirem indenização para os Estados. Esse fundo foi criado por conta desses benefícios.
Esse fundo não estava na PEC 110?
Na PEC 110, essa questão foi levantada e parte do FDR poderia ser utilizado pelos Estados para compensar essas empresas. A compensação era feita dentro do FDR.
Esse novo fundo é uma inovação?
Não tinha em nenhum das PECs.