Tributação de lucros e dividendos tem resistência e abre portões da ‘coitadolândia’, diz Pedro Nery


Economista lança livro ‘Extremos - um mapa para entender a desigualdade no Brasil’, em que defende que mais ricos paguem mais impostos e que haja uma nova reforma da Previdência com foco em militares e servidores estaduais

Por Alvaro Gribel
Atualização:
Foto: Cicero Bezerra
Entrevista comPedro Neryeconomista e diretor de Assuntos Econômicos e Sociais da Vice-Presidência da República

BRASÍLIA – Depois de anos debruçado sobre planilhas de dados como consultor legislativo do Senado Federal, o economista Pedro Fernando Nery, hoje diretor de Assuntos Econômicos e Sociais da Vice-Presidência da República, decidiu visitar oito localidades que mais escancaram a desigualdade social do País.

O resultado está em Extremos - um mapa para entender a desigualdade no Brasil, livro que lança este mês pela Zahar, selo do grupo Companhia das Letras, na missão de revirar causas e propor saídas para superar o que, para muitos, é a maior chaga da economia nacional.

Nery defende que haja aumento de impostos sobre os mais ricos – incluindo alíquotas sobre grandes fortunas –, maior tributação sobre propriedades rurais e estímulo ao adensamento populacional urbano, além de foco na construção de creches e emprego massivo para mulheres.

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(Hoje), Quem ganha mais, paga menos. Então, só fazer os mais ricos pagarem os 27,5% como os demais já seria um grande avanço. Mas mesmo aí há resistência; uma proposta como a de tributação de lucros e dividendos já abre os portões da “coitadolândia”, para usar uma expressão das redes”, diz Nery em entrevista ao Estadão.

O economista também entende que o País precisará passar por uma nova reforma da Previdência – desta vez com foco em militares, forças de segurança pública e servidores estaduais. “Ainda há lugares com delegadas se aposentando com 40 e poucos anos, ganhando o teto remuneratório, de forma vitalícia. É uma situação meio insuportável, se estamos ainda lutando para vencer a fome e temos dificuldades fiscais.”

No ritmo atual, explica Nery citando dados da OCDE, o Brasil precisará de nove gerações para que o filho de uma família em situação de vulnerabilidade alcance a renda familiar média nacional. Em países com maior mobilidade intergeracional, a estimativa pode cair para duas gerações.

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O economista defende que haja maior transparência com os gastos tributários de pessoas físicas e jurídicas. Ele lembra que o governo é obrigado a abrir os seus dados em relação aos gastos diretos, mas que existem poucas informações sobre as despesas indiretas, como renúncias fiscais. “Os R$ 50 recebidos por uma gestante pobre no Bolsa Família é considerado informação de interesse público, mas R$ 50 mil recebidos de renúncia fiscal, não. É mais difícil reformar se a sociedade não conhece estes números”, aponta.

A seguir, os principais trechos da entrevista.

Pedro Nery defende que haja maior transparência com as renúncias tributárias.  Foto: Cicero Bezerra
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A ideia do livro foi visitar oito localidades representativas da desigualdade. Como foi sair das planilhas e presenciar isso de perto?

Quando ainda era colunista do Estadão, houve os 130 anos da República, em 2019, e se organizou quais seriam os grandes temas do País. Combate à desigualdade aparecia no topo. Então, eu vejo que na esquerda e na direita existe preocupação com esse assunto. A inquietação de sair de Brasília e ir atrás desses lugares veio um pouco do isolamento da pandemia – esse é um livro que começou a ser escrito em 2020. Teve o empurrão de um livro em inglês chamado Extreme Economies, de Richard Davies, com a lógica de um economista que vai para lugares extremos, ver o que se pode pegar daquela realidade. Isso e pela condição de ser servidor em Brasília, de morar em um lugar privilegiado, de mexer tanto com municípios, índices na planilha, sem necessariamente estar lá.

Que lugares foram esses?

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Teve um lugar com o maior desenvolvimento humano: Pinheiros, na zona oeste de São Paulo; o pior, que seria Ipixuna, na fronteira entre o Acre e o Amazonas. O bairro que tem maior expectativa de vida, que poderia ser o Morumbi, também em São Paulo. O bairro em que se vive menos, que é Mocambinho, na periferia de Teresina. A unidade mais rica da Federação, que é o DF; a mais pobre, que é o Maranhão. E aí, dois extremos sobre apropriação do gasto público: a cidade com mais aposentados, que é o município de Nova Petrópolis, na Serra Gaúcha, e o município com mais Bolsa Família, que é Severiano Melo, no Rio Grande do Norte.

Um dos pontos defendidos no livro para reduzir desigualdade é o do adensamento populacional urbano, uma ideia que de certa forma vai na contramão do senso comum. Como é essa proposta?

É um tema fundamental, que tem ganhado muita atenção lá fora, em parte pela necessidade de combater a mudança climática e reduzir a queima do combustível fóssil. Diminuir distâncias nas cidades interessa também para que os mais pobres estejam mais próximos de oportunidades, principalmente de trabalho. Não adianta se preocupar tanto com qualificação profissional, legislação trabalhista, desoneração ou redução de juros se as pessoas estão fisicamente longe dos empregos e atividades de maior produtividade. Há outras vantagens em adensar, mas esta talvez seja a principal. Precisamos aproximar ricos e pobres, também fisicamente.

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No campo tributário, seus estudos apontam que o Brasil precisa ter uma taxação sobre grandes fortunas, além de aumentar o tributo sobre heranças. Há viabilidade política para isso?

Há muitas propostas no Congresso Nacional e uma pequena mudança já feita na PEC (Proposta de Emenda Constitucional) da reforma tributária. A questão das heranças é mais consensual entre economistas do que o imposto sobre grandes fortunas. Tributar melhor heranças é importante para o próprio crescimento. É um desperdício concentrar recursos em quem não é necessariamente o mais dedicado, o mais talentoso, enquanto há um potencial enorme em capital humano com crianças pobres passando privações básicas.

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Isso quer dizer que a reforma do Imposto de Renda já deveria vir com uma nova alíquota, para uma nova faixa de renda?

Talvez seja suficiente combater os benefícios tributários, o que aumenta a alíquota efetiva – isto é, a alíquota paga na prática. Isso pode ser feito sem novas faixas. A Constituição exige um IR progressivo, mas o nosso é, a partir de certo ponto, regressivo. Quem ganha mais, paga menos. Então, só fazer os mais ricos pagarem os 27,5% como os demais já seria um grande avanço. Mas mesmo aí há resistência; uma proposta como a de tributação de lucros e dividendos já abre os portões da “coitadolândia”, para usar uma expressão das redes.

O sistema tributário brasileiro é descrito como uma verdadeira indústria da desigualdade. Por que isso acontece?

Na comparação internacional, o Brasil tributa muito consumo e trabalho, e pouco a renda e o patrimônio. A questão do consumo está sendo encaminhada pela PEC da reforma tributária do ano passado, e sua regulamentação, este ano. A questão do trabalho poderia ser casada com a da renda. Como um CEO de uma grande empresa falou ao Estadão, ele paga menos imposto que a operadora de caixa da sua loja.

O sr. defende maior transparência sobre as renúncias tributárias. Como o Estado brasileiro poderia se modernizar nesse sentido?

A Lei de Acesso à Informação já obriga que se divulguem quaisquer repasses ou transferências de recursos financeiros do poder público. Mas entendemos que isso só abrange o gasto direto, não o gasto indireto – o gasto tributário. Então, os R$ 50 recebidos por uma gestante pobre no Bolsa Família é considerado informação de interesse público, mas R$ 50 mil recebidos de renúncia fiscal, não. É mais difícil reformar se a sociedade não conhece estes números.

O Tributo Territorial Rural é apontado como tendo baixa arrecadação, de menos de R$ 2 bilhões. Por que esse imposto arrecada tão pouco e o que poderia ser feito?

É o “imposto dos dez reais”, como ironicamente é conhecido por juntar pouco dinheiro, apesar da pujança do agro. O valor das propriedades é baseado em autodeclaração. Os parâmetros não são atualizados há décadas e a cobrança fica com os municípios, que podem ser politicamente sensíveis aos interesses dos produtores rurais.

O mesmo vale para o IPTU, para o qual o sr. também defende alíquotas maiores?

Não é novidade que o IPTU pode ser progressivo, no valor e no tempo. É um instrumento importante no combate à desigualdade, não apenas porque é um tributo que alcança parte da riqueza dos mais ricos, mas porque pode ser usado como estímulo para o adensamento das cidades. É uma ferramenta fundamental para os municípios, até porque pode financiar uma política que é das mais relevantes para o combate às desigualdades e tem competência municipal, que é a de creches.

Por quê?

Creche é infraestrutura para desenvolvimento de capital humano. A gente vê que no Brasil há municípios como Ipixuna, no Amazonas, em que não existe creche – nem pública, nem privada. Cito no livro uma frase da Melinda Gates, filantropa, ex-esposa do Bill Gates, de que a creche é tão necessária quanto cabos de fibra óptica ou rodovias. A creche vai permitir não só que a criança seja bem cuidada, mas que a mãe possa trabalhar.

E a Previdência? O Brasil precisa de uma nova reforma?

Para o combate à desigualdade, agora é importante focar nos militares e no funcionalismo, principalmente o estadual. Ainda há lugares com delegadas se aposentando com 40 e poucos anos, ganhando o teto remuneratório, de forma vitalícia. É uma situação meio insuportável, se estamos ainda lutando pra vencer a fome e temos dificuldades fiscais. Muito se questiona programas como o Bolsa Família, mas a verdade é que o Bolsa Família deve ser a régua de efetividade em relação ao resto do gasto. Tem um histórico de custo-efetividade bom. Não deve ser alvo, mas sim o parâmetro para o ajuste em outros gastos.

Existe espaço para discutir isso internamente no governo?

Não tenho como responder por nenhuma discussão interna, mas existem projetos no Congresso. A reforma da Previdência dos militares, do ponto vista formal, é relativamente mais simples, porque sequer exige PEC. O mesmo vale para outras fontes de pressão no déficit (nas contas públicas) que beneficiam a elite – avaliação de servidores públicos ou regulamentação do teto remuneratório são temas para simples lei, não emenda constitucional.

De todas as propostas do livro, quais as mais viáveis politicamente, pelo seu olhar de dentro, já que trabalha na vice-Presidência da República?

Eu acho que o “mato alto”, a parte mais fácil, é o que não envolve fiscal, como agendas de regulação. Me parece que o Brasil está para começar a dar mais importância para a pauta de ampliação de oferta de residências nas áreas mais prósperas das grandes cidades. Do ponto de vista federal, isso envolve alguma alteração em normas gerais como o Estatuto das Cidades; e, do ponto de vista municipal, uma nova visão sobre os planos diretores, que precisam ter como norte o custo e tempo que os pobres precisam para chegar às oportunidades.

Que propostas precisariam de maior entendimento por parte do próprio governo e do PT?

Acho que a postura de ambos é inequívoca na defesa da redução da desigualdade, e “pobre no Orçamento e rico no IR” é um bom mantra. Não à toa, a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) da última semana mostrou a renovação do (índice de) Gini na mínima histórica, a pobreza extrema no menor patamar já registrado, um crescimento forte da renda dos mais pobres. Há ainda uma pauta de educação fundamental sendo tocada, como o novo ensino médio, as escolas em tempo integral, o Pé-de-Meia. E tem a primeira infância – é sabido que o governo tem se debruçado e tem carinho pelo tema, há um debate público no Conselhão (CDESS) para subsidiar a aguardada Política Nacional para a Primeira Infância. E é essencial, porque, no fundo, o que precisamos também é de um PAC do Capital Humano.

Quando teremos números mais aceitáveis de desigualdade?

Se a gente olha a tendência, vai demorar muito. Em todos os países que a OCDE pesquisa, no Brasil, vai demorar nove gerações para um filho de uma família mais pobre chegar à renda média nacional; enquanto, em outros países, isso leva de duas a três gerações. A gente tem um trabalho muito grande para ser feito, e um pouco da ideia do (livro) Extremos é discutir política pública para todos esses lugares.

BRASÍLIA – Depois de anos debruçado sobre planilhas de dados como consultor legislativo do Senado Federal, o economista Pedro Fernando Nery, hoje diretor de Assuntos Econômicos e Sociais da Vice-Presidência da República, decidiu visitar oito localidades que mais escancaram a desigualdade social do País.

O resultado está em Extremos - um mapa para entender a desigualdade no Brasil, livro que lança este mês pela Zahar, selo do grupo Companhia das Letras, na missão de revirar causas e propor saídas para superar o que, para muitos, é a maior chaga da economia nacional.

Nery defende que haja aumento de impostos sobre os mais ricos – incluindo alíquotas sobre grandes fortunas –, maior tributação sobre propriedades rurais e estímulo ao adensamento populacional urbano, além de foco na construção de creches e emprego massivo para mulheres.

(Hoje), Quem ganha mais, paga menos. Então, só fazer os mais ricos pagarem os 27,5% como os demais já seria um grande avanço. Mas mesmo aí há resistência; uma proposta como a de tributação de lucros e dividendos já abre os portões da “coitadolândia”, para usar uma expressão das redes”, diz Nery em entrevista ao Estadão.

O economista também entende que o País precisará passar por uma nova reforma da Previdência – desta vez com foco em militares, forças de segurança pública e servidores estaduais. “Ainda há lugares com delegadas se aposentando com 40 e poucos anos, ganhando o teto remuneratório, de forma vitalícia. É uma situação meio insuportável, se estamos ainda lutando para vencer a fome e temos dificuldades fiscais.”

No ritmo atual, explica Nery citando dados da OCDE, o Brasil precisará de nove gerações para que o filho de uma família em situação de vulnerabilidade alcance a renda familiar média nacional. Em países com maior mobilidade intergeracional, a estimativa pode cair para duas gerações.

O economista defende que haja maior transparência com os gastos tributários de pessoas físicas e jurídicas. Ele lembra que o governo é obrigado a abrir os seus dados em relação aos gastos diretos, mas que existem poucas informações sobre as despesas indiretas, como renúncias fiscais. “Os R$ 50 recebidos por uma gestante pobre no Bolsa Família é considerado informação de interesse público, mas R$ 50 mil recebidos de renúncia fiscal, não. É mais difícil reformar se a sociedade não conhece estes números”, aponta.

A seguir, os principais trechos da entrevista.

Pedro Nery defende que haja maior transparência com as renúncias tributárias.  Foto: Cicero Bezerra

A ideia do livro foi visitar oito localidades representativas da desigualdade. Como foi sair das planilhas e presenciar isso de perto?

Quando ainda era colunista do Estadão, houve os 130 anos da República, em 2019, e se organizou quais seriam os grandes temas do País. Combate à desigualdade aparecia no topo. Então, eu vejo que na esquerda e na direita existe preocupação com esse assunto. A inquietação de sair de Brasília e ir atrás desses lugares veio um pouco do isolamento da pandemia – esse é um livro que começou a ser escrito em 2020. Teve o empurrão de um livro em inglês chamado Extreme Economies, de Richard Davies, com a lógica de um economista que vai para lugares extremos, ver o que se pode pegar daquela realidade. Isso e pela condição de ser servidor em Brasília, de morar em um lugar privilegiado, de mexer tanto com municípios, índices na planilha, sem necessariamente estar lá.

Que lugares foram esses?

Teve um lugar com o maior desenvolvimento humano: Pinheiros, na zona oeste de São Paulo; o pior, que seria Ipixuna, na fronteira entre o Acre e o Amazonas. O bairro que tem maior expectativa de vida, que poderia ser o Morumbi, também em São Paulo. O bairro em que se vive menos, que é Mocambinho, na periferia de Teresina. A unidade mais rica da Federação, que é o DF; a mais pobre, que é o Maranhão. E aí, dois extremos sobre apropriação do gasto público: a cidade com mais aposentados, que é o município de Nova Petrópolis, na Serra Gaúcha, e o município com mais Bolsa Família, que é Severiano Melo, no Rio Grande do Norte.

Um dos pontos defendidos no livro para reduzir desigualdade é o do adensamento populacional urbano, uma ideia que de certa forma vai na contramão do senso comum. Como é essa proposta?

É um tema fundamental, que tem ganhado muita atenção lá fora, em parte pela necessidade de combater a mudança climática e reduzir a queima do combustível fóssil. Diminuir distâncias nas cidades interessa também para que os mais pobres estejam mais próximos de oportunidades, principalmente de trabalho. Não adianta se preocupar tanto com qualificação profissional, legislação trabalhista, desoneração ou redução de juros se as pessoas estão fisicamente longe dos empregos e atividades de maior produtividade. Há outras vantagens em adensar, mas esta talvez seja a principal. Precisamos aproximar ricos e pobres, também fisicamente.

No campo tributário, seus estudos apontam que o Brasil precisa ter uma taxação sobre grandes fortunas, além de aumentar o tributo sobre heranças. Há viabilidade política para isso?

Há muitas propostas no Congresso Nacional e uma pequena mudança já feita na PEC (Proposta de Emenda Constitucional) da reforma tributária. A questão das heranças é mais consensual entre economistas do que o imposto sobre grandes fortunas. Tributar melhor heranças é importante para o próprio crescimento. É um desperdício concentrar recursos em quem não é necessariamente o mais dedicado, o mais talentoso, enquanto há um potencial enorme em capital humano com crianças pobres passando privações básicas.

Isso quer dizer que a reforma do Imposto de Renda já deveria vir com uma nova alíquota, para uma nova faixa de renda?

Talvez seja suficiente combater os benefícios tributários, o que aumenta a alíquota efetiva – isto é, a alíquota paga na prática. Isso pode ser feito sem novas faixas. A Constituição exige um IR progressivo, mas o nosso é, a partir de certo ponto, regressivo. Quem ganha mais, paga menos. Então, só fazer os mais ricos pagarem os 27,5% como os demais já seria um grande avanço. Mas mesmo aí há resistência; uma proposta como a de tributação de lucros e dividendos já abre os portões da “coitadolândia”, para usar uma expressão das redes.

O sistema tributário brasileiro é descrito como uma verdadeira indústria da desigualdade. Por que isso acontece?

Na comparação internacional, o Brasil tributa muito consumo e trabalho, e pouco a renda e o patrimônio. A questão do consumo está sendo encaminhada pela PEC da reforma tributária do ano passado, e sua regulamentação, este ano. A questão do trabalho poderia ser casada com a da renda. Como um CEO de uma grande empresa falou ao Estadão, ele paga menos imposto que a operadora de caixa da sua loja.

O sr. defende maior transparência sobre as renúncias tributárias. Como o Estado brasileiro poderia se modernizar nesse sentido?

A Lei de Acesso à Informação já obriga que se divulguem quaisquer repasses ou transferências de recursos financeiros do poder público. Mas entendemos que isso só abrange o gasto direto, não o gasto indireto – o gasto tributário. Então, os R$ 50 recebidos por uma gestante pobre no Bolsa Família é considerado informação de interesse público, mas R$ 50 mil recebidos de renúncia fiscal, não. É mais difícil reformar se a sociedade não conhece estes números.

O Tributo Territorial Rural é apontado como tendo baixa arrecadação, de menos de R$ 2 bilhões. Por que esse imposto arrecada tão pouco e o que poderia ser feito?

É o “imposto dos dez reais”, como ironicamente é conhecido por juntar pouco dinheiro, apesar da pujança do agro. O valor das propriedades é baseado em autodeclaração. Os parâmetros não são atualizados há décadas e a cobrança fica com os municípios, que podem ser politicamente sensíveis aos interesses dos produtores rurais.

O mesmo vale para o IPTU, para o qual o sr. também defende alíquotas maiores?

Não é novidade que o IPTU pode ser progressivo, no valor e no tempo. É um instrumento importante no combate à desigualdade, não apenas porque é um tributo que alcança parte da riqueza dos mais ricos, mas porque pode ser usado como estímulo para o adensamento das cidades. É uma ferramenta fundamental para os municípios, até porque pode financiar uma política que é das mais relevantes para o combate às desigualdades e tem competência municipal, que é a de creches.

Por quê?

Creche é infraestrutura para desenvolvimento de capital humano. A gente vê que no Brasil há municípios como Ipixuna, no Amazonas, em que não existe creche – nem pública, nem privada. Cito no livro uma frase da Melinda Gates, filantropa, ex-esposa do Bill Gates, de que a creche é tão necessária quanto cabos de fibra óptica ou rodovias. A creche vai permitir não só que a criança seja bem cuidada, mas que a mãe possa trabalhar.

E a Previdência? O Brasil precisa de uma nova reforma?

Para o combate à desigualdade, agora é importante focar nos militares e no funcionalismo, principalmente o estadual. Ainda há lugares com delegadas se aposentando com 40 e poucos anos, ganhando o teto remuneratório, de forma vitalícia. É uma situação meio insuportável, se estamos ainda lutando pra vencer a fome e temos dificuldades fiscais. Muito se questiona programas como o Bolsa Família, mas a verdade é que o Bolsa Família deve ser a régua de efetividade em relação ao resto do gasto. Tem um histórico de custo-efetividade bom. Não deve ser alvo, mas sim o parâmetro para o ajuste em outros gastos.

Existe espaço para discutir isso internamente no governo?

Não tenho como responder por nenhuma discussão interna, mas existem projetos no Congresso. A reforma da Previdência dos militares, do ponto vista formal, é relativamente mais simples, porque sequer exige PEC. O mesmo vale para outras fontes de pressão no déficit (nas contas públicas) que beneficiam a elite – avaliação de servidores públicos ou regulamentação do teto remuneratório são temas para simples lei, não emenda constitucional.

De todas as propostas do livro, quais as mais viáveis politicamente, pelo seu olhar de dentro, já que trabalha na vice-Presidência da República?

Eu acho que o “mato alto”, a parte mais fácil, é o que não envolve fiscal, como agendas de regulação. Me parece que o Brasil está para começar a dar mais importância para a pauta de ampliação de oferta de residências nas áreas mais prósperas das grandes cidades. Do ponto de vista federal, isso envolve alguma alteração em normas gerais como o Estatuto das Cidades; e, do ponto de vista municipal, uma nova visão sobre os planos diretores, que precisam ter como norte o custo e tempo que os pobres precisam para chegar às oportunidades.

Que propostas precisariam de maior entendimento por parte do próprio governo e do PT?

Acho que a postura de ambos é inequívoca na defesa da redução da desigualdade, e “pobre no Orçamento e rico no IR” é um bom mantra. Não à toa, a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) da última semana mostrou a renovação do (índice de) Gini na mínima histórica, a pobreza extrema no menor patamar já registrado, um crescimento forte da renda dos mais pobres. Há ainda uma pauta de educação fundamental sendo tocada, como o novo ensino médio, as escolas em tempo integral, o Pé-de-Meia. E tem a primeira infância – é sabido que o governo tem se debruçado e tem carinho pelo tema, há um debate público no Conselhão (CDESS) para subsidiar a aguardada Política Nacional para a Primeira Infância. E é essencial, porque, no fundo, o que precisamos também é de um PAC do Capital Humano.

Quando teremos números mais aceitáveis de desigualdade?

Se a gente olha a tendência, vai demorar muito. Em todos os países que a OCDE pesquisa, no Brasil, vai demorar nove gerações para um filho de uma família mais pobre chegar à renda média nacional; enquanto, em outros países, isso leva de duas a três gerações. A gente tem um trabalho muito grande para ser feito, e um pouco da ideia do (livro) Extremos é discutir política pública para todos esses lugares.

BRASÍLIA – Depois de anos debruçado sobre planilhas de dados como consultor legislativo do Senado Federal, o economista Pedro Fernando Nery, hoje diretor de Assuntos Econômicos e Sociais da Vice-Presidência da República, decidiu visitar oito localidades que mais escancaram a desigualdade social do País.

O resultado está em Extremos - um mapa para entender a desigualdade no Brasil, livro que lança este mês pela Zahar, selo do grupo Companhia das Letras, na missão de revirar causas e propor saídas para superar o que, para muitos, é a maior chaga da economia nacional.

Nery defende que haja aumento de impostos sobre os mais ricos – incluindo alíquotas sobre grandes fortunas –, maior tributação sobre propriedades rurais e estímulo ao adensamento populacional urbano, além de foco na construção de creches e emprego massivo para mulheres.

(Hoje), Quem ganha mais, paga menos. Então, só fazer os mais ricos pagarem os 27,5% como os demais já seria um grande avanço. Mas mesmo aí há resistência; uma proposta como a de tributação de lucros e dividendos já abre os portões da “coitadolândia”, para usar uma expressão das redes”, diz Nery em entrevista ao Estadão.

O economista também entende que o País precisará passar por uma nova reforma da Previdência – desta vez com foco em militares, forças de segurança pública e servidores estaduais. “Ainda há lugares com delegadas se aposentando com 40 e poucos anos, ganhando o teto remuneratório, de forma vitalícia. É uma situação meio insuportável, se estamos ainda lutando para vencer a fome e temos dificuldades fiscais.”

No ritmo atual, explica Nery citando dados da OCDE, o Brasil precisará de nove gerações para que o filho de uma família em situação de vulnerabilidade alcance a renda familiar média nacional. Em países com maior mobilidade intergeracional, a estimativa pode cair para duas gerações.

O economista defende que haja maior transparência com os gastos tributários de pessoas físicas e jurídicas. Ele lembra que o governo é obrigado a abrir os seus dados em relação aos gastos diretos, mas que existem poucas informações sobre as despesas indiretas, como renúncias fiscais. “Os R$ 50 recebidos por uma gestante pobre no Bolsa Família é considerado informação de interesse público, mas R$ 50 mil recebidos de renúncia fiscal, não. É mais difícil reformar se a sociedade não conhece estes números”, aponta.

A seguir, os principais trechos da entrevista.

Pedro Nery defende que haja maior transparência com as renúncias tributárias.  Foto: Cicero Bezerra

A ideia do livro foi visitar oito localidades representativas da desigualdade. Como foi sair das planilhas e presenciar isso de perto?

Quando ainda era colunista do Estadão, houve os 130 anos da República, em 2019, e se organizou quais seriam os grandes temas do País. Combate à desigualdade aparecia no topo. Então, eu vejo que na esquerda e na direita existe preocupação com esse assunto. A inquietação de sair de Brasília e ir atrás desses lugares veio um pouco do isolamento da pandemia – esse é um livro que começou a ser escrito em 2020. Teve o empurrão de um livro em inglês chamado Extreme Economies, de Richard Davies, com a lógica de um economista que vai para lugares extremos, ver o que se pode pegar daquela realidade. Isso e pela condição de ser servidor em Brasília, de morar em um lugar privilegiado, de mexer tanto com municípios, índices na planilha, sem necessariamente estar lá.

Que lugares foram esses?

Teve um lugar com o maior desenvolvimento humano: Pinheiros, na zona oeste de São Paulo; o pior, que seria Ipixuna, na fronteira entre o Acre e o Amazonas. O bairro que tem maior expectativa de vida, que poderia ser o Morumbi, também em São Paulo. O bairro em que se vive menos, que é Mocambinho, na periferia de Teresina. A unidade mais rica da Federação, que é o DF; a mais pobre, que é o Maranhão. E aí, dois extremos sobre apropriação do gasto público: a cidade com mais aposentados, que é o município de Nova Petrópolis, na Serra Gaúcha, e o município com mais Bolsa Família, que é Severiano Melo, no Rio Grande do Norte.

Um dos pontos defendidos no livro para reduzir desigualdade é o do adensamento populacional urbano, uma ideia que de certa forma vai na contramão do senso comum. Como é essa proposta?

É um tema fundamental, que tem ganhado muita atenção lá fora, em parte pela necessidade de combater a mudança climática e reduzir a queima do combustível fóssil. Diminuir distâncias nas cidades interessa também para que os mais pobres estejam mais próximos de oportunidades, principalmente de trabalho. Não adianta se preocupar tanto com qualificação profissional, legislação trabalhista, desoneração ou redução de juros se as pessoas estão fisicamente longe dos empregos e atividades de maior produtividade. Há outras vantagens em adensar, mas esta talvez seja a principal. Precisamos aproximar ricos e pobres, também fisicamente.

No campo tributário, seus estudos apontam que o Brasil precisa ter uma taxação sobre grandes fortunas, além de aumentar o tributo sobre heranças. Há viabilidade política para isso?

Há muitas propostas no Congresso Nacional e uma pequena mudança já feita na PEC (Proposta de Emenda Constitucional) da reforma tributária. A questão das heranças é mais consensual entre economistas do que o imposto sobre grandes fortunas. Tributar melhor heranças é importante para o próprio crescimento. É um desperdício concentrar recursos em quem não é necessariamente o mais dedicado, o mais talentoso, enquanto há um potencial enorme em capital humano com crianças pobres passando privações básicas.

Isso quer dizer que a reforma do Imposto de Renda já deveria vir com uma nova alíquota, para uma nova faixa de renda?

Talvez seja suficiente combater os benefícios tributários, o que aumenta a alíquota efetiva – isto é, a alíquota paga na prática. Isso pode ser feito sem novas faixas. A Constituição exige um IR progressivo, mas o nosso é, a partir de certo ponto, regressivo. Quem ganha mais, paga menos. Então, só fazer os mais ricos pagarem os 27,5% como os demais já seria um grande avanço. Mas mesmo aí há resistência; uma proposta como a de tributação de lucros e dividendos já abre os portões da “coitadolândia”, para usar uma expressão das redes.

O sistema tributário brasileiro é descrito como uma verdadeira indústria da desigualdade. Por que isso acontece?

Na comparação internacional, o Brasil tributa muito consumo e trabalho, e pouco a renda e o patrimônio. A questão do consumo está sendo encaminhada pela PEC da reforma tributária do ano passado, e sua regulamentação, este ano. A questão do trabalho poderia ser casada com a da renda. Como um CEO de uma grande empresa falou ao Estadão, ele paga menos imposto que a operadora de caixa da sua loja.

O sr. defende maior transparência sobre as renúncias tributárias. Como o Estado brasileiro poderia se modernizar nesse sentido?

A Lei de Acesso à Informação já obriga que se divulguem quaisquer repasses ou transferências de recursos financeiros do poder público. Mas entendemos que isso só abrange o gasto direto, não o gasto indireto – o gasto tributário. Então, os R$ 50 recebidos por uma gestante pobre no Bolsa Família é considerado informação de interesse público, mas R$ 50 mil recebidos de renúncia fiscal, não. É mais difícil reformar se a sociedade não conhece estes números.

O Tributo Territorial Rural é apontado como tendo baixa arrecadação, de menos de R$ 2 bilhões. Por que esse imposto arrecada tão pouco e o que poderia ser feito?

É o “imposto dos dez reais”, como ironicamente é conhecido por juntar pouco dinheiro, apesar da pujança do agro. O valor das propriedades é baseado em autodeclaração. Os parâmetros não são atualizados há décadas e a cobrança fica com os municípios, que podem ser politicamente sensíveis aos interesses dos produtores rurais.

O mesmo vale para o IPTU, para o qual o sr. também defende alíquotas maiores?

Não é novidade que o IPTU pode ser progressivo, no valor e no tempo. É um instrumento importante no combate à desigualdade, não apenas porque é um tributo que alcança parte da riqueza dos mais ricos, mas porque pode ser usado como estímulo para o adensamento das cidades. É uma ferramenta fundamental para os municípios, até porque pode financiar uma política que é das mais relevantes para o combate às desigualdades e tem competência municipal, que é a de creches.

Por quê?

Creche é infraestrutura para desenvolvimento de capital humano. A gente vê que no Brasil há municípios como Ipixuna, no Amazonas, em que não existe creche – nem pública, nem privada. Cito no livro uma frase da Melinda Gates, filantropa, ex-esposa do Bill Gates, de que a creche é tão necessária quanto cabos de fibra óptica ou rodovias. A creche vai permitir não só que a criança seja bem cuidada, mas que a mãe possa trabalhar.

E a Previdência? O Brasil precisa de uma nova reforma?

Para o combate à desigualdade, agora é importante focar nos militares e no funcionalismo, principalmente o estadual. Ainda há lugares com delegadas se aposentando com 40 e poucos anos, ganhando o teto remuneratório, de forma vitalícia. É uma situação meio insuportável, se estamos ainda lutando pra vencer a fome e temos dificuldades fiscais. Muito se questiona programas como o Bolsa Família, mas a verdade é que o Bolsa Família deve ser a régua de efetividade em relação ao resto do gasto. Tem um histórico de custo-efetividade bom. Não deve ser alvo, mas sim o parâmetro para o ajuste em outros gastos.

Existe espaço para discutir isso internamente no governo?

Não tenho como responder por nenhuma discussão interna, mas existem projetos no Congresso. A reforma da Previdência dos militares, do ponto vista formal, é relativamente mais simples, porque sequer exige PEC. O mesmo vale para outras fontes de pressão no déficit (nas contas públicas) que beneficiam a elite – avaliação de servidores públicos ou regulamentação do teto remuneratório são temas para simples lei, não emenda constitucional.

De todas as propostas do livro, quais as mais viáveis politicamente, pelo seu olhar de dentro, já que trabalha na vice-Presidência da República?

Eu acho que o “mato alto”, a parte mais fácil, é o que não envolve fiscal, como agendas de regulação. Me parece que o Brasil está para começar a dar mais importância para a pauta de ampliação de oferta de residências nas áreas mais prósperas das grandes cidades. Do ponto de vista federal, isso envolve alguma alteração em normas gerais como o Estatuto das Cidades; e, do ponto de vista municipal, uma nova visão sobre os planos diretores, que precisam ter como norte o custo e tempo que os pobres precisam para chegar às oportunidades.

Que propostas precisariam de maior entendimento por parte do próprio governo e do PT?

Acho que a postura de ambos é inequívoca na defesa da redução da desigualdade, e “pobre no Orçamento e rico no IR” é um bom mantra. Não à toa, a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) da última semana mostrou a renovação do (índice de) Gini na mínima histórica, a pobreza extrema no menor patamar já registrado, um crescimento forte da renda dos mais pobres. Há ainda uma pauta de educação fundamental sendo tocada, como o novo ensino médio, as escolas em tempo integral, o Pé-de-Meia. E tem a primeira infância – é sabido que o governo tem se debruçado e tem carinho pelo tema, há um debate público no Conselhão (CDESS) para subsidiar a aguardada Política Nacional para a Primeira Infância. E é essencial, porque, no fundo, o que precisamos também é de um PAC do Capital Humano.

Quando teremos números mais aceitáveis de desigualdade?

Se a gente olha a tendência, vai demorar muito. Em todos os países que a OCDE pesquisa, no Brasil, vai demorar nove gerações para um filho de uma família mais pobre chegar à renda média nacional; enquanto, em outros países, isso leva de duas a três gerações. A gente tem um trabalho muito grande para ser feito, e um pouco da ideia do (livro) Extremos é discutir política pública para todos esses lugares.

Entrevista por Alvaro Gribel

Repórter especial e colunista do Estadão em Brasília. Há mais de 15 anos acompanha os principais assuntos macroeconômicos no Brasil e no mundo. Foi colunista e coordenador de economia no Globo.

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