Um dos maiores escritórios de advocacia da América Latina, o Pinheiro Neto Advogados passa neste ano por uma mudança de gestão. O advogado Alexandre Bertoldi, que durante os últimos 16 anos foi o sócio gestor da banca de advogados, passou o bastão para Fernando Alves Meira, de 55 anos, que assumiu o dia a dia do comando do escritório, hoje com 961 funcionários. Em entrevista ao Estadão, os dois advogados falam sobre os desafios atuais da profissão, com a perspectiva de maior uso de inteligência artificial. “Talvez a inteligência artificial seja de fato o que mais pode transformar essa indústria”, afirma Bertoldi.
Ele seguirá na casa onde, assim como Meira, está desde os tempos de estagiário. Bertoldi será chairman, presidente do comitê diretivo. Uma das principais diferenças na condução do escritório hoje, em comparação com sua fase na gestão, segundo o advogado, é o risco de reputação. “O mundo é mais cruel e imediatista na forma de julgar, não há o benefício da dúvida”, diz.
À frente do escritório que acaba sendo um termômetro da economia do País e está por trás de operações de fusões, aquisições, quebras e reestruturações de grandes empresas, Fernando Meira afirma que, no cenário político e econômico, “o pior já passou”. “Depois que o governo apresentou um arcabouço fiscal, deu um direcionamento”, diz.
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A troca sela a mudança que começou há dois anos, quando ambos deram início ao processo de transição no comando do escritório. Meira e Bertoldi chegaram ao Pinheiro Neto quando ainda estudavam direito no Largo de São Francisco e, como a maior parte dos demais sócios, fizeram a trajetória profissional dentro do escritório que ocupa o imponente prédio na Marginal Pinheiros que já foi sede do Banco Santos.
O que muda com a troca de comando na gestão do escritório?
Alexandre Bertoldi: Essa transição começou há cinco anos. Eu sempre falei que iria sair do cargo com 60 anos. Queríamos que o processo fosse quase de validação de um nome que fosse de escolha natural de todos. O Fernando foi eleito há dois anos e meio. Passamos dois anos juntos e, a partir de agora, ele fica sozinho (no cargo). Nós pensamos muito igual para as coisas que queremos para o escritório. Temos o mesmo background (os dois são da área de fusões e aquisições - M&A, na sigla em inglês), o mesmo jeito de ser. Ele é mais metódico, anota tudo, eu sou mais intuitivo, de reagir mais rápido. A verdade é que ele não queria ser (CEO). Eu falei: “mas é uma missão”. É difícil achar a pessoa, porque é preciso ter respeito interno e externo.
Por que não queria?
Fernando Meira: Primeiro, pela situação do escritório, que é muito bem posicionado. Você se questiona: isso na minha mão vai continuar indo para a direção necessária ou não? Eu não fui treinado para liderar o escritório, sempre fui treinado para ser um advogado de M&A. A competência para dirigir o escritório é muito diferente, porque é uma atividade eminentemente política. Aqui tudo é negociado, precisa haver consenso. Mais de 90% dos sócios começaram como estagiários no escritório. Nunca fizemos um sócio lateralmente, que venha de fora já para a sociedade. Vou substituir alguém que é carismático, que está há 16 anos nessa posição, e que trouxe o escritório para um porto seguro. E, olhando para frente, vejo um cenário que tem mais incerteza. Estão surgindo mais ameaças com as novas agendas. As coisas têm mais pressa hoje em dia, é tudo mais imediato.
O que é esse cenário de mais incerteza e de ameaças que o sr. menciona?
Meira: Hoje, discute-se muito sobre inteligência artificial. Traz vantagens, traz segurança, traz velocidade, ganho de produtividade, mas traz outras questões como privacidade, confidencialidade de dados. Como a gente protege e valoriza a nossa base de dados? Como isso interfere na organização do escritório? Vai reduzir a oferta de posições para advogados? Somos perdedores ou ganhadores nessa nova realidade?
Qual seria a sua resposta?
Meira: Eu não tenho a resposta.
O escritório usa atualmente inteligência artificial?
Meira: Muito pouco. Estamos fazendo uso em jurimetria, que é uma varredura nos tribunais para analisar os precedentes e saber, do ponto de vista da estatística, quais são as tendências, como aquele juiz julga aquele determinado assunto, para poder usar isso e desenvolver uma estratégia. Fizemos uma pesquisa na parte tributária e nenhuma dessas ferramentas está em um nível que garanta um porcentual (de acerto) tão elevado para que possamos nos socorrer delas, mas isso vai acontecer.
Qual a política do escritório para utilização do chat GPT?
Meira: Impedir (o uso) não dá, mas aprovamos uma política de uso com restrições.
Bertoldi: Há 30 anos, um cara chamado (Richard) Susskind escreveu um livro sobre o fim da profissão. Ele fazia um monte de previsões e, naquela hora, você diria “putz, acabou”. E não aconteceu nada. Vinha com essa questão da globalização, já foi moda a história de escritórios na Índia, de você ter provedores de serviço. Se você for ver, a profissão é mais ou menos a mesma há 120 anos. Não é diferente, fundamentalmente, do que era no começo do século em Londres ou em Nova York. Quando uma coisa está igual à tanto tempo, você fala “bom, está à beira de uma disrupção”. Talvez a inteligência artificial seja de fato o que mais pode transformar essa indústria. Temos de estar entre os ganhadores, porque não é que a profissão vai desaparecer, mas certamente haverá alguma mudança.
Quais tipos de restrições foram estabelecidas para o ChatGPT no escritório?
Meira: Não se permite pegar um documento ou informação de um cliente ou do escritório para fazer um resumo no ChatGPT, porque na hora que você colocou aquele documento ali, a informação se tornou acessível. O que estamos olhando é como montar um ChatGPT só com o nosso banco de dados. E já existe. As grandes corporações vão querer proteger a sua informação privilegiada, mas ter essa ferramenta para ter velocidade.
Bertoldi: Imagine que alguém faça uma petição no ChatGPT. Tem o risco de ser plágio ou ainda o cliente não ver valor algum. Sabemos que tem uma geração super nova, super versada em computador, e querer proibir é impossível, mas temos de regular.
O que é a cultura e a identidade do Pinheiro Neto, que não é a dos demais?
Meira: É uma história, conduzida ao longo dos anos, sempre no modelo evolutivo. Investimento verdadeiro nas pessoas, de retenção das pessoas, de muita transparência. Pensamos na analogia de uma escada rolante. Tem gente chegando e tem gente saindo pela aposentadoria. Essa escada rolante tem de estar sempre girando, fazemos essa trajetória e queremos ter um escritório para outras gerações melhor do que o que a gente pegou.
Bertoldi: Temos 250 pessoas com mais de 20 anos aqui. Talvez seja um dos poucos, senão o único escritório, onde todos os sócios sabem exatamente quanto todo mundo ganha. Não temos nenhuma fórmula discricionária de atribuição de dividendos. É tudo aberto. E muita gente aqui que poderia ser sócio deixou de ser porque era arrogante. Ele (Meira) e eu, que somos dos mais sêniores, temos 1,1% das cotas do escritório. É super pulverizado. Ninguém quer maximizar (lucro). Isso aqui não é uma corrida de 100 metros, é uma maratona.
Qual a maior diferença do escritório hoje, em relação ao que você pegou 16 anos atrás?
Bertoldi: A maior diferença hoje não está dentro do escritório, está fora. O mundo é mais cruel e imediatista na forma de julgar, não há o benefício da dúvida, há muito menos empatia. Nenhum deslize é permitido para alguém que está em uma posição como a nossa. O maior risco do ponto de vista do negócio, hoje, é a perda da reputação, que ocorre muito mais rápido do que antes. As coisas viralizam, vira uma bola de neve. Internamente, a diferença é que temos um escritório bastante mais diverso. E as pessoas hoje às vezes tem outros anseios e são mais imediatistas. Nós (geração) tínhamos mais paciência. Hoje, sentimos os mais novos já querendo resultados para amanhã. Como temos um plano de carreira longo, o desafio é vender que o modelo ainda é bom e funciona.
Como é a diversidade no escritório, no topo e na base?
Bertoldi: Uns 20% dos sócios são mulheres. E temos só um sócio que se autodeclara negro. (O Pinheiro Neto tem 117 sócios.) Para baixo, já temos muito mais, estão chegando. Fizemos um trabalho para aumentar a diversidade, principalmente no tocante às mulheres. É mais fácil a questão de gênero do que de raça. Mas está melhorando. Todo ano vamos às faculdades e procuramos aumentar a diversidade no estágio. Não quero falar “cota”, mas reservamos um espaço para pessoas negras em cada contratação.
Meira: Estamos longe de onde gostaríamos, mas estamos felizes com o que fizemos de progresso. Estamos olhando para discussão de inclusão e desenvolvimento de pessoas com seriedade. Nosso negócio é dependente de talento e talento não tem raça, gênero, orientação. O desafio é contratar, qualificar e reter essas pessoas, e fazer com que se sintam bem. Elas chegam em um ambiente que em um primeiro momento é hostil e essa realidade vai mudar com o tempo. Não tem bala de prata que faça essa mudança de uma hora para outra.
Vemos que há uma busca na sociedade por mais equilíbrio entre vida pessoal e profissional. Os escritórios de advocacia são conhecidos por terem um ritmo de trabalho bastante intenso, para cumprir prazos apertados. Estagiários de grandes escritórios que fizeram críticas públicas a isso, nas redes sociais, nos últimos anos. Como o Pinheiro Neto tem lidado com isso?
Meira: Esse equilíbrio depende não do escritório, mas do ecossistema. Nós recebemos demandas dos nossos clientes. Clientes exigentes, que têm urgências, que precisam às vezes para amanhã. Não tem alternativa a não ser trabalhar em um horário que não é o ideal. Mas isso é constante? Claro que não. O tipo de atuação depende muito da sua prática, na prática transacional (M&A) há situações nas quais a agenda é muito mais imediata.
Bertoldi: O que temos de evitar é o excesso, não cobrar para amanhã quando não é necessário ser para amanhã.
Os grandes escritórios de advocacia são um termômetro do que acontece na economia do País. Qual é sua percepção sobre a situação no mercado de capitais, por exemplo?
Meira: Está voltando agora com as ofertas subsequentes. As empresas que já estão abertas, que estão com estrutura de capital estressada e que não querem refinanciar a dívida estão conseguindo se beneficiar de uma oportunidade de janela que se abriu. Vemos CVC, Hidrovias do Brasil. Há várias empresas que estão olhando para o mercado agora e falando “abriu”.
Qual sua avaliação sobre o início do governo Lula na economia?
Meira: O começo de governo foi muito atribulado, tinha muito ruído. Havia uma expectativa muito alta e algumas sinalizações fizeram com que o mercado reagisse com cautela, como o ataque à independência do Banco Central, o questionamento sobre baixar taxa de juros meio à fórceps e a preocupação com efeito disso em inflação, o questionamento sobre disciplina fiscal, reforma na lei das estatais, teve o 8 de janeiro. Tudo isso passou. Depois que o governo apresentou um arcabouço fiscal, deu um direcionamento. Esse ano vamos ter uma super safra, os preços das commodities ainda estão em um patamar elevado. O Haddad está crescendo no cargo, está com mais apoio. O governo passou a fazer menos barulho. A perspectiva é que em algum momento os juros vão começar a cair em agosto, setembro, com isso, o mercado se antecipa e começa a atrair capital de fora.
O aumento de interesse em investir no País já é percebido dentro do escritório?
Meira: Ainda não sentimos, como sentíamos no passado, uma onda de novos clientes estrangeiros ou novos clientes brasileiros com a perspectiva de que chegou a hora de destravar investimento, de que estão com confiança de fazer e acontecer. Mas como o cenário está melhorando e o Brasil tem vantagens competitivas (na comparação com outros países), é uma questão de tempo. Se as empresas tiverem acesso a capital via mercado de capitais, vão colocar esse capital para trabalhar, com aquisições, com crescimento orgânico. As oportunidades que estão colocadas e vemos: transformação energética, energia limpa, hidrogênio, crédito de carbono. Temos uma visão otimista, achamos que o pior já passou. O segundo semestre do ano passado foi muito parado nas práticas transacionais. O primeiro deste ano também teve poucas transações de M&A, que foram transações mais de necessidade do que de oportunidade. Mas com o cenário mais favorável é possível atrair mais capital. Se a gente construir pontes, que acho que é o que o Haddad está tentando fazer, haverá um cenário bem positivo para frente.
Nos últimos anos vimos a descrença em instituições atingir a imagem do STF e dos ministros do STF. Os clientes trazem isso para o escritório?
Meira: Trazem. O tema recorrente quando conversamos com investidor é: segurança jurídica. Alguns eventos reforçaram a sensação de que tudo pode mudar. Quando as instituições foram ameaçadas houve um ativismo grande e agora o desafio é trazer o pêndulo para o eixo de novo. Segurança jurídica e estabilidade são essenciais para dar mais credibilidade e mais confiança ao País. Nós passamos por tempos muito turbulentos. O Supremo deveria fazer essa reflexão, com menos julgamentos monocráticas, menos exposição midiática.