BRASÍLIA – Líder do governo no Congresso, o senador Randolfe Rodrigues (PT-AP) afirma que o Executivo não pode ser refém nem de congressistas nem de agentes do mercado financeiro. Ao comentar o início de tramitação dificultada do pacote fiscal apresentado pelo ministro Fernando Haddad para equilibrar as contas públicas, que enfrentou críticas de analistas e foi paralisado pelo não pagamento de emendas parlamentares, Randolfe afirma que a situação fiscal é uma herança do governo Jair Bolsonaro e que nada justifica o “mau humor” do mercado com o pacote.
“Se entregou a governança da política econômica totalmente ao mercado. E o governo não pode ficar à mercê nem de um agente nem de outro. Não é um antagonismo com o mercado, mas o governo não pode ser refém”, afirmou. “Nada justifica algumas coisas, para além da análise econômica. Se criou um viés ideológico expressado pelo mercado. E isso foi legado pelo governo anterior.”
Em entrevista ao Estadão, Randolfe esmiuça a estratégia do governo para tentar frear resistências ao plano de Haddad no Congresso. Como mostrou reportagem publicada nesta quinta-feira, 5, deputados do PT veem problemas na proposta que restringe o acesso ao BPC (aposentadoria concedida a idosos de baixa renda e deficientes).
Neste momento, há dois projetos de lei em tramitação sob regime de urgência no plenário da Câmara dos Deputados - que ainda dependerão de aprovação do Senado - e uma PEC (Proposta de Emenda Constitucional) na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara.
Randolfe avalia que os dois projetos devem ser aprovados ainda neste ano e prevê que a PEC precisará de mais tempo.“Se nós conseguirmos aprovar nestas duas semanas as duas medidas, não há razoabilidade para mantermos um dólar num patamar de R$ 6 e, naturalmente, teremos uma redução (da taxa de câmbio)”, afirma.
O senador diz ouvir relatos, no Congresso, de parlamentares interessados em apertar o pacote fiscal apresentado pelo governo, considerado insuficiente por analistas econômicos para dar credibilidade ao plano do governo Lula de equilibrar as contas do governo.
Ele afirma que, para o Palácio do Planalto, há limites: “Não tem problema em apertar, desde que não retire nenhum direito. Pode ajustar, apertar mais? Desde que não retire nenhum direito de ninguém, pode. Pode flexibilizar mais? Desde que não rompa com o princípio da equidade e não tenha distorções, pode. Nós temos que manter um patamar de uma economia que seja de R$ 300 bilhões ao longo desse período (até 2030).”
O parlamentar atribui a um “problema de comunicação” a incerteza provocada pelo anúncio simultâneo da proposta de isentar o Imposto de Renda de pessoas que recebem até R$ 5 mil. “Se esperava que o presidente da República não cumprisse uma promessa? Em paralelo ao ajuste das contas públicas, é necessário também fazer uma reforma na renda que melhore essa gravíssima distorção na distribuição de renda que nós temos”, afirma.
A seguir, os principais trechos da entrevista.
O sr. avalia que dá tempo de aprovar o pacote de corte de gastos em 2024?
Na reunião do presidente Lula com os presidentes das Casas (Câmara e Senado), a qual acompanhei, eu senti o entendimento e o compromisso de que essa agenda tem de ser votada porque é necessária. Eu creio que será possível aprovar pelo menos essas duas matérias (o projeto de lei e o projeto de lei complementar) do conjunto das medidas de contenção de gastos.
Deixar a PEC para o ano que vem é um risco? Ali estão medidas como mudanças no abono salarial, Fundeb e os supersalários...
A missão que nos foi designada foi aprovar neste ano. É um período muito curto, mas a urgência e a emergência da situação fiscal internacional, as intempéries que vamos ter, sobretudo com a posse de Donald Trump nos Estados Unidos, nos impõem a necessidade de aprovar logo. Queríamos aprovar as três medidas neste ano; mas, se conseguirmos pelo menos aprovar as duas primeiras, será uma grande vitória da equipe econômica e da coordenação política do governo.
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Existe uma dicotomia: o mercado vê o pacote como insuficiente e parlamentares reclamam de excessos de restrições, principalmente no BPC, destinado à baixa renda. O que fazer?
O governo anterior nos entregou três péssimos legados: a ameaça à democracia, a renúncia da governança orçamentária e a renúncia da condução da política econômica. A defesa da democracia e a política econômica conseguimos retomar. A condução da política econômica não pode ficar com o mercado. A recuperação da governança orçamentária tem um sentimento do Congresso de direito adquirido em relação a isso. O governo não pode ficar à mercê nem de um agente nem de outro. Não é um antagonismo com o mercado, mas o governo não pode ser refém.
O sr. vê uma reação ideológica de investidores e analistas do mercado?
Não se justifica o mau humor externado diante dos dados que foram divulgados na mesma semana. Estamos com a menor taxa de desemprego da série histórica. Teremos dois anos seguidos de crescimento da economia a mais de 3%. Estamos com menor número de cidadãos na pobreza e na extrema pobreza. Esse ambiente não dialoga com a realidade dos números da economia e com o compromisso fiscal que esse governo tem manifestado. Algumas medidas são mais ousadas do que nos governos Temer e Bolsonaro.
Como quais?
A questão dos militares.
Mas o governo ainda não apresentou a proposta de mudança na previdência dos militares.
Mas vai ter, a ideia é que o governo apresente neste ano ainda. Além disso, a indexação dos fundos constitucionais, havia uma distorção aí. O Fundo do Distrito Federal é corrigido por uma variável diferente de todos os outros fundos constitucionais dos 26 Estados da federação. Isso nunca foi tocado.
Houve problema com o anúncio do Imposto de Renda ter sido feito ao mesmo tempo?
Não há razão para se assustar com a isenção para os brasileiros que recebem até R$ 5 mil. Se esperava que o presidente da República não cumprisse uma promessa? Houve um problema de comunicação. Vazou a informação sobre a reforma da renda, mas não é uma reforma para agora. A ordem dos fatores é: primeiro o ajuste fiscal e depois, para o ano que vem, a gente discute uma reforma que será neutra, que não trará prejuízo fiscal.
O governo já está tendo de negociar pontos de ajuste no pacote?
Para ninguém é agradável o ajuste fiscal, sempre toca interesses. Eu não vi um que recebe supersalário que diga “ok gente, eu vou deixar de receber supersalário porque a sociedade brasileira quer”. Ou que “eu poderia me aposentar com 40 anos indo para a reserva, mas aceito 55 anos”. Tocar nisso - para não usar o termo “privilégio”, que talvez seja sensível, que é uma prerrogativa que alguns brasileiros têm e que outros não, o que é característico de castas -, lógico que terá reações.
Há questionamentos também sobre restrições impostas à concessão de benefícios aos mais vulneráveis. Nem a bancada do PT está convencida...
Vamos conversar ao máximo, porque em nenhum momento estamos questionando direitos. O que se tenta corrigir em relação ao BPC (Benefício de Prestação Continuada, pago a idosos e pessoas de deficiência de baixa renda) são as distorções, incluir a biometria e garantir o direito. É muito caro ao presidente Lula a manutenção dos programas sociais e ampliação de novos, como é o caso do Pé-de-Meia. Assim como aconteceu com o Bolsa Família, daqui a dez anos, eu espero encontrar um jovem que possa me dizer: eu sou da geração do Pé-de-Meia. Esse programa vai ser tão importante para as gerações futuras como o Prouni e o Bolsa Família.
Qual é o risco maior do pacote no Congresso? É ser endurecido ou desidratado?
Alguns falam em endurecer. O ideal para o governo é manter o patamar (de impacto fiscal). Não tem problema em apertar, desde que não retire nenhum direito. Temos um limite tênue. Pode ajustar, apertar mais? Desde que não retire nenhum direito de ninguém, pode. Pode flexibilizar mais? Desde que não rompa com o princípio da equidade e não tenha distorções, pode. Nós temos que manter um patamar de uma economia que seja de pelo R$ 300 bilhões ao longo desse período (de 2025 a 2030).
Não constrange o governo que uma de suas principais bandeiras, que é a política do salário mínimo, seja limitada na largada?
Recebemos um País em que há sete anos não tinha nenhuma correção do salário mínimo e, no primeiro ano, fizemos um aumento real (acima da inflação). Mas o Estado brasileiro compreendeu que tinha de ter uma regra de gastos, um arcabouço fiscal novo. Tudo tem de estar dentro dessa regra de gastos; não podemos ter exceção a essa regra. Isso não significará que não haverá correção. E as correções, combinadas à reforma do IR no ano que vem e a isenção de até R$ 5 mil, vão representar uma conquista real do poder de compra.
Mesmo com o intervalo de tempo entre a restrição ao reajuste do salário mínimo e a isenção até R$ 5 mil?
Eu acredito que a gente começa a debater no ano que vem e entraremos em 2026 com a nova regra. Eu creio que chegaremos em 2026 com o poder de compra do brasileiro muito maior do que aquele que nós recebemos em 2023. Uma promessa que o presidente Lula fez era que brasileiro ia voltar a tomar uma cervejinha no final de semana e comer picanha. Com esse conjunto, essa promessa vai ser realizada.
A alta do dólar, dos juros e da inflação pode atrapalhar esse plano?
O crescimento do dólar foi um tanto artificial. Criaram-se tumultos além do necessário. A reação do dólar não bate com os números da economia. Nós temos reservas cambiais que fazem inveja a todos os países do G-20. Não me parece muito razoável o Banco Central ter intervido mais de 50 vezes no governo anterior quando a moeda se descontrolou e não ter tido nenhuma intervenção (agora). O presidente do Banco Central atual (Roberto Campos Neto) parece que já tirou férias, que já saiu. Me parece uma medida que não combina com a independência do Banco Central.
Até Gabriel Galípolo, indicado por Lula para presidir o Banco Central, já falou que não é assim que funciona…
Também acho que não é intervir e pronto. O meu querido amigo Galípolo está certo. A independência do Banco Central é uma medida irreversível. Quando tiver irresponsabilidade fiscal, se justifica; mas está tendo pouca tolerância hoje e teve muita tolerância no passado.
O governo tem votos para aprovar o pacote?
No Senado, estou tranquilo. Na Câmara, embora o quórum para aprovar a urgência tenah sido no limite, dá tranquilidade para aprovar a lei ordinária. PEC é outra história, mas aí é outro momento e vamos continuar amadurecendo. Cada dia com sua agonia e com sua alegria. Não é diferente das eleições. Nem sempre aquele candidato que aparece na pesquisa embaixo termina derrotado. No final das contas, termina vitorioso. No momento, pode ser que não tenha os votos, mas vamos evoluir.
O governo vai usar o espaço do pacote fiscal para quê? É para gerar superávit primário ou ocupar o espaço com outras despesas, como vai ser feito com o Pé-de-Meia e a medida do Fundeb?
Fazer um pacote de contenção de gastos para fazer mais gastos no futuro está fora de cogitação. O objetivo é a estabilização das contas públicas, termos o superávit necessário para passarmos com tranquilidade o mar de tormentos da economia global que teremos nos próximos e chegarmos daqui a dois anos, ao final do mandato do presidente Lula, com a economia estável, o dólar com melhor humor, avançando para o pleno emprego e a taxa de juros em uma rota descendente.
Em que medida a decisão do ministro do STF Flávio Dino sobre as emendas parlamentares atrapalha o cronograma?
Se a liberação ocorresse antes, teríamos mais tempo para avançar, mas entendemos perfeitamente. Este é um governo que respeita a autonomia e independência dos Poderes e as razões da decisão do ministro Flávio Dino. A liberação na segunda-feira nos deu tempo hábil para atuar.
No Congresso, houve críticas às exigências do STF, que foram além do que a lei aprovada trouxe. O sr. concorda?
Há uma divergência entre a decisão do ministro Flávio Dino na segunda-feira e o que foi aprovado pelo Congresso. A posição oficial do governo é a defesa da lei complementar que foi aprovada pelo Congresso e sancionada pelo presidente Lula sem vetos. Não existe mais esse ambiente de um Poder ficar questionando as atribuições do outro. Não pode haver nenhuma dúvida do Legislativo na posição oficial do governo
O sr. fala isso porque existe muita acusação no Congresso de que o governo está fazendo jogo duplo ou combinando o jogo com o Supremo…
Que combinação desastrosa seria essa que prejudicaria o próprio governo nas votações de matérias do seu interesse nas duas semanas mais importantes para o governo. É um tipo de acusação que existia, mas que eu vi diminuir muito sobretudo a partir da ação da Advocacia-Geral da União recorrendo da decisão do ministro Flávio Dino.