BRASÍLIA - Apontado pelo mercado com um dos integrantes mais linha dura do Comitê de Política Monetária (Copom) do Banco Central, o diretor de Organização do Sistema Financeiro e Resolução do BC Renato Dias Gomes, defende que o banco não deve ter pressa na redução dos juros. Para ele, a perda de fôlego da inflação tem sido lenta em serviços e as expectativas ainda estão desancoradas (sem convergir para a meta), apesar da queda observada nesta segunda-feira, 12, no Boletim Focus, que reúne projeções do mercado para a economia.
“Não tem que ter pressa, porque um afrouxamento açodado tem custos elevados para o País no futuro. A minha posição é de cautela”, disse ao Estadão/Broadcast na primeira entrevista desde que chegou ao BC, em abril de 2022. Gomes foi um dos dois diretores que votaram a favor de um aumento da taxa Selic - atualmente em 13,75% ao ano - em setembro do ano passado.
A entrevista foi feita na véspera do início do período de silêncio antes da próxima reunião que definirá os rumos da Selic, nos dias 20 e 21, e no momento em que ganha força no mercado financeiro a expectativa de antecipação do primeiro corte da taxa básica de juros após números favoráveis do IPCA, que acumulou alta de apenas 0,23% em maio.
Na entrevista, ele antecipa medidas para enfrentar os juros elevados do rotativo do cartão de crédito -- entre elas, fazer valer a portabilidade dessas dívidas. Os juros dessa modalidade bateram 447,7% ao ano em abril, motivo de preocupação do BC. A portabilidade permite ao consumidor escolher o banco em que quer pagar suas dívidas e, com isso, negociar taxas mais baratas. Gomes também antecipa os detalhes do Pix automático, BolePix e o Pix garantido.
Leia mais sobre economia
A seguir, os principais trechos da entrevista.
O presidente do BC disse que o cenário de inflação tem ‘clareado’, mas tem ponderado que é apenas um voto de nove no Copom. Em setembro, o sr. foi um dos votos divergentes a favor de mais uma alta de juros, a 14%. Como vê o cenário agora?
Tem tido indícios preliminares de melhora. A última leitura do IPCA foi favorável, a composição melhorou. O índice de preços ao atacado também mostrou alguma melhora. Se a gente olha o PIB pela ótica da demanda, o consumo cresceu pouco. No mercado de crédito, estamos vendo retração em vários segmentos. Por outro lado, a desinflação tem sido lenta em alguns setores, notadamente serviços, o que reflete o mercado de trabalho notadamente resiliente. As expectativas permanecem desancoradas.
Mas houve redução das expectativas de inflação hoje em todos os horizontes.
Hoje, a desancoragem recuou na margem, mas ainda está lá. Se olharmos o PIB pelo lado da oferta, tem surpreendido positivamente. Está certo que é muito puxado pela agricultura, mas há uma incerteza residual sobre o impacto da política monetária sobre o produto pelo lado da oferta. Agora, temos que continuar com cautela, para entender de fato de que a política monetária está agindo nos canais esperados e que a desinflação vai ocorrer como esperamos. Acho que não tem que ter pressa, porque um afrouxamento açodado tem custos elevados para o País no futuro.
Com a surpresa no IPCA, muitos no mercado já esperam queda de juros em agosto, se somando com a pressão do governo. Como o BC atua nesse ambiente em que há pressão e que os números estão mostrando inflação mais baixa?
Os indícios de desinflação ainda são preliminares. Uma leitura do IPCA melhorou, principalmente a composição, mas, no horizonte de inflação, se olharmos o ano-calendário de 2024 e de 2025, não terminamos o trabalho. Tem que perseverar até que as expectativas de inflação, as projeções, as inflações implícitas cheguem aonde tem que chegar. A leitura imediata do IPCA não é suficiente.
Como vê a expectativa de mudança da meta e de como impacta daqui para frente o controle da inflação após a decisão do Comitê Monetário Nacional?
A incerteza sobre o arcabouço de política monetária, particularmente sobre a meta, pode vir a ter efeito sobre a desancoragem, isso atrapalha. Tudo que atrapalha a ancoragem de expectativas longas aumenta o custo da desinflação. Dito isso, a discussão de meta não cabe ao BC, é prerrogativa do CMN.
Quais as mudanças que poderão sair do rotativo do cartão de crédito? O BC tem dito que tem interesse em discutir medidas estruturais que corrijam os incentivos errados na indústria dos cartões.
Os juros do rotativo estão em níveis bastante elevados. Aqui no BC também existe uma preocupação diante desses números tão inflados. Em primeiro lugar, falta transparência. São preços “salientes”. Quer dizer que no momento da contratação, quando o consumidor contratar o cartão de crédito, quando ele toma a decisão de consumo, ou mesmo quando ele entra no rotativo, ele tem pouca visibilidade dos juros que vai pagar.
O que mais preocupa?
Outra fonte de preocupação é que, ao contrário dos Estados Unidos, dívida de cartão de crédito é facilmente portável de uma instituição financeira a outra, aqui no Brasil não é o caso. A portabilidade de dívida de cartão é algo que o BC está trabalhando e faz parte da agenda. Isso é outra fonte do poder de mercado. Se o sujeito não passa a dívida do cartão de uma instituição para outra, tem pouca pressão sobre os juros.
Qual a saída, as medidas estruturantes, para mudar esse quadro?
No primeiro momento o que estamos perseguindo são soluções de maior transparência nessas tarifas.
Obrigar a mostrar?
Isso. Tornar mais claras para o consumidor na fatura, por exemplo. O México, por exemplo, já tem regulação nessa direção. E, a exemplo dos Estados Unidos, insistir na portabilidade. Temos um grupo de trabalho com a Febraban, queremos trazer os credenciadores para entender melhor essa indústria.
A portabilidade tem prazo para entrar em vigor? É para esse ano?
Eu acredito que sim. Tabelar certamente não é uma boa saída. Temos que perseguir alternativas que gerem melhor incentivo no momento da precificação.
Qual o cenário hoje?
Mesmo na fatura, é difícil discriminar qual é a taxa de juros cobrada. E a portabilidade faz parte do receituário que estamos perseguindo. O número de cartões de crédito quase dobrou nos últimos três anos no Brasil. São 200 milhões de cartões. Existem muitos consumidores que têm dois, três, quatro e até cinco. O limite do cartão passou também a ser usado como ferramenta de competição.
O Pix vem batendo recordes consecutivos e os saques de dinheiro físico, caindo. O Pix já supera os saques? O que vai sair de novidades do Pix este ano? E podemos ver outro País usando Pix?
A entrega mais próxima é o Pix automático, que é uma versão melhorada do débito automático. O débito automático hoje em dia funciona na base do convênio. A prestadora de serviços tem convenio com os bancos. Normalmente, são poucos com poucos bancos -- de tal maneira que, se você quiser fazer uso desse serviço, tem que ser cliente de um desses bancos que têm convênio. Isso é uma barreira à entrada no mercado. Isso é um item que achamos que vai ter um impacto concorrencial grande.
O Pix automático vai servir para que tipo de pagamento? Telefonia, energia, streaming, uma loja com parcelas longas?
Pode. Isso seria uma modalidade. São pagamentos recorrentes. Está previsto para o fim do ano. Facilita a vida. O sujeito vai conseguir estabelecer o Pix automático no balcão da academia como o celular. Se fizer uma compra online, vai ter um iniciador que permitirá ele contratar esse serviço. Será muito importante. Tanto para a compra online como offline.
Qual o cenário com o qual o BC trabalha para o Pix daqui para frente?
Além do Pix, teremos o “BolePix”, que é uma versão do Pix para o boleto. Ele replica o boleto. Vai haver aprimoramentos no recálculo da dívida, existe um banco de dados para dizer se o boleto já foi pago, por um conjunge.
Como funcionará o “Bolepix”?
É um QR code que aparece como boleto. A pessoa terá a oportunidade de fazer essa pagamento via Pix. A liquidação será instantânea. Se aliaria às funcionalidades do boleto, que é essa base centralizada, que vai dizer se foi pago ou não, o recálculo das tarifas, tudo isso junto com instantaneidade do Pix. Poderá ser pago sábado e domingo. Não posso definir prazos. Mas para o ano que vem será possível.
O que mais podemos esperar de avanços no Pix?
O papel do BC está no sentido de observar e guiar o mercado com uma mão mais reguladora e menos empreendedora, que é o Pix “Garantido”. Isso está sendo desenvolvido agora. Há soluções em que (o consumidor) vai finalizar uma compra e a firma te liga às instituições financeiras que vão oferecer uma opção de crédito para compra via Pix. Como existem muitas oportunidades e não sabemos exatamente como o modelo de negócios vai avançar, Demos um passo atrás, estamos observando como avança. Mas é algo que nós vermos com bom olhos.
O BC deve ser apontado regulador do mercado de criptoativos. Pretende trazer na regulamentação a segregação patrimonial, considerada um antídoto para o caso de problemas com as corretoras, e que foi deixada de fora da lei? O BC tem gente para cuidar dessa nova atribuição?
As atribuições do BC têm crescido à medida que os anos passaram. Eu julgo que é necessário que haja uma revalorização da carreira do BC, não só pelas novas atribuições que tomamos e pelas entregas que fizemos recentemente, como também para manter a atratividade da carreira vis a vis carreiras equivalentes no alto serviço público. O Deorf [Departamento de Organização do Sistema Financeiro] tem sofrido particularmente com isso. Uma consequência da política pró-competição que o BC tem implementado, que é uma política que certamente interessa ao País, é um aumento grande de pleitos de instituições de pagamento. Com as cripto, vai haver um aumento grande de demandas nessa direção. Vai sobrecarregando certas áreas. Acho que é importante ter isso em mente para que o BC continue com o nível de entregas que temos hoje em dia.
E sobre a segregação patrimonial?
Se isso for feito no nível infralegal, vamos ter que fazer consulta pública. Nem tabulamos ainda a discussão, porque nem fomos apontados como regulador. Não queria me adiantar, porque nem é minha área. É um tema fundamental e temos acompanhado com muito interesse. É muito importante para a área de autorização.