BRASÍLIA E DUBAI- O embaixador Roberto Azevêdo, que comandou a OMC (Organização Mundial do Comércio) por dois mandatos, em um momento em que ganharam força os movimentos protecionistas (2013-2020), assumiu a defesa do agronegócio brasileiro na COP-28, a Conferência do Clima nos Emirados Árabes. O ex-diplomata considera “surreal” que a discussão sobre o controle de emissões de carbono tenha se virado contra a grande produção de alimentos.
“O que era para ser o controle das emissões de carbono de repente agora é controlar os sistemas alimentares, uma coisa inacreditável. Tem textos falando de agronegócio, mas que não falam de automóveis, sistemas de transporte queimando diesel, siderúrgicas em países cuja matriz energética é carvão. O problema é o agronegócio e o agronegócio brasileiro? Com esse tipo de distorção, você gera frustração e desconfiança”, disse em entrevista ao Estadão.
Azevêdo foi contratado pela Abag (Associação Brasileira do Agronegócio) para defender a produção local na discussão sobre mudanças climáticas e rebate os críticos do agronegócio brasileiro.
O ex-diplomata afirmou que o Brasil tem que encontrar países que sofrem dos mesmo problemas, sem as etiquetas de “Sul Global”, usadas pela diplomacia do governo Lula, e afirma que as medidas impostas pelos compradores para exigir conformidade em padrões ambientais, como começou a fazer a Europa, significam transferir os custos da transição verde para os países mais pobres.
“De repente são os países em desenvolvimento que vão pagar a conta. Cadê o princípio da responsabilidade diferenciada? Porque não venham achar que com uma ajuda de US$ 100 bilhões você vai resolver isso. A transição para a economia verde vai custar mais de US$ 100 trilhões”, afirmou. A seguir, os principais trechos da entrevista.
Reportagem do Estadão deste domingo, 10, mostrou efeitos da mudança no clima no agronegócio, com a perspectiva de redução da safra em razão do aumento das temperaturas. O setor está consciente desses efeitos e qual o comprometimento com essa agenda?
O agronegócio é o primeiro a ser afetado pelas mudanças climáticas. Os outros têm maneiras de contornar a situação, liga o ar-condicionado (risos), resolve-se. No agro, o negócio em si está ameaçado. Safras que eram viáveis antes agora não são mais; modelos de negócios podem mudar drasticamente a depender do paralelo em que você está situado, os regimes de chuva mudaram. O impacto é brutal e o setor está perfeitamente consciente disso. Então, a última coisa será ignorar a evolução do clima.
Como fazer isso?
Há engajamento da necessidade de adotar medidas que ajudem de alguma maneira no combate climático e na preservação do meio ambiente. São coisas importantes para o próprio negócio. Agora, um ponto importante. As pessoas dizem: “vamos adotar medidas de sequestro de carbono, de métodos de produção modernos”. O setor já faz muita coisa. Eu mesmo estive nos EUA, visitando fazendas de milho e batata. A agricultura regenerativa ainda é muito incipiente lá. É um pouco frustrante quando isso não é reconhecido. Quando de repente se coloca: “ah, mas o setor emite carbono”. Grande parte dessa conta vem de desflorestamento, do qual a gente não participa.
O desmatamento aumentou no Cerrado e um dos motivos alegados é a expansão da fronteira agrícola e também para pasto.
Um produtor que está em São Paulo, Goiás, Paraná não tem nada a ver com o desmatamento que está acontecendo lá em cima; muito pelo contrário, provavelmente. Muitas dessas fazendas têm pegada de carbono muito baixa, senão negativa. Agora, temos problemas e temos coisas a fazer. Por exemplo: ouvi recentemente que há 40 milhões de hectares de terra degradados. Então, fazer um esforço para recuperar essa área toda de uma maneira que leve ao sequestro de carbono requer investimentos, como qualquer transição de agricultura tradicional para agricultura regenerativa. E são investimentos pesados, muitos não têm capacidade de fazer isso.
Como é feito lá fora?
Nos EUA, as próprias empresas, os grandes compradores de commodities, eles próprios assumiram compromissos de descarbonizar a sua cadeia de suprimentos. Então, empresas como a PepsiCo, onde eu trabalhava até recentemente, incentivava e às vezes financiava os investimentos necessários na propriedade rural, para que o agricultor fizesse essa transição e ela pudesse mostrar que descarbonizou a cadeia de suprimentos. Então, a própria empresa financiou, às vezes com garantia de compra, às vezes comprando os créditos de carbono que eles produziram.
Então o sr. acredita que um dos caminhos para o Brasil alcançar as metas de 2030 de redução de emissões será pelo financiamento privado?
Quando a gente fala dos compromissos assumidos para descarbonização, o grosso do caminho que o Brasil teria que percorrer é reduzir o desmatamento, não é transitar para a economia verde, para a agricultura regenerativa. Uma boa parte da nossa agricultura já é sustentável. Ela só não contabiliza.
Como assim?
O produtor brasileiro já faz a prática regenerativa, mas ninguém está contabilizando porque não tem o inventário do solo, de como ele foi tratado, de como a produção está sendo feita, de quanto isso significa em termos de sequestro de carbono. Não tem ninguém fazendo essa contabilidade porque ela é difícil de fazer. E não tem também mercado de carbono que incentive o produtor a fazer esse inventário. Não tem essa estrutura para inventariar o sequestro de carbono da agricultura brasileira. Todos os países vão ter que desenvolver essa tecnologia e é complexo. Participei de painéis aqui na COP com peritos nessa área dizendo que é muito difícil, porque tem que fazer propriedade a propriedade, não dá para fazer uma média regional. O que acontece hoje é que a maior parte dos números são produzidos por estimativas. Na Europa, em geral, tantos hectares de produção de milho emitem tanto (em carbono) com essa técnica de produção. Aí você joga para o Brasil e faz a mesma conta. E não é verdade, são métricas diferentes - e tem que ter metodologias diferentes. Para ter contabilidade e auditoria séria, com transparência, terá que haver investimento nesse sentido.
O sr. disse que o maior desafio do Brasil é o desmatamento. O agronegócio vai assumir compromissos nisso?
Para o agro em geral, o negócio não é desmatar. É transitar de uma maneira decidida para a agricultura de pegada negativa de carbono. Uma possibilidade de fazer progresso é a recuperação de terras degradadas. Mas quando se olha desmatamento, tem muita coisa que não tem a ver com o agronegócio. Por exemplo, os assentamentos. São uma área muito grande e são propriedades que degradam muito rapidamente. São pessoas e empreendedores que não têm tecnologia, não têm apoio, não têm educação, não sabem fazer, são ineficientes. E a terra está degradada e entra na contabilidade. Temos a capacidade de continuar plantando, produzindo e sequestrando carbono ao mesmo tempo sem derrubar árvores e acho que essa é a ambição do setor como um todo. Agora, como é que o setor vai controlar o desmatamento se o próprio governo não consegue controlar?
A relação desmatamento e agronegócio está sendo muito mencionada na COP? Qual o nível de cobrança sobre o Brasil?
O que estamos tentando controlar na COP? É o aquecimento global. O que é que provoca o aquecimento global? São as emissões de carbono. Quem é o grande emissor de carbono? É a queima do combustível fóssil. Estamos discutindo se o combustível fóssil deve ou não deve ser reduzido. Mas não há consenso sobre isso. E, de repente, o consenso se torna que a agropecuária no mundo é que tem que ter metas ambiciosas. É inacreditável, surreal essa discussão. As unidades produtoras não são responsáveis pelo aquecimento global. É a energia e o desmatamento. Tem que controlar esses dois pontos e o agronegócio não é contra nenhum dos dois. Os países que desconhecem a realidade brasileira e o agronegócio brasileiro não podem querer dar uma receita que não é compatível com a realidade do terreno e que não vai levar aos resultados para a mudança climática. É muito curioso, eu não estava nesse ambiente antes, mas quanto mais eu ouço, mais eu fico perplexo com a falta de informação e as narrativas simplistas que aparecem de repente. Então o que era para ser o controle das emissões de carbono de repente agora é controlar os sistemas alimentares, uma coisa inacreditável.
Como assim?
Tem textos falando de agronegócio, mas que não falam de automóveis, sistemas de transporte queimando diesel, siderúrgicas em países cuja matriz energética é carvão. O problema é o agronegócio e o agronegócio brasileiro? Com esse tipo de distorção, você gera frustração e desconfiança. Uma narrativa que ignora o sistema energético e a queima de combustível fóssil e o foco vem para o sistema alimentar só pode ser mal-intencionada.
Credita esse discurso a um movimento protecionista comercial acentuado pós-pandemia?
A tendência do protecionismo vem desde a crise de 2008 e 2009, quando houve a quebra do sistema financeiro. Com o tempo, a situação econômica não melhorou em alguns países, onde havia muita insatisfação na classe média com o desemprego e a perda de poder aquisitivo. Isso ficou claro na administração Donald Trump. Começaram então as tensões geopolíticas e os EUA passaram a aplicar sobretarifas contra a China. Os demais países, para se proteger de um overflow da China, também se fecharam. Começaram então os problemas nas cadeias de suprimento e passou-se a defender a produção onshore, o “buy american” (a compra de produtos fabricados internamente). Mas nenhum país consegue ter a cadeia de suprimento de A a Z dentro do seu território, senão cai a produtividade. Então mudaram o conceito para o “friendshore” (produção em países amigos). Aí veio a pandemia e a China se fechou de vez, afetando as cadeias produtivas que passavam pelo país. Mas digo que essa é uma tendência global que já vinha acontecendo há pelo menos 15 anos, a diversificação do risco no suprimento das cadeias globais de valor.
E como a pauta ambiental entra nesse contexto?
Eu gostaria de dizer que os países estão realmente preocupados com o aquecimento global e a qualidade de vida do cidadão. Conquanto tudo isso possa ser verdade, também é verdade que é uma excelente oportunidade para se proteger alguns setores e fazer algumas coisas que são ilegais do ponto de vista de comércio internacional, mas que ganham a legitimidade que é oferecida pelo pano da sustentabilidade. Raramente uma medida protecionista vem de peito aberto; normalmente vem com uma desculpa que legitima a ação. Estamos num momento em que a agenda climática e ambiental tem tamanha prioridade que é fácil embutir em suas políticas públicas, inclusive no comércio internacional, medidas que tenham como propósito proteger a indústria e um setor produtivo doméstico.
O que é possível fazer contra isso?
É preciso que a gente passe um pouco do ponto da frustração e entenda que precisamos cooperar com quem estiver disposto a cooperar para ajudar o agronegócio a se posicionar mundialmente como ele é. Um setor que tem problemas - todo setor tem -, mas que é parte da solução, não do problema. Quem sabe a gente consegue criar um clima, inclusive interno, que seja mais propício a um melhor entendimento das atividades agropecuárias no Brasil. Tem muita distorção. E produzir informação com base científica, com pesquisas e análise não apenas de instituições de boa reputação no Brasil, mas convidar também instituições acadêmicas internacionais, porque nós temos muita confiança na qualidade do nosso negócio do ponto de vista ambiental e climático.
Mas então o agro vai cumprir a meta de regeneração de terras em 2030? (a meta é recuperar 30 milhões de hectares até lá)
Essa queremos fazer, mas em algumas áreas e sub-setores, investimentos terão que ser feitos. Agora, jamais chegaremos às metas do acordo de Paris (de redução de emissões) se não houver controle do desmatamento que não está na atividade rural. O desmatamento tem várias causas, inclusive narcotráfico, tráfico de commodities…
O Brasil mudou o discurso sobre combustíveis, defendendo que os países em desenvolvimento tenham mais tempo para reduzir a emissão de combustíveis fósseis do que os países desenvolvidos. Conflita com a defesa do agronegócio do etanol?
Eu não conheço a posição exata do governo brasileiro quanto a isso. Mas seria muito curioso esperar que os países em desenvolvimento tenham a mesma velocidade de ação dos países desenvolvidos. Eu não acho que você esteja falando necessariamente numa carta branca, que os países em desenvolvimento podem fazer o que quiser no tempo que quiser, mas uma questão de diferentes capacidades de implementação. Os países ricos têm capacidade de fazer ajustes mais rapidamente do que os países em desenvolvimento.
O sr. enxerga a divisão entre Sul global contra desenvolvidos nessa discussão?
Não gosto de caracterizar assim. Tem países muito diferentes. Brasil e Botsuana são países em desenvolvimento; a China e a Índia se designam países em desenvolvimento. Então, há vários subgrupos e não sou adepto desse tipo de generalização em negociações desse tipo. Tenho certeza de que o Brasil não é o único preocupado com isso. Ouvi aqui na COP países preocupados com medidas unilaterais. Porque se quando começa a aplicar barreiras comerciais sobre produtos importados que venham de países em desenvolvimento com a alegação de que não cumprem padrões ambientais, você está passando a conta da transição para os países mais pobres. De repente são os países em desenvolvimento que vão pagar a conta. Cadê o princípio da responsabilidade diferenciada? Porque não venham achar que com uma ajuda de US$ 100 bilhões você vai resolver isso. A transição para a economia verde vai custar mais de US$ 100 trilhões. A transição precisa de recursos que nem os governos nem os bancos internacionais têm sozinhos. Cada um, inclusive o pequeno produtor, vai ter que fazer sua contribuição que, somadas, vão chegar a essa quantia. Mas isso só vai acontecer se você tiver políticas públicas, estímulos que levem a esses investimentos.
*A repórter Paula Ferreira viajou a Dubai a convite do Instituto Clima e Sociedade