BRASÍLIA – Ex-diretor-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC) e ex-vice-presidente global da PepsiCo., Roberto Azevêdo antevê riscos crescentes de um aumento do protecionismo na Europa e nos Estados Unidos em razão das eleições. A força demonstrada pelos agricultores nas eleições do Parlamento Europeu, junto com o desgaste da agenda ambiental climática, ao contrário do que se pode imaginar, não é positiva para o agronegócio brasileiro, avalia.
Ainda que se pense que haverá menos pressão da agenda ambiental, isso não servirá aos concorrentes brasileiros, que sofrerão com mais entraves para ingressar no mercado europeu.
“Essa necessidade de proteger o agricultor europeu me faz imaginar que outras formas de proteção serão aplicadas fora da fronteira”, afirma. A União Europeia vai continuar exportando padrões europeus de produção, de resíduos, de desmatamento, do que quer que seja. Todo o regulamento climático europeu tentará ser exportado. E ao exportar o regulamento, ele vai tentar exportar os custos, que serão arcados pelo produtor estrangeiro – entre eles o brasileiro.”
Nesta entrevista ao Estadão, Azevêdo também prevê mais dificuldades em concluir o acordo de abertura comercial do Mercosul com a União Europeia. “O acordo Mercosul e União Europeia, que para o Brasil tem no componente agrícola uma parte importante, fica dificultado, muito dificultado, e a probabilidade de um entendimento em bases que deem acesso facilitado para as exportações agrícolas brasileiras, esse acordo dificilmente avançará no futuro imediato. A tendência é oposta”, afirmou.
Para fazer frente a esse movimento, dificultado também pela potencial eleição de Donald Trump nos Estados Unidos, Azevedo sugere um diálogo aberto entre o governo Lula e os produtores na construção de uma agenda que mostre que o agro brasileiro pode ajudar na agenda climática.
O setor privado, diz ele, está pronto para essa conversa, que ele sugere ficar madura a tempo da COP-30, em Belém, em 2025, quando o Brasil deverá mostrar ao mundo o que está fazendo na agenda climática.
“Nós precisamos nos posicionar como País e fazer uma articulação internacional que demonstre a capacidade de liderança do Brasil com uma agenda moderna”, disse. “O setor privado está disposto a fazer esse tipo de diálogo. Mas espera que o governo faça a sua parte de contribuir, de entender a realidade do produtor brasileiro, de entender os desafios e as oportunidades que estão se apresentando. Dessa conversa, pode sair uma boa estratégia para a atuação na COP-30″.
Ex-embaixador de carreira do Itamaraty, Azevêdo é sócio na YvY, uma gestora de investimentos verdes que tem entre os sócios o ex-ministro da Economia Paulo Guedes e o ex-presidente do BNDES Gustavo Montezano. Neste momento, ele assumiu uma nova missão: ser o embaixador do agronegócio brasileiro no exterior, a trabalho da Associação Brasileira do Agronegócio (Abag) no comércio internacional.
A seguir, os principais trechos da entrevista.
Em quais temas internacionais o agronegócio brasileiro deve ficar atento neste momento?
É entender o que as mudanças e a nova configuração política europeia e a possível nova configuração política nos Estados Unidos podem significar, e como nós usamos as oportunidades que temos pela frente para dar as mensagens corretas e a sinalização correta, preparando-se para este cenário internacional.
Qual seu diagnóstico da eleição para o Parlamento Europeu?
Quando as urnas estavam fechando e saíram as pesquisas de boca de urna, o (Emmanuel) Macron convocou eleições na França e aquilo surpreendeu muita gente. Acharam uma aposta arriscada. Conheço o Macron desde os tempos em que ele era assessor do (François) Hollande. Ele é intelectualmente muito capacitado e uma pessoa extremamente calculista, o que me dá absoluta certeza de que ele não reagiu por ímpeto ou de maneira impensada. O que me chama atenção é que um movimento desse não se dá sem que você esteja percebendo uma mudança de rumo político muito dramática.
O sr. fala do avanço da direita?
Sim, mas não apenas isso. As manchetes foram “a extrema direita ganhou”, mas nem tudo está captado nessas manchetes. É verdade, a extrema direita ganhou assentos e a extrema esquerda perdeu assentos. Mas o centro continua lá e continua muito forte e majoritário. Não é um centro monolítico, mas ele será o moderador. Às vezes, eu ouço as pessoas dizerem que isso significa que a agenda climática acabou. E que isso seria bom para o agronegócio brasileiro, porque vai diminuir aquela pressão contra desflorestamento e contra emissões de gases de efeito estufa. Como se tudo isso fosse diminuir e a pressão melhorar. É uma avaliação muito superficial.
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Mas, de fato, os verdes perderam assentos no Parlamento Europeu...
O que não significa que a agenda climática vai desaparecer. O que pode acontecer, e nós já vemos os primeiros movimentos nesse sentido, é que a agenda climática está perdendo espaço por dois motivos: o primeiro é o custo de vida, a inflação alta. A agenda climática implica custos e investimentos, e isso não é um bom momento para impor ao eleitor um aumento de custos – seja no custo da energia ou no dos alimentos. Outra coisa que ficou muito clara foi a força do setor agropecuário europeu. Aquelas manifestações com ocupação de estradas, de cidades, vilarejos, foi muito impressionante e assustou muita gente na Europa. Então, o setor agrícola europeu saiu fortalecido dessas eleições. Não foi só a direita, o setor agrícola europeu saiu fortalecido. E a combinação das duas coisas parece apontar no sentido de menos agenda climática e mais apoio à agenda agrícola, né? Mas isso na perspectiva do setor agrícola brasileiro não é o mesmo impacto.
O sr. pode explicar melhor?
A comissão europeia, a Ursula von der Leyen, imediatamente atendendo à preocupação de governos europeus que foram bater à sua porta, procurou flexibilizar o green deal. Ela foi muito cautelosa em dizer que as metas não seriam abandonadas. Ou seja, a agenda climática não ia desaparecer, eles iam continuar perseguindo a agenda climática e ambiental, mas iam encontrar uma maneira mais realista – foi a palavra que ela usou – uma forma mais realista de atingir esses objetivos. A fala dela ocorreu após as eleições, (na discussão) sobre uma nova legislação da política agrícola comum. Essa nova legislação já prevê uma série de flexibilidades que não existiam antes para o agricultor comunitário – como, por exemplo, reduzir ou eliminar a aragem não é mais obrigatório, passa a ser voluntário; adotar colheitas de cobertura também não é mais obrigatório; fazer rotação de culturas, também já não é mais obrigatório; reservar 4% da propriedade para promover biodiversidade também já não é obrigatório. Então, certas medidas que antes eram mandatórias agora já não são mais.
O que isso significa para o agricultor brasileiro? A pressão pelos compromissos ambientais vai diminuir?
Eu acho que pelo contrário, piora. Você está colocando na agenda climática o elemento de proteção ao agricultor comunitário, a proteção desse agricultor, porque ele diz que está sofrendo com essa agenda. Ele tem os custos aumentados, a sua competitividade está reduzida – e, portanto, ele precisa de proteção. E a Comissão Europeia abraçou esses argumentos. Então, está flexibilizando para eles, tentando reduzir os custos, e dando a proteção de que eles dizem que precisam para atender aos requisitos da transição para a economia verde.
Isso é resultado das manifestações ou da ascensão da direita?
Das duas coisas, é resultado da nova conformação do Parlamento, em que a Comissão Europeia se dá conta de que uma política agrícola comum muito draconiana do ponto de vista climático não vai passar politicamente. Com essas flexibilizações, eles também estão tentando apaziguar os ânimos dos agricultores europeus. Isso não significa que, para o agricultor extra-bloco, isso também será verdade; pelo contrário, essa necessidade de proteger o agricultor europeu me faz imaginar que outras formas de proteção serão aplicadas fora da fronteira. A União Europeia vai continuar exportando padrões europeus de produção, de resíduos, de desmatamento, do que quer que seja. Todo o regulamento climático europeu tentará ser exportado. E, ao exportar o regulamento, ele vai tentar exportar os custos, que serão arcados pelo produtor estrangeiro, entre eles o brasileiro. Outra coisa que deve acontecer é um aumento da proteção que é concedida pelos mecanismos tradicionais, por exemplo, com medidas sanitárias e fitossanitárias, por meio de um maior escrutínio com barreiras de fronteira, inspeções e rotulagem – e também barreiras tarifárias, na administração de cotas de uma maneira ainda mais severa. E, sobretudo, dificultando acordos de livre comércio que possam facilitar a entrada do produto estrangeiro no mercado europeu.
O acordo Mercosul e União Europeia fica mais difícil?
O acordo Mercosul e União Europeia, que para o Brasil tem no componente agrícola uma parte importante, fica dificultado, muito dificultado, e a probabilidade de um entendimento em bases que deem acesso facilitado para as exportações agrícolas brasileiras, esse acordo dificilmente avançará no futuro imediato. A tendência é oposta.
Lula esteve na Europa para o G7 há poucos dias e disse que havia espaço para o acordo...
Claramente, o ambiente político hoje é menos favorável à conclusão do acordo do que era antes. O presidente Lula e o governo brasileiro sabem disso. Os negociadores brasileiros e o próprio presidente sabem conduzir essas negociações, são competentes. Mas o grau de dificuldade aumentou, não tenho a menor dúvida.
Qual a consequência de curto prazo?
O que acontece na Europa é que o protecionismo perpassa todos os espectros políticos. Eu não tenho dúvidas de que continuará uma pressão muito grande e uma exportação de uma narrativa de que os países desenvolvidos e a Europa em particular fizeram o seu dever de casa, e os outros não. Então, haverá uma pressão ainda maior para que os outros países, sobretudo os países em desenvolvimento, que têm menos recursos para investir na área de sustentabilidade, façam a transição para uma economia verde e sustentável. Isso, no fundo, é uma exportação de custos. Você está passando o custo da transição para os países em desenvolvimento. E isso não é uma boa notícia, sobretudo quando vem acompanhada de medidas que trazem muito de protecionismo embutido. Por exemplo, quando nós falamos em cálculos de emissão de gás carbônico ou em práticas de sustentabilidade, de manuseio da terra, há uma tendência de importar os modelos e as métricas que são desenvolvidas na agricultura temperada. Por quê? Porque os cientistas estão lá. Mas essa definitivamente não é a realidade da agricultura tropical, muito menos do Brasil. Temos a segunda safra de milho, que não está desviando plantação, não está aumentando a área plantada, que hoje já é responsável por 20% da produção de etanol do Brasil e vai crescer. É um potencial enorme para o País contribuir com a agenda climática. Aí, países desenvolvidos que não aceitam essa realidade, porque não é a realidade deles. A União Europeia não admite que esse etanol seja de baixo carbono porque ele pode estar desviando a produção de alimentos.
O rechaço ao etanol de milho brasileiro tem fundo concorrencial?
Não tenho a menor dúvida. Não faz nenhum sentido você não reconhecer que esse etanol é um etanol de baixo carbono. Os Estados Unidos bloqueiam, não aceitam a diferenciação entre o etanol de milho brasileiro e o americano. E americano é de safra normal. Eles não admitem essa distinção e a pegada menor de carbono. Esse tipo de coisa precisa ser melhor examinada, porque não tem nada a ver com o clima e foge ao rigor científico que deveria imperar quando você trata do marco regulatório internacional. Tira a credibilidade das medidas climáticas, da agenda climática e da narrativa climática.
O sr. mencionou os EUA, que têm eleição presidencial neste ano e pode resultar na volta do ex-presidente Donald Trump. O que isso significa para o agronegócio brasileiro?
Donald Trump não faz nenhum segredo sobre a visão dele que as preocupações com o clima, hoje prevalecentes mundo afora, são exageradas. Ele não é adepto da agenda climática e já ameaçou que os Estados Unidos de novo vão sair da convenção do quadro de clima das Nações Unidas – oque significa que, mais uma vez, nós teremos os Estados Unidos pouco engajados na agenda climática e ambiental caso ele volte a ocupar a Casa Branca. Trump já anunciou, por exemplo, que identificou o Brasil como um dos principais países protecionistas do mundo e que isso não pode continuar assim. Ele deu como exemplo o etanol brasileiro, que pode entrar nos Estados Unidos sem tarifas enquanto o americano tem que pagar imposto de importação para entrar no Brasil. Há muita reclamação sobre a carne brasileira, porque a carne é muito competitiva, mas sempre vem com um discurso mascarado de preocupações sanitárias. Então, acho que a combinação da política europeia e o presidente Trump, que alguns até dizem “olha aí, agenda climática vai sumir”... uma coisa é a agenda climática perder o ímpeto; outra coisa é o protecionismo perder o ímpeto. A meu ver, o protecionismo não vai perder o ímpeto, ele vai continuar vicejando e as medidas unilaterais vão continuar se proliferando.
Seu prognóstico é que aumenta o protecionismo nesses dois mercados.
Aumenta, mas é importante dizer também que não é uma novidade, porque as exportações agrícolas brasileiras são muito competitivas. Há uma modernização extraordinária em curso no agronegócio brasileiro, que não só está sendo mais produtivo, mas está sendo mais produtivo com menor pegada de carbono. Pouco disso, no entanto, será reconhecido se nós esperarmos que esse reconhecimento venha de graça. Ele não virá de graça. Por isso, precisamos usar os momentos que nós temos pela frente para justamente apresentar essa face do agronegócio brasileiro como potencial solução para o problema climático e não como um problema em si. Por exemplo, na COP 30 (em Belém) é uma oportunidade de ouro para o Brasil se preocupar não apenas em sair bem na foto nos seus compromissos de carbono, mas de mostrar a importância de que as medidas e o marco regulatório internacional sigam evidências científicas.
O sr. acredita que o agronegócio brasileiro está preparado para esse tipo de batalha em defesa da agenda climática?
O agronegócio é um universo enorme de produtores. Em nenhum País do mundo, nem na Europa nem nos Estados Unidos, você vai ter de repente uma transição de mentalidade, de cultura e de práticas da noite para o dia, mas o agronegócio brasileiro está transitando para essas novas e mais modernas tecnologias de produção – que são mais regenerativas, são sustentáveis, que capturam e sequestram carbono. O que seria para o bem do planeta é que esse processo fosse ajudado, reconhecendo o esforço e apoiando esse esforço; não negando o esforço a cada momento.
O governo brasileiro já entendeu isso e está defendendo o agronegócio?
Estamos todos aprendendo. Houve um progresso muito grande em termos de reconhecimento do fato de que o Brasil se preocupa com o meio ambiente. O governo tem procurado fazer valer essa visão e buscado apoio para essa transição dentro do Brasil. O próprio presidente fala disso com frequência. Mas nada do que a gente faça hoje é suficiente; nós sempre precisaremos fazer mais. Porque estamos nadando contra uma maré protecionista e que procura apontar o Brasil e outros produtores agrícolas competitivos do Sul como parte do problema do clima; em vez de usar esses países e as potencialidades deles para transformá-los na principal força motriz na agenda climática.
Nos governos anteriores, Lula defendeu o agronegócio brasileiro com a agenda de expansão do etanol mundo afora. Neste momento, na esteira da polarização política interna, há uma distância entre o agronegócio e o governo do PT. Isso atrapalha?
Eu acho que, para a gente chegar lá, nós vamos ter que ter muita conversa. E essas conversas já começaram entre o setor privado e o governo. Porque independentemente de polarização ideológica e tudo mais, essa é uma agenda que é necessária para o Brasil, independentemente da orientação política. Nós precisamos nos posicionar como País e fazer uma articulação internacional que demonstre a capacidade de liderança do Brasil com uma agenda moderna. O setor privado está disposto a fazer esse tipo de diálogo. Agora, como tudo, é uma via de mão dupla. Quer dizer, o setor privado está disposto a dar a sua contribuição, a ser mais moderno e progressista e enxergar o futuro. Mas espera que o governo faça a sua parte de contribuir, de entender a realidade do produtor brasileiro, de entender os desafios e as oportunidades que estão se apresentando. Dessa conversa pode sair uma boa estratégia para a atuação na COP-30.
Na última semana, o Senado avançou no marco legal do hidrogênio verde e há investimentos crescentes no Brasil em biocombustíveis. Essa demanda por energia pode alterar a pauta exportadora do País no futuro?
A área de energias renováveis é uma área de potencial mudança e vigor no Brasil. Não apenas o etanol como pauta de exportação – e isso é possível porque não é tão remota assim a possibilidade de você ter o etanol como um ingrediente dos motores a combustão nos países desenvolvidos. Mas não apenas aí, mas também na exportação de SAF e de combustível sustentável para navios. As tecnologias estão sendo desenvolvidas e existem. Mas o que a minha experiência mostra é que esses investimentos dependem de um marco regulatório claro e, sobretudo, previsível. Não basta apenas você desenvolver um marco regulatório, mas de uma maneira que diminua os custos, porque os biocombustíveis tendem a ser mais caros do que os combustíveis fósseis. É preciso dar os incentivos regulatórios necessários para que ele seja competitivo para que o mercado aceite, mas que também dê previsibilidade – com garantias ao investidor de que ele poderá contar com um horizonte temporal razoável de maturação.
O Brasil é visto no mundo como um potencial vendedor de energia e não só de alimentos?
Cada vez mais. Mas blocos como a União Europeia ou Estados Unidos relutam muito em aprovar tecnologias que levam à exportação de biocombustível de baixa pegada de carbono, como é o caso do do etanol de milho. Eu falei já há muito tempo, e fiquei contente de ver que o presidente Lula falou a mesma coisa, que o Brasil pode ser a Arábia Saudita do combustível renovável, da energia limpa. Mas tudo isso precisa de outros ingredientes que eu falei (no campo de defesa do produto brasileiro).