Nos 27 meses em que esteve à frente da Petrobras, de janeiro de 2019 a abril de 2021, o ex-comandante da estatal Roberto Castello Branco diz que teve pouco contato com o ex-presidente Jair Bolsonaro. Segundo ele, o interesse de Bolsonaro pela Petrobras só aflorou quando os preços dos combustíveis no País, influenciados pela alta do petróleo no mercado internacional, começaram a subir, no fim de 2020, turbinando reclamações dos caminhoneiros, que faziam parte de sua base eleitoral.
Nesta entrevista ao Estadão, Castello Branco revela detalhes da reunião que teve no Palácio do Planalto para discutir a política de preços da Petrobras com o ex-presidente e seus auxiliares, em fevereiro de 2021, que selou sua demissão, abordada em seu novo livro Petrobras – A luta pela transformação, cujo lançamento acontece nesta quinta-feira, 7, no Rio de Janeiro.
Na reunião, de acordo com Castello Branco, quase todo mundo estava sem máscara, inclusive Bolsonaro, e ele apareceu de máscara e óculos, para reduzir o risco de contágio pelo coronavírus. Ao chegar, o ex-presidente estendeu a mão para cumprimentá-lo e ele lhe deu o braço, como era costume de muita gente nos tempos da pandemia.
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“Eu dei o braço para ele, como era a prática na Petrobras. Não fiz nada de propósito para provocá-lo”, afirma. “Fiz o que estava acostumado a fazer. Fui com máscara e óculos, porque pregava a proteção contra a infecção pela covid para todos os funcionários da Petrobras. E eu não ia pregar uma coisa e fazer outra, e perder a credibilidade.” Confira a seguir os trechos da entrevista relacionados à relação de Castello Branco e Bolsonaro.
Durante sua gestão no comando da Petrobras, como era a relação com o ex-presidente Jair Bolsonaro? Ele acompanhava de perto as questões da empresa?
Meu relacionamento com o presidente Bolsonaro foi muito pequeno. Eu estava sempre disposto a fornecer informações aos acionistas da Petrobras. O Estado está representado na companhia pelo conselho de administração. Então, havia uma abertura e uma transparência muito grandes com o conselho e com o ministro Bento Albuquerque, com o Ministério de Minas e Energia, que é o supervisor da Petrobras. O ministério não é o controlador da Petrobras, é o supervisor. Mas fui indicado para ser presidente da Petrobras pelo ministro Paulo Guedes, que me conhecia há muito tempo. E poucas vezes tive a oportunidade de conversar com o presidente. Ele tinha um ministro da Economia superliberal e nunca interferiu nas privatizações e vendas de ativos que a Petrobras fez durante a minha gestão. O foco dele era político, porque ele temia a reação dos caminhoneiros, que faziam parte de sua base eleitoral.
O fato de o sr. ter sido indicado para o cargo pelo ex-ministro Paulo Guedes e não pelo ex-ministro Bento Albuquerque, a quem a Petrobras está subordinada, atrapalhou seu relacionamento com ele?
Não, não atrapalhou. Tive um excelente relacionamento com o ministro Bento. Ele, nunca me atrapalhou em nada. Nunca deu palpite sobre a política da Petrobras. A intervenção dele foi zero, assim como a do Paulo. E o presidente Bolsonaro focou mais na questão dos preços dos derivados de petróleo.
No livro o sr. se define como um liberal e diz que não é nem de direita nem de esquerda. Fala também que o Bolsonaro “certamente não é um liberal”, que o sr. não tinha “admiração” por ele e que o ex-presidente tem uma “formação intelectual fraca”. Se essa era a sua visão do Bolsonaro, o que o levou a ir para o governo?
Eu resolvi participar do governo porque esse presidente deu ampla liberdade para o Paulo Guedes, pessoa em que eu confiava muito, tocar a economia. Nós temos ideias semelhantes, quase iguais, e ele tinha muito prestígio e influência com o Bolsonaro. Tanto é que o Paulo ficou responsável por cinco ministérios (Fazenda, Planejamento, Indústria e Comércio, Trabalho e Previdência), que foram fundidos em um só. Ele me indicou para ser presidente da Petrobras antes que o ministro das Minas e Energia fosse indicado. Foi isso que me levou a aceitar essa posição.
Agora, o sr. diz no livro que, ao longo de 2019, no primeiro ano de governo, o ex-presidente Bolsonaro foi abraçando o populismo de uma maneira mais evidente e que isso acabou por dominar o comportamento dele a partir de 2020. Na prática, como isso afetava sua atuação na Petrobras?
Isso não me afetava de maneira nenhuma. Só começou a me afetar no fim de 2020 e no início de 2021, quando os preços dos combustíveis começaram a subir. No auge da pandemia, os preços dos combustíveis sofreram uma queda significativa. Nós chegamos a reduzir os preços até abril de 2020 em 40%. Aí, a partir de outubro, começou aí um período de recuperação dos preços dos combustíveis começou a haver recuperação da mobilidade, começou a haver uma tendência de alta nos preços do petróleo no mercado internacional, que foi até meados de 2022. E, evidentemente, a Petrobras tinha de seguir esse movimento e começou a aumentar os preços também. Isso chamou a atenção do presidente Bolsonaro, embora os preços ainda estivessem mais baixos do que antes da pandemia, e ele começou a reclamar. Corriam rumores de que os caminhoneiros autônomos estariam preparando uma greve naquela época, que acabou não se materializando, e isso foi o gatilho para o disparo de pressões sobre a Petrobras. Mas eu não podia parar de aumentar os preços, porque isso iria prejudicar muito a Petrobras e seria totalmente contra a minha crença.
O sr. sofreu muita pressão do presidente para segurar os preços dos combustíveis?
Isso ocorreu durante um período relativamente curto, porque ele sentiu que eu não iria mudar de maneira nenhuma a política que estava implementando na Petrobras, baseada no preço de paridade de importação (PPI) – e ele tinha razão. Eu tenho meus princípios. Sou um economista que acredita na economia de mercado e não seria eu que iria praticar preços que não fossem de mercado. Tem uma frase minha no livro que diz que preço é preço, é o preço de mercado, que resume bem o meu pensamento a respeito dessa questão.
No livro, ao comentar a tentativa do presidente de interferir nos preços dos combustíveis, o sr. conta que, em função do movimento dos caminhoneiros, que estava ganhando força, foi chamado para uma reunião com o ex-presidente Bolsonaro, no Palácio do Planalto no começo de fevereiro de 2021, para discutir o assunto. Como foi essa reunião? Tinha muita gente? Estava só o presidente?
Tinha umas vinte pessoas com o presidente. Eu fiz uma exposição e depois fizeram várias perguntas, que respondi uma por uma. Procurei mostrar, mais uma vez, como se decidiam os preços dos combustíveis na Petrobras, o que nos orientava e o efeito negativo que haveria no mercado se nós não seguíssemos os preços internacionais, inclusive com impacto macroeconômico nos juros e no câmbio.
E como foi a reação do pessoal às suas explicações?
A princípio, eu julguei que tinha atendido todas as preocupações, mas depois pensei: “Bom, a pressão dos caminhoneiros não vai acabar e eu vou ter de subir mais os preços, se a tendência de alta continuar. Então, essa é uma batalha perdida”. É difícil você obter racionalidade quando a política interfere. Mesmo mostrando que, naquela época, os preços do diesel, como eu falei, ainda eram inferiores ao que tinham sido em 2019.
Ao contrário do que costuma acontecer nos primeiros meses do ano, quando o consumo de diesel tende a cair, a demanda por frete rodoviário estava crescendo bastante, porque a economia estava voltando a crescer. O consumo de diesel, também. Então, as condições para os caminhoneiros eram muito boas. E a gente ainda tem de levar em conta aí que existem outros fatores que afetam de forma muito negativa os caminhoneiros no Brasil, principalmente os autônomos, além do preço do diesel. Há veículos muito antigos em circulação, que gastam muito diesel, dão muita manutenção. As condições de muitas estradas são ruins. Mas eles não queriam saber disso. O que vale é a política. E a política indicava “entrega a cabeça desse presidente da Petrobras e substitui por outro, que possa segurar os preços”, que foi o que acabou ocorrendo. Depois, o general (Joaquim) Silva e Luna, que me sucedeu na Petrobras com essa missão, percebeu que estava errado, fez a coisa certa e acabou sendo demitido também.
O sr. conta no livro que, nessa reunião com Bolsonaro, o sr. chegou lá de máscara e óculos, porque a pandemia ainda estava em curso, e que quase todo mundo estava sem máscara, falando um ao ouvido do outro. Como foi isso mesmo?
É, quase todos lá estavam sem máscara. Eu fui com máscara e óculos, porque pregava isso, a proteção contra a infecção pela covid, para todos os funcionários da Petrobras, os que estavam em home office e os que estavam nas operações. Nós investimos recursos, contratamos o (hospital Albert) Einstein para nos assessorar, fizemos o máximo que era possível para proteger a saúde dos funcionários. E eu não vou pregar uma coisa e fazer outra. Aí eu me desmoralizo, fico sem credibilidade nenhuma.
Quando o sr. chegou na reunião e viu quase todo mundo sem máscara, o que pensou?
Eu falei “poxa, esse pessoal não tem consciência do que está havendo”. Na época, falava-se que era muito provável que houvesse uma onda mais forte da Covid no Brasil. Eu tinha lido um artigo, uma pesquisa de um economista, sobre a gripe espanhola. A gripe espanhola veio em três ondas. A primeira foi em 1917 ou 1918, se não me engano, a segunda ocorreu no ano seguinte, que foi a mais mortal, e depois houve a terceira onda, que já foi um pouco mais fraca. No Brasil, com a pandemia, aconteceu algo semelhante. Começou em 2020 e quando chegou em 2021 houve a onda mais mortal da covid. Eu me lembro que morriam quatro mil pessoas por dia. Então, era a hora de se proteger.
O ministro Paulo Guedes estava de máscara?
Acho que estava com máscara.
Agora, o sr. conta que, ao chegar na reunião, o presidente estendeu a mão para cumprimentá-lo e o sr. deu o braço para ele. O sr. seguia esses procedimentos por acreditar que tinha maior risco de contágio por causa da sua idade, de 80 anos?
Eu dei o braço para ele, como era a prática na Petrobras. Não fiz nada de propósito para provocá-lo. Fiz o que estava acostumado a fazer. E pode ter certeza que a idade não contou. Eu podia ter 18 anos que faria o mesmo, porque a minha pregação era a favor da proteção, de usar máscara, de usar óculos, de evitar o contágio.
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Logo depois dessa reunião, o Bolsonaro começou a fazer críticas ao sr., preparando o terreno para sua demissão. Ele dizia que o sr. estava há 11 meses em home office, sem trabalhar, e que ganhava um salário exorbitante. Como é que sr. viu essas críticas naquela ocasião?
Eu achei graça. Pensei “eu devo ser mágico, então”, porque logo em seguida apresentei os resultados da Petrobras de 2020, que foram maravilhosos. Em 2020, o nosso fluxo de caixa foi não só maior do que os das cinco major oil companies – Exxon, Shell, Chevron, Total e BP – mas foi maior do que o das cinco somadas. A gente bateu o recorde de produção de petróleo em 2020, que não foi batido até hoje. Em termos de saúde e segurança no trabalho, não houve uma morte nas operações. Foi um resultado que nós festejamos muito. E aí ainda veio alguém dizer que eu não trabalhava. Ora, conta outra, pô. Foi um dos períodos da minha vida em que mais trabalhei. A gente começava a trabalhar às oito horas da manhã e, às vezes, ia até meia-noite. Não tinha hora para parar. Eu trabalhava em casa, dava uma paradinha para um almoço ou fazia um almoço, comia uma bobagenzinha, na mesa de trabalho mesmo, e ia em frente. Então, achei engraçado aquilo.
Na época, o sr. não respondeu ao ex-presidente. Por que?
Não, não respondi. Achei que era algo que eu não deveria responder.
No livro, o sr. conta que, ao chegar ao Rio vindo daquela reunião em Brasília, sentiu que seu destino “estava selado”.
É verdade. Foi isso mesmo. Eu raciocinei e pensei, “é mais fácil eles me demitirem”. Diante da tendência de alta dos preços globais do petróleo e dos combustíveis e das alterações no câmbio, seria mais fácil entregar para os caminhoneiros a cabeça do presidente da Petrobras como sinal de que o governo estava agindo. Então, eu já esperava que o Bolsonaro tomaria a decisão de me demitir, porque eles perceberam que eu não iria mudar, que não iria fazer milagre. Uma das coisas que tenho na vida é procurar ser muito consistente. É difícil, às vezes a gente pisa na bola, mas muitas vezes eu consigo.
Agora, além dessa tentativa de interferência nos preços nos combustíveis, o sr. fala no livro que não atendeu indicações políticas para a Petrobras e para aumento de investimento em publicidade, principalmente em emissoras de TV. Como eram essas pressões?
Houve algumas pressões, poucas, para nomeação de alguém.
Isso vinha de onde?
Do Planalto. Mas eu não atendi. Também não atendi os pedidos para aumento de gasto com publicidade. E ficou por isso mesmo. Eu tinha como meus defensores o ministro Paulo Guedes e o ministro Bento.
Levando em conta a forma como se deu sua saída da Petrobras, o sr. ficou ressentido com o presidente Bolsonaro?
Absolutamente não. Não fiquei ressentido com ele, não. Porque eu saí bem, saí com a sensação de dever cumprido. Não guardei mágoa, não fiquei ruminando aquilo.