Plano de carro popular é um ‘desastre’, um ‘absurdo’ do ponto de vista social, avalia Samuel Pessôa


Economista questiona subsídio para a indústria automobilística por ela não conseguir exportar e diz que medida para baratear carro para R$ 60 mil beneficia apenas a classe média

Por Cleide Silva
Foto: Werther Santana/ Estadão
Entrevista comSamuel PessôaPesquisador do Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getulio Vargas (Ibre/FGV)

Medidas anunciadas pelo governo Lula na quinta-feira, 25, para dar fôlego ao setor industrial, já foram adotadas no passado e não deram certo, avalia o economista Samuel Pessôa. Nos mandatos anteriores, diz ele, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) colocou R$ 400 bilhões em políticas de crédito subsidiado “e, mesmo assim, a indústria perdeu participação no PIB”.

No caso da indústria automobilística, que terá isenções fiscais para voltar a produzir carros populares, ou mais baratos, Pessôa vê como “um desastre” reduzir impostos tendo como uma das regras o maior índice de uso de componentes fabricados no Brasil.

“Eu eliminaria o requerimento de conteúdo nacional e deixaria trazer peças de fora e montar o carro no Brasil, mas com meta de exportação”, diz. “Qualquer política pública deveria ter como meta forçar as montadoras a acessarem o mercado internacional.”

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A seguir, leia trechos da entrevista.

Qual sua avaliação sobre as medidas anunciadas para a indústria?

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O governo petista, na outra fase no Planalto, colocou R$ 400 bilhões no BNDES para gerar fundos para políticas de crédito subsidiado. Os estudos que conheço mostram que não gerou muitos resultados. Esse governo faz parte de um grupo que ficou à frente do Planalto por 13,5 anos, e volta com as mesmas políticas. Parece que acham que, da outra vez, o resultado foi bom, mas essas políticas geraram a maior crise da história do País. Precisa ver os detalhes das medidas, mas acho que crédito para exportação, por exemplo, deveria ser de natureza diferente, assim como subsidiar compra de máquinas e investimentos.

O que seria mais viável?

Da outra vez eles colocaram muito dinheiro (em subsídios) e mesmo assim a indústria perdeu participação no PIB. Por que agora vai ser diferente? Eu acho que tem problemas estruturais que explicam a dificuldade da indústria no Brasil. Por exemplo, ela não consegue exportar. Muitos falam dos subsídios agrícolas, mas a agricultura exporta, e muito. Por que dar, por exemplo, subsídio para a indústria automobilística se ela não consegue exportar o nosso carro? O dia em que a nossa indústria conseguir fazer um carro que compita no mercado internacional, aí vou achar que algum tipo de subsídio ou política vai fazer sentido. Mas essa é uma indústria que está conosco há 60 anos, e tirando um ou outro período relativamente curto, nunca gerou capacidade exportadora.

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De que problemas estruturais o sr. está falando?

O primeiro é que o Brasil é um país de juro alto, e é alto porque nossa taxa de poupança é baixa e o risco país é elevado. Temos de resolver o problema fiscal, temos de aumentar a poupança do setor público, resolver os problemas da falta de mão de obra qualificada e do sistema educacional. Muitos ficam o tempo todo falando de Coreia, Taiwan, Japão, e China. Olhem a qualidade educacional desses lugares, a taxa de poupança. Eles não têm indústria porque têm subsídio, mas porque trabalham muito, estudam muito, poupam muito.

Baixar preço de R$ 70 mil para R$ 60 mil, significa dar R$ 10 mil para a classe média comprar carro, avalia Pessôa Foto: Hélvio Romero/Estadão
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Como avalia as medidas para a volta do ‘carro popular’?

É na mesma linha. Ouvi gente dizendo que essa política está mais bem desenhada, tem contrapartidas de tecnologia, conteúdo nacional, mas as últimas políticas para o setor, e que não deram certo como Inovar Auto e Rota 2030 já tinham cláusulas de eficiência energética, de conteúdo local, estímulo a pesquisa e desenvolvimento. Não tem nenhuma novidade no desenho, vão fazer mais do mesmo. Do ponto de vista social é um absurdo. O Brasil é um país pobre, e um bem que custa R$ 70 mil não é para pobre, é para a classe média. Se baixar o preço para R$ 60 mil, significa que vai dar R$ 10 mil para a classe média comprar carro. O carro congestiona nossas vias públicas, polui a cidade, produz efeito estufa e é contra a transição energética. Essa política gera gasto tributário e o ministro Fernando Haddad mais de uma vez disse que o objetivo dele é reduzir o gasto tributário. É uma agenda inversa à do ministro.

No novo plano há mais benefícios para carros mais baratos, com menos emissões e maior conteúdo nacional. Não são contrapartidas importantes?

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Acho isso um desastre. Se eu tivesse de fazer essa medida, faria diferente. Eliminaria o requerimento de conteúdo nacional e deixaria trazer peças de fora e montar (o carro) no Brasil, mas com meta de exportação. O problema da indústria brasileira é que a economia globalizou, e uma planta, para ser eficiente, tem de produzir pelo menos 300 mil unidades do mesmo modelo por ano. Para gerar mais escala, precisa ter acesso ao mercado internacional porque só o doméstico não dá escala suficiente. Por outro lado, para exportar o carro precisa de melhor qualidade, e elevados elementos de conteúdo nacional reduzem a qualidade. A política teria de ter como meta incluir a indústria automobilística nas cadeias globais de valor. A Embraer, por exemplo, está na cadeia global, não tem requerimento de conteúdo nacional e é por isso que seu avião é bom. Praticamente metade do seu valor é conteúdo importado.

Aumentar importação não reduziria empregos?

Não, porque a indústria se especializa, compra mais componente de fora, monta e faz alguma etapa melhor aqui dentro e ganha no volume. Ao produzir mais unidades com menor conteúdo nacional, a qualidade é maior e a empresa é capaz de sobreviver sem subsídio, porque se torna competitiva. A única régua para avaliar o sucesso de uma atividade produtiva é a capacidade de acessar o mercado internacional. Se não acessa, o produto é ruim, não vale a pena subsidiar. Qualquer política pública deveria ter como meta forçar as montadoras a acessarem o mercado internacional.

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Qual sua opinião sobre o arcabouço fiscal?

Não era o que eu faria, mas acho que está correto, embora tenha alguns problemas graves que limitam muito sua eficácia. A regra aprovada é, essencialmente, a do teto de gastos do (ex-presidente Michel) Temer, um pouco mais complicada. Um grupo político passou anos batendo no Temer, reclamando do teto de gastos, mas ganha a eleição e faz essencialmente o teto de gastos dele, com algumas mudanças. Eu acho que o teto é importante, mas é também importante que um partido de esquerda que ganhou a eleição demonstre essa responsabilidade fiscal. A gente tem de lembrar que o governo petista nunca fez muito ajuste fiscal, ele herdou uma situação fiscal sólida do governo anterior e teve a consciência de mantê-lo, o que é certo. Mas agora precisa construir uma situação fiscal sólida e é muito mais difícil construir do que manter uma situação previamente estabelecida. Acho que o teto de gastos é o primeiro passo, mas é insuficiente.

O que o sr. quer dizer com isso?

Como o ponto de partida já é uma situação fiscal ruim, isso faz com que esse teto não seja capaz de estabilizar a dívida pública. Se ela for aplicado nos quatro anos do governo, as simulações que eu conheço sugerem que a dívida pública vai subir 15 pontos porcentuais do PIB. Vamos sair de uma dívida de 74% do PIB para 89%. O presidente Lula tem um trabalho grande de convencer o Congresso a dar mais receita para ele, mas o Congresso tem se recusado a aumentar carga tributária há duas décadas.

Qual sua avaliação geral do governo Lula?

É um governo que começou com o pé trocado. O Lula é provavelmente a maior liderança política da história do País, é muito experiente, foi eleito três vezes presidente e fez uma sucessora. É uma pessoa que tem um sucesso na política brasileira que ninguém nunca teve. Dado o que acontecia no País, ele avaliou que tinha de começar o governo com o pé no acelerador do gasto público. Com isso, avaliou que tinha de rasgar o ‘livro texto da ciência política’. Segundo o ‘livro’, se começa um mandato com uma dominância da economia sobre a política, ou seja, gastando capital político para arrumar a casa, colhe uma situação melhor no final e termina bem o governo, com uma dominância da política sobre a economia. Ele começou aprovando uma emenda constitucional para colocar R$ 200 bilhões a mais no orçamento e queimou o capital político para gastar mais. De certo vai ter problemas para conseguir governar.

Com todas as dificuldades, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem se saído bem

Qual seria a razão dessa escolha?

Quando ouço cientistas e analistas políticos, a explicação que dão para tentar entender essa escolha é que o presidente Lula avaliou que, dado uma vitória por pequena margem, numa sociedade muito polarizada, deveria haver algumas entregas imediatas do governo, produzir resultados imediatos para a população porque dessa forma conseguiria diluir de alguma maneira essa polarização, esse clima ruim de disputa da sociedade brasileira. Não sei se está certo ou não, mas o ponto é que o governo começou assim, e sobrou um ‘pepinão’ para o ministro da Fazenda, que tem de arrumar essa situação toda.

E que avaliação o sr. faz do ministro Haddad?

Com todas as dificuldades, ele tem se saído bem. A agenda do governo hoje é estabelecida principalmente por ele. O fato de o governo ter uma agenda dá um norte, um caminho, e isso é bom. Qual é a agenda? Marco fiscal, reforma tributária, planejamento tributário, renda. É uma agenda meritória que ataca nossos maiores problemas como desequilíbrio fiscal, baixa produtividade do trabalho e falta de renda. Agora vamos ver quais serão os esforços do presidente Lula no Congresso para conseguir aprovar essa agenda.

Medidas anunciadas pelo governo Lula na quinta-feira, 25, para dar fôlego ao setor industrial, já foram adotadas no passado e não deram certo, avalia o economista Samuel Pessôa. Nos mandatos anteriores, diz ele, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) colocou R$ 400 bilhões em políticas de crédito subsidiado “e, mesmo assim, a indústria perdeu participação no PIB”.

No caso da indústria automobilística, que terá isenções fiscais para voltar a produzir carros populares, ou mais baratos, Pessôa vê como “um desastre” reduzir impostos tendo como uma das regras o maior índice de uso de componentes fabricados no Brasil.

“Eu eliminaria o requerimento de conteúdo nacional e deixaria trazer peças de fora e montar o carro no Brasil, mas com meta de exportação”, diz. “Qualquer política pública deveria ter como meta forçar as montadoras a acessarem o mercado internacional.”

A seguir, leia trechos da entrevista.

Qual sua avaliação sobre as medidas anunciadas para a indústria?

O governo petista, na outra fase no Planalto, colocou R$ 400 bilhões no BNDES para gerar fundos para políticas de crédito subsidiado. Os estudos que conheço mostram que não gerou muitos resultados. Esse governo faz parte de um grupo que ficou à frente do Planalto por 13,5 anos, e volta com as mesmas políticas. Parece que acham que, da outra vez, o resultado foi bom, mas essas políticas geraram a maior crise da história do País. Precisa ver os detalhes das medidas, mas acho que crédito para exportação, por exemplo, deveria ser de natureza diferente, assim como subsidiar compra de máquinas e investimentos.

O que seria mais viável?

Da outra vez eles colocaram muito dinheiro (em subsídios) e mesmo assim a indústria perdeu participação no PIB. Por que agora vai ser diferente? Eu acho que tem problemas estruturais que explicam a dificuldade da indústria no Brasil. Por exemplo, ela não consegue exportar. Muitos falam dos subsídios agrícolas, mas a agricultura exporta, e muito. Por que dar, por exemplo, subsídio para a indústria automobilística se ela não consegue exportar o nosso carro? O dia em que a nossa indústria conseguir fazer um carro que compita no mercado internacional, aí vou achar que algum tipo de subsídio ou política vai fazer sentido. Mas essa é uma indústria que está conosco há 60 anos, e tirando um ou outro período relativamente curto, nunca gerou capacidade exportadora.

De que problemas estruturais o sr. está falando?

O primeiro é que o Brasil é um país de juro alto, e é alto porque nossa taxa de poupança é baixa e o risco país é elevado. Temos de resolver o problema fiscal, temos de aumentar a poupança do setor público, resolver os problemas da falta de mão de obra qualificada e do sistema educacional. Muitos ficam o tempo todo falando de Coreia, Taiwan, Japão, e China. Olhem a qualidade educacional desses lugares, a taxa de poupança. Eles não têm indústria porque têm subsídio, mas porque trabalham muito, estudam muito, poupam muito.

Baixar preço de R$ 70 mil para R$ 60 mil, significa dar R$ 10 mil para a classe média comprar carro, avalia Pessôa Foto: Hélvio Romero/Estadão

Como avalia as medidas para a volta do ‘carro popular’?

É na mesma linha. Ouvi gente dizendo que essa política está mais bem desenhada, tem contrapartidas de tecnologia, conteúdo nacional, mas as últimas políticas para o setor, e que não deram certo como Inovar Auto e Rota 2030 já tinham cláusulas de eficiência energética, de conteúdo local, estímulo a pesquisa e desenvolvimento. Não tem nenhuma novidade no desenho, vão fazer mais do mesmo. Do ponto de vista social é um absurdo. O Brasil é um país pobre, e um bem que custa R$ 70 mil não é para pobre, é para a classe média. Se baixar o preço para R$ 60 mil, significa que vai dar R$ 10 mil para a classe média comprar carro. O carro congestiona nossas vias públicas, polui a cidade, produz efeito estufa e é contra a transição energética. Essa política gera gasto tributário e o ministro Fernando Haddad mais de uma vez disse que o objetivo dele é reduzir o gasto tributário. É uma agenda inversa à do ministro.

No novo plano há mais benefícios para carros mais baratos, com menos emissões e maior conteúdo nacional. Não são contrapartidas importantes?

Acho isso um desastre. Se eu tivesse de fazer essa medida, faria diferente. Eliminaria o requerimento de conteúdo nacional e deixaria trazer peças de fora e montar (o carro) no Brasil, mas com meta de exportação. O problema da indústria brasileira é que a economia globalizou, e uma planta, para ser eficiente, tem de produzir pelo menos 300 mil unidades do mesmo modelo por ano. Para gerar mais escala, precisa ter acesso ao mercado internacional porque só o doméstico não dá escala suficiente. Por outro lado, para exportar o carro precisa de melhor qualidade, e elevados elementos de conteúdo nacional reduzem a qualidade. A política teria de ter como meta incluir a indústria automobilística nas cadeias globais de valor. A Embraer, por exemplo, está na cadeia global, não tem requerimento de conteúdo nacional e é por isso que seu avião é bom. Praticamente metade do seu valor é conteúdo importado.

Aumentar importação não reduziria empregos?

Não, porque a indústria se especializa, compra mais componente de fora, monta e faz alguma etapa melhor aqui dentro e ganha no volume. Ao produzir mais unidades com menor conteúdo nacional, a qualidade é maior e a empresa é capaz de sobreviver sem subsídio, porque se torna competitiva. A única régua para avaliar o sucesso de uma atividade produtiva é a capacidade de acessar o mercado internacional. Se não acessa, o produto é ruim, não vale a pena subsidiar. Qualquer política pública deveria ter como meta forçar as montadoras a acessarem o mercado internacional.

Qual sua opinião sobre o arcabouço fiscal?

Não era o que eu faria, mas acho que está correto, embora tenha alguns problemas graves que limitam muito sua eficácia. A regra aprovada é, essencialmente, a do teto de gastos do (ex-presidente Michel) Temer, um pouco mais complicada. Um grupo político passou anos batendo no Temer, reclamando do teto de gastos, mas ganha a eleição e faz essencialmente o teto de gastos dele, com algumas mudanças. Eu acho que o teto é importante, mas é também importante que um partido de esquerda que ganhou a eleição demonstre essa responsabilidade fiscal. A gente tem de lembrar que o governo petista nunca fez muito ajuste fiscal, ele herdou uma situação fiscal sólida do governo anterior e teve a consciência de mantê-lo, o que é certo. Mas agora precisa construir uma situação fiscal sólida e é muito mais difícil construir do que manter uma situação previamente estabelecida. Acho que o teto de gastos é o primeiro passo, mas é insuficiente.

O que o sr. quer dizer com isso?

Como o ponto de partida já é uma situação fiscal ruim, isso faz com que esse teto não seja capaz de estabilizar a dívida pública. Se ela for aplicado nos quatro anos do governo, as simulações que eu conheço sugerem que a dívida pública vai subir 15 pontos porcentuais do PIB. Vamos sair de uma dívida de 74% do PIB para 89%. O presidente Lula tem um trabalho grande de convencer o Congresso a dar mais receita para ele, mas o Congresso tem se recusado a aumentar carga tributária há duas décadas.

Qual sua avaliação geral do governo Lula?

É um governo que começou com o pé trocado. O Lula é provavelmente a maior liderança política da história do País, é muito experiente, foi eleito três vezes presidente e fez uma sucessora. É uma pessoa que tem um sucesso na política brasileira que ninguém nunca teve. Dado o que acontecia no País, ele avaliou que tinha de começar o governo com o pé no acelerador do gasto público. Com isso, avaliou que tinha de rasgar o ‘livro texto da ciência política’. Segundo o ‘livro’, se começa um mandato com uma dominância da economia sobre a política, ou seja, gastando capital político para arrumar a casa, colhe uma situação melhor no final e termina bem o governo, com uma dominância da política sobre a economia. Ele começou aprovando uma emenda constitucional para colocar R$ 200 bilhões a mais no orçamento e queimou o capital político para gastar mais. De certo vai ter problemas para conseguir governar.

Com todas as dificuldades, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem se saído bem

Qual seria a razão dessa escolha?

Quando ouço cientistas e analistas políticos, a explicação que dão para tentar entender essa escolha é que o presidente Lula avaliou que, dado uma vitória por pequena margem, numa sociedade muito polarizada, deveria haver algumas entregas imediatas do governo, produzir resultados imediatos para a população porque dessa forma conseguiria diluir de alguma maneira essa polarização, esse clima ruim de disputa da sociedade brasileira. Não sei se está certo ou não, mas o ponto é que o governo começou assim, e sobrou um ‘pepinão’ para o ministro da Fazenda, que tem de arrumar essa situação toda.

E que avaliação o sr. faz do ministro Haddad?

Com todas as dificuldades, ele tem se saído bem. A agenda do governo hoje é estabelecida principalmente por ele. O fato de o governo ter uma agenda dá um norte, um caminho, e isso é bom. Qual é a agenda? Marco fiscal, reforma tributária, planejamento tributário, renda. É uma agenda meritória que ataca nossos maiores problemas como desequilíbrio fiscal, baixa produtividade do trabalho e falta de renda. Agora vamos ver quais serão os esforços do presidente Lula no Congresso para conseguir aprovar essa agenda.

Medidas anunciadas pelo governo Lula na quinta-feira, 25, para dar fôlego ao setor industrial, já foram adotadas no passado e não deram certo, avalia o economista Samuel Pessôa. Nos mandatos anteriores, diz ele, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) colocou R$ 400 bilhões em políticas de crédito subsidiado “e, mesmo assim, a indústria perdeu participação no PIB”.

No caso da indústria automobilística, que terá isenções fiscais para voltar a produzir carros populares, ou mais baratos, Pessôa vê como “um desastre” reduzir impostos tendo como uma das regras o maior índice de uso de componentes fabricados no Brasil.

“Eu eliminaria o requerimento de conteúdo nacional e deixaria trazer peças de fora e montar o carro no Brasil, mas com meta de exportação”, diz. “Qualquer política pública deveria ter como meta forçar as montadoras a acessarem o mercado internacional.”

A seguir, leia trechos da entrevista.

Qual sua avaliação sobre as medidas anunciadas para a indústria?

O governo petista, na outra fase no Planalto, colocou R$ 400 bilhões no BNDES para gerar fundos para políticas de crédito subsidiado. Os estudos que conheço mostram que não gerou muitos resultados. Esse governo faz parte de um grupo que ficou à frente do Planalto por 13,5 anos, e volta com as mesmas políticas. Parece que acham que, da outra vez, o resultado foi bom, mas essas políticas geraram a maior crise da história do País. Precisa ver os detalhes das medidas, mas acho que crédito para exportação, por exemplo, deveria ser de natureza diferente, assim como subsidiar compra de máquinas e investimentos.

O que seria mais viável?

Da outra vez eles colocaram muito dinheiro (em subsídios) e mesmo assim a indústria perdeu participação no PIB. Por que agora vai ser diferente? Eu acho que tem problemas estruturais que explicam a dificuldade da indústria no Brasil. Por exemplo, ela não consegue exportar. Muitos falam dos subsídios agrícolas, mas a agricultura exporta, e muito. Por que dar, por exemplo, subsídio para a indústria automobilística se ela não consegue exportar o nosso carro? O dia em que a nossa indústria conseguir fazer um carro que compita no mercado internacional, aí vou achar que algum tipo de subsídio ou política vai fazer sentido. Mas essa é uma indústria que está conosco há 60 anos, e tirando um ou outro período relativamente curto, nunca gerou capacidade exportadora.

De que problemas estruturais o sr. está falando?

O primeiro é que o Brasil é um país de juro alto, e é alto porque nossa taxa de poupança é baixa e o risco país é elevado. Temos de resolver o problema fiscal, temos de aumentar a poupança do setor público, resolver os problemas da falta de mão de obra qualificada e do sistema educacional. Muitos ficam o tempo todo falando de Coreia, Taiwan, Japão, e China. Olhem a qualidade educacional desses lugares, a taxa de poupança. Eles não têm indústria porque têm subsídio, mas porque trabalham muito, estudam muito, poupam muito.

Baixar preço de R$ 70 mil para R$ 60 mil, significa dar R$ 10 mil para a classe média comprar carro, avalia Pessôa Foto: Hélvio Romero/Estadão

Como avalia as medidas para a volta do ‘carro popular’?

É na mesma linha. Ouvi gente dizendo que essa política está mais bem desenhada, tem contrapartidas de tecnologia, conteúdo nacional, mas as últimas políticas para o setor, e que não deram certo como Inovar Auto e Rota 2030 já tinham cláusulas de eficiência energética, de conteúdo local, estímulo a pesquisa e desenvolvimento. Não tem nenhuma novidade no desenho, vão fazer mais do mesmo. Do ponto de vista social é um absurdo. O Brasil é um país pobre, e um bem que custa R$ 70 mil não é para pobre, é para a classe média. Se baixar o preço para R$ 60 mil, significa que vai dar R$ 10 mil para a classe média comprar carro. O carro congestiona nossas vias públicas, polui a cidade, produz efeito estufa e é contra a transição energética. Essa política gera gasto tributário e o ministro Fernando Haddad mais de uma vez disse que o objetivo dele é reduzir o gasto tributário. É uma agenda inversa à do ministro.

No novo plano há mais benefícios para carros mais baratos, com menos emissões e maior conteúdo nacional. Não são contrapartidas importantes?

Acho isso um desastre. Se eu tivesse de fazer essa medida, faria diferente. Eliminaria o requerimento de conteúdo nacional e deixaria trazer peças de fora e montar (o carro) no Brasil, mas com meta de exportação. O problema da indústria brasileira é que a economia globalizou, e uma planta, para ser eficiente, tem de produzir pelo menos 300 mil unidades do mesmo modelo por ano. Para gerar mais escala, precisa ter acesso ao mercado internacional porque só o doméstico não dá escala suficiente. Por outro lado, para exportar o carro precisa de melhor qualidade, e elevados elementos de conteúdo nacional reduzem a qualidade. A política teria de ter como meta incluir a indústria automobilística nas cadeias globais de valor. A Embraer, por exemplo, está na cadeia global, não tem requerimento de conteúdo nacional e é por isso que seu avião é bom. Praticamente metade do seu valor é conteúdo importado.

Aumentar importação não reduziria empregos?

Não, porque a indústria se especializa, compra mais componente de fora, monta e faz alguma etapa melhor aqui dentro e ganha no volume. Ao produzir mais unidades com menor conteúdo nacional, a qualidade é maior e a empresa é capaz de sobreviver sem subsídio, porque se torna competitiva. A única régua para avaliar o sucesso de uma atividade produtiva é a capacidade de acessar o mercado internacional. Se não acessa, o produto é ruim, não vale a pena subsidiar. Qualquer política pública deveria ter como meta forçar as montadoras a acessarem o mercado internacional.

Qual sua opinião sobre o arcabouço fiscal?

Não era o que eu faria, mas acho que está correto, embora tenha alguns problemas graves que limitam muito sua eficácia. A regra aprovada é, essencialmente, a do teto de gastos do (ex-presidente Michel) Temer, um pouco mais complicada. Um grupo político passou anos batendo no Temer, reclamando do teto de gastos, mas ganha a eleição e faz essencialmente o teto de gastos dele, com algumas mudanças. Eu acho que o teto é importante, mas é também importante que um partido de esquerda que ganhou a eleição demonstre essa responsabilidade fiscal. A gente tem de lembrar que o governo petista nunca fez muito ajuste fiscal, ele herdou uma situação fiscal sólida do governo anterior e teve a consciência de mantê-lo, o que é certo. Mas agora precisa construir uma situação fiscal sólida e é muito mais difícil construir do que manter uma situação previamente estabelecida. Acho que o teto de gastos é o primeiro passo, mas é insuficiente.

O que o sr. quer dizer com isso?

Como o ponto de partida já é uma situação fiscal ruim, isso faz com que esse teto não seja capaz de estabilizar a dívida pública. Se ela for aplicado nos quatro anos do governo, as simulações que eu conheço sugerem que a dívida pública vai subir 15 pontos porcentuais do PIB. Vamos sair de uma dívida de 74% do PIB para 89%. O presidente Lula tem um trabalho grande de convencer o Congresso a dar mais receita para ele, mas o Congresso tem se recusado a aumentar carga tributária há duas décadas.

Qual sua avaliação geral do governo Lula?

É um governo que começou com o pé trocado. O Lula é provavelmente a maior liderança política da história do País, é muito experiente, foi eleito três vezes presidente e fez uma sucessora. É uma pessoa que tem um sucesso na política brasileira que ninguém nunca teve. Dado o que acontecia no País, ele avaliou que tinha de começar o governo com o pé no acelerador do gasto público. Com isso, avaliou que tinha de rasgar o ‘livro texto da ciência política’. Segundo o ‘livro’, se começa um mandato com uma dominância da economia sobre a política, ou seja, gastando capital político para arrumar a casa, colhe uma situação melhor no final e termina bem o governo, com uma dominância da política sobre a economia. Ele começou aprovando uma emenda constitucional para colocar R$ 200 bilhões a mais no orçamento e queimou o capital político para gastar mais. De certo vai ter problemas para conseguir governar.

Com todas as dificuldades, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem se saído bem

Qual seria a razão dessa escolha?

Quando ouço cientistas e analistas políticos, a explicação que dão para tentar entender essa escolha é que o presidente Lula avaliou que, dado uma vitória por pequena margem, numa sociedade muito polarizada, deveria haver algumas entregas imediatas do governo, produzir resultados imediatos para a população porque dessa forma conseguiria diluir de alguma maneira essa polarização, esse clima ruim de disputa da sociedade brasileira. Não sei se está certo ou não, mas o ponto é que o governo começou assim, e sobrou um ‘pepinão’ para o ministro da Fazenda, que tem de arrumar essa situação toda.

E que avaliação o sr. faz do ministro Haddad?

Com todas as dificuldades, ele tem se saído bem. A agenda do governo hoje é estabelecida principalmente por ele. O fato de o governo ter uma agenda dá um norte, um caminho, e isso é bom. Qual é a agenda? Marco fiscal, reforma tributária, planejamento tributário, renda. É uma agenda meritória que ataca nossos maiores problemas como desequilíbrio fiscal, baixa produtividade do trabalho e falta de renda. Agora vamos ver quais serão os esforços do presidente Lula no Congresso para conseguir aprovar essa agenda.

Medidas anunciadas pelo governo Lula na quinta-feira, 25, para dar fôlego ao setor industrial, já foram adotadas no passado e não deram certo, avalia o economista Samuel Pessôa. Nos mandatos anteriores, diz ele, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) colocou R$ 400 bilhões em políticas de crédito subsidiado “e, mesmo assim, a indústria perdeu participação no PIB”.

No caso da indústria automobilística, que terá isenções fiscais para voltar a produzir carros populares, ou mais baratos, Pessôa vê como “um desastre” reduzir impostos tendo como uma das regras o maior índice de uso de componentes fabricados no Brasil.

“Eu eliminaria o requerimento de conteúdo nacional e deixaria trazer peças de fora e montar o carro no Brasil, mas com meta de exportação”, diz. “Qualquer política pública deveria ter como meta forçar as montadoras a acessarem o mercado internacional.”

A seguir, leia trechos da entrevista.

Qual sua avaliação sobre as medidas anunciadas para a indústria?

O governo petista, na outra fase no Planalto, colocou R$ 400 bilhões no BNDES para gerar fundos para políticas de crédito subsidiado. Os estudos que conheço mostram que não gerou muitos resultados. Esse governo faz parte de um grupo que ficou à frente do Planalto por 13,5 anos, e volta com as mesmas políticas. Parece que acham que, da outra vez, o resultado foi bom, mas essas políticas geraram a maior crise da história do País. Precisa ver os detalhes das medidas, mas acho que crédito para exportação, por exemplo, deveria ser de natureza diferente, assim como subsidiar compra de máquinas e investimentos.

O que seria mais viável?

Da outra vez eles colocaram muito dinheiro (em subsídios) e mesmo assim a indústria perdeu participação no PIB. Por que agora vai ser diferente? Eu acho que tem problemas estruturais que explicam a dificuldade da indústria no Brasil. Por exemplo, ela não consegue exportar. Muitos falam dos subsídios agrícolas, mas a agricultura exporta, e muito. Por que dar, por exemplo, subsídio para a indústria automobilística se ela não consegue exportar o nosso carro? O dia em que a nossa indústria conseguir fazer um carro que compita no mercado internacional, aí vou achar que algum tipo de subsídio ou política vai fazer sentido. Mas essa é uma indústria que está conosco há 60 anos, e tirando um ou outro período relativamente curto, nunca gerou capacidade exportadora.

De que problemas estruturais o sr. está falando?

O primeiro é que o Brasil é um país de juro alto, e é alto porque nossa taxa de poupança é baixa e o risco país é elevado. Temos de resolver o problema fiscal, temos de aumentar a poupança do setor público, resolver os problemas da falta de mão de obra qualificada e do sistema educacional. Muitos ficam o tempo todo falando de Coreia, Taiwan, Japão, e China. Olhem a qualidade educacional desses lugares, a taxa de poupança. Eles não têm indústria porque têm subsídio, mas porque trabalham muito, estudam muito, poupam muito.

Baixar preço de R$ 70 mil para R$ 60 mil, significa dar R$ 10 mil para a classe média comprar carro, avalia Pessôa Foto: Hélvio Romero/Estadão

Como avalia as medidas para a volta do ‘carro popular’?

É na mesma linha. Ouvi gente dizendo que essa política está mais bem desenhada, tem contrapartidas de tecnologia, conteúdo nacional, mas as últimas políticas para o setor, e que não deram certo como Inovar Auto e Rota 2030 já tinham cláusulas de eficiência energética, de conteúdo local, estímulo a pesquisa e desenvolvimento. Não tem nenhuma novidade no desenho, vão fazer mais do mesmo. Do ponto de vista social é um absurdo. O Brasil é um país pobre, e um bem que custa R$ 70 mil não é para pobre, é para a classe média. Se baixar o preço para R$ 60 mil, significa que vai dar R$ 10 mil para a classe média comprar carro. O carro congestiona nossas vias públicas, polui a cidade, produz efeito estufa e é contra a transição energética. Essa política gera gasto tributário e o ministro Fernando Haddad mais de uma vez disse que o objetivo dele é reduzir o gasto tributário. É uma agenda inversa à do ministro.

No novo plano há mais benefícios para carros mais baratos, com menos emissões e maior conteúdo nacional. Não são contrapartidas importantes?

Acho isso um desastre. Se eu tivesse de fazer essa medida, faria diferente. Eliminaria o requerimento de conteúdo nacional e deixaria trazer peças de fora e montar (o carro) no Brasil, mas com meta de exportação. O problema da indústria brasileira é que a economia globalizou, e uma planta, para ser eficiente, tem de produzir pelo menos 300 mil unidades do mesmo modelo por ano. Para gerar mais escala, precisa ter acesso ao mercado internacional porque só o doméstico não dá escala suficiente. Por outro lado, para exportar o carro precisa de melhor qualidade, e elevados elementos de conteúdo nacional reduzem a qualidade. A política teria de ter como meta incluir a indústria automobilística nas cadeias globais de valor. A Embraer, por exemplo, está na cadeia global, não tem requerimento de conteúdo nacional e é por isso que seu avião é bom. Praticamente metade do seu valor é conteúdo importado.

Aumentar importação não reduziria empregos?

Não, porque a indústria se especializa, compra mais componente de fora, monta e faz alguma etapa melhor aqui dentro e ganha no volume. Ao produzir mais unidades com menor conteúdo nacional, a qualidade é maior e a empresa é capaz de sobreviver sem subsídio, porque se torna competitiva. A única régua para avaliar o sucesso de uma atividade produtiva é a capacidade de acessar o mercado internacional. Se não acessa, o produto é ruim, não vale a pena subsidiar. Qualquer política pública deveria ter como meta forçar as montadoras a acessarem o mercado internacional.

Qual sua opinião sobre o arcabouço fiscal?

Não era o que eu faria, mas acho que está correto, embora tenha alguns problemas graves que limitam muito sua eficácia. A regra aprovada é, essencialmente, a do teto de gastos do (ex-presidente Michel) Temer, um pouco mais complicada. Um grupo político passou anos batendo no Temer, reclamando do teto de gastos, mas ganha a eleição e faz essencialmente o teto de gastos dele, com algumas mudanças. Eu acho que o teto é importante, mas é também importante que um partido de esquerda que ganhou a eleição demonstre essa responsabilidade fiscal. A gente tem de lembrar que o governo petista nunca fez muito ajuste fiscal, ele herdou uma situação fiscal sólida do governo anterior e teve a consciência de mantê-lo, o que é certo. Mas agora precisa construir uma situação fiscal sólida e é muito mais difícil construir do que manter uma situação previamente estabelecida. Acho que o teto de gastos é o primeiro passo, mas é insuficiente.

O que o sr. quer dizer com isso?

Como o ponto de partida já é uma situação fiscal ruim, isso faz com que esse teto não seja capaz de estabilizar a dívida pública. Se ela for aplicado nos quatro anos do governo, as simulações que eu conheço sugerem que a dívida pública vai subir 15 pontos porcentuais do PIB. Vamos sair de uma dívida de 74% do PIB para 89%. O presidente Lula tem um trabalho grande de convencer o Congresso a dar mais receita para ele, mas o Congresso tem se recusado a aumentar carga tributária há duas décadas.

Qual sua avaliação geral do governo Lula?

É um governo que começou com o pé trocado. O Lula é provavelmente a maior liderança política da história do País, é muito experiente, foi eleito três vezes presidente e fez uma sucessora. É uma pessoa que tem um sucesso na política brasileira que ninguém nunca teve. Dado o que acontecia no País, ele avaliou que tinha de começar o governo com o pé no acelerador do gasto público. Com isso, avaliou que tinha de rasgar o ‘livro texto da ciência política’. Segundo o ‘livro’, se começa um mandato com uma dominância da economia sobre a política, ou seja, gastando capital político para arrumar a casa, colhe uma situação melhor no final e termina bem o governo, com uma dominância da política sobre a economia. Ele começou aprovando uma emenda constitucional para colocar R$ 200 bilhões a mais no orçamento e queimou o capital político para gastar mais. De certo vai ter problemas para conseguir governar.

Com todas as dificuldades, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem se saído bem

Qual seria a razão dessa escolha?

Quando ouço cientistas e analistas políticos, a explicação que dão para tentar entender essa escolha é que o presidente Lula avaliou que, dado uma vitória por pequena margem, numa sociedade muito polarizada, deveria haver algumas entregas imediatas do governo, produzir resultados imediatos para a população porque dessa forma conseguiria diluir de alguma maneira essa polarização, esse clima ruim de disputa da sociedade brasileira. Não sei se está certo ou não, mas o ponto é que o governo começou assim, e sobrou um ‘pepinão’ para o ministro da Fazenda, que tem de arrumar essa situação toda.

E que avaliação o sr. faz do ministro Haddad?

Com todas as dificuldades, ele tem se saído bem. A agenda do governo hoje é estabelecida principalmente por ele. O fato de o governo ter uma agenda dá um norte, um caminho, e isso é bom. Qual é a agenda? Marco fiscal, reforma tributária, planejamento tributário, renda. É uma agenda meritória que ataca nossos maiores problemas como desequilíbrio fiscal, baixa produtividade do trabalho e falta de renda. Agora vamos ver quais serão os esforços do presidente Lula no Congresso para conseguir aprovar essa agenda.

Medidas anunciadas pelo governo Lula na quinta-feira, 25, para dar fôlego ao setor industrial, já foram adotadas no passado e não deram certo, avalia o economista Samuel Pessôa. Nos mandatos anteriores, diz ele, o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) colocou R$ 400 bilhões em políticas de crédito subsidiado “e, mesmo assim, a indústria perdeu participação no PIB”.

No caso da indústria automobilística, que terá isenções fiscais para voltar a produzir carros populares, ou mais baratos, Pessôa vê como “um desastre” reduzir impostos tendo como uma das regras o maior índice de uso de componentes fabricados no Brasil.

“Eu eliminaria o requerimento de conteúdo nacional e deixaria trazer peças de fora e montar o carro no Brasil, mas com meta de exportação”, diz. “Qualquer política pública deveria ter como meta forçar as montadoras a acessarem o mercado internacional.”

A seguir, leia trechos da entrevista.

Qual sua avaliação sobre as medidas anunciadas para a indústria?

O governo petista, na outra fase no Planalto, colocou R$ 400 bilhões no BNDES para gerar fundos para políticas de crédito subsidiado. Os estudos que conheço mostram que não gerou muitos resultados. Esse governo faz parte de um grupo que ficou à frente do Planalto por 13,5 anos, e volta com as mesmas políticas. Parece que acham que, da outra vez, o resultado foi bom, mas essas políticas geraram a maior crise da história do País. Precisa ver os detalhes das medidas, mas acho que crédito para exportação, por exemplo, deveria ser de natureza diferente, assim como subsidiar compra de máquinas e investimentos.

O que seria mais viável?

Da outra vez eles colocaram muito dinheiro (em subsídios) e mesmo assim a indústria perdeu participação no PIB. Por que agora vai ser diferente? Eu acho que tem problemas estruturais que explicam a dificuldade da indústria no Brasil. Por exemplo, ela não consegue exportar. Muitos falam dos subsídios agrícolas, mas a agricultura exporta, e muito. Por que dar, por exemplo, subsídio para a indústria automobilística se ela não consegue exportar o nosso carro? O dia em que a nossa indústria conseguir fazer um carro que compita no mercado internacional, aí vou achar que algum tipo de subsídio ou política vai fazer sentido. Mas essa é uma indústria que está conosco há 60 anos, e tirando um ou outro período relativamente curto, nunca gerou capacidade exportadora.

De que problemas estruturais o sr. está falando?

O primeiro é que o Brasil é um país de juro alto, e é alto porque nossa taxa de poupança é baixa e o risco país é elevado. Temos de resolver o problema fiscal, temos de aumentar a poupança do setor público, resolver os problemas da falta de mão de obra qualificada e do sistema educacional. Muitos ficam o tempo todo falando de Coreia, Taiwan, Japão, e China. Olhem a qualidade educacional desses lugares, a taxa de poupança. Eles não têm indústria porque têm subsídio, mas porque trabalham muito, estudam muito, poupam muito.

Baixar preço de R$ 70 mil para R$ 60 mil, significa dar R$ 10 mil para a classe média comprar carro, avalia Pessôa Foto: Hélvio Romero/Estadão

Como avalia as medidas para a volta do ‘carro popular’?

É na mesma linha. Ouvi gente dizendo que essa política está mais bem desenhada, tem contrapartidas de tecnologia, conteúdo nacional, mas as últimas políticas para o setor, e que não deram certo como Inovar Auto e Rota 2030 já tinham cláusulas de eficiência energética, de conteúdo local, estímulo a pesquisa e desenvolvimento. Não tem nenhuma novidade no desenho, vão fazer mais do mesmo. Do ponto de vista social é um absurdo. O Brasil é um país pobre, e um bem que custa R$ 70 mil não é para pobre, é para a classe média. Se baixar o preço para R$ 60 mil, significa que vai dar R$ 10 mil para a classe média comprar carro. O carro congestiona nossas vias públicas, polui a cidade, produz efeito estufa e é contra a transição energética. Essa política gera gasto tributário e o ministro Fernando Haddad mais de uma vez disse que o objetivo dele é reduzir o gasto tributário. É uma agenda inversa à do ministro.

No novo plano há mais benefícios para carros mais baratos, com menos emissões e maior conteúdo nacional. Não são contrapartidas importantes?

Acho isso um desastre. Se eu tivesse de fazer essa medida, faria diferente. Eliminaria o requerimento de conteúdo nacional e deixaria trazer peças de fora e montar (o carro) no Brasil, mas com meta de exportação. O problema da indústria brasileira é que a economia globalizou, e uma planta, para ser eficiente, tem de produzir pelo menos 300 mil unidades do mesmo modelo por ano. Para gerar mais escala, precisa ter acesso ao mercado internacional porque só o doméstico não dá escala suficiente. Por outro lado, para exportar o carro precisa de melhor qualidade, e elevados elementos de conteúdo nacional reduzem a qualidade. A política teria de ter como meta incluir a indústria automobilística nas cadeias globais de valor. A Embraer, por exemplo, está na cadeia global, não tem requerimento de conteúdo nacional e é por isso que seu avião é bom. Praticamente metade do seu valor é conteúdo importado.

Aumentar importação não reduziria empregos?

Não, porque a indústria se especializa, compra mais componente de fora, monta e faz alguma etapa melhor aqui dentro e ganha no volume. Ao produzir mais unidades com menor conteúdo nacional, a qualidade é maior e a empresa é capaz de sobreviver sem subsídio, porque se torna competitiva. A única régua para avaliar o sucesso de uma atividade produtiva é a capacidade de acessar o mercado internacional. Se não acessa, o produto é ruim, não vale a pena subsidiar. Qualquer política pública deveria ter como meta forçar as montadoras a acessarem o mercado internacional.

Qual sua opinião sobre o arcabouço fiscal?

Não era o que eu faria, mas acho que está correto, embora tenha alguns problemas graves que limitam muito sua eficácia. A regra aprovada é, essencialmente, a do teto de gastos do (ex-presidente Michel) Temer, um pouco mais complicada. Um grupo político passou anos batendo no Temer, reclamando do teto de gastos, mas ganha a eleição e faz essencialmente o teto de gastos dele, com algumas mudanças. Eu acho que o teto é importante, mas é também importante que um partido de esquerda que ganhou a eleição demonstre essa responsabilidade fiscal. A gente tem de lembrar que o governo petista nunca fez muito ajuste fiscal, ele herdou uma situação fiscal sólida do governo anterior e teve a consciência de mantê-lo, o que é certo. Mas agora precisa construir uma situação fiscal sólida e é muito mais difícil construir do que manter uma situação previamente estabelecida. Acho que o teto de gastos é o primeiro passo, mas é insuficiente.

O que o sr. quer dizer com isso?

Como o ponto de partida já é uma situação fiscal ruim, isso faz com que esse teto não seja capaz de estabilizar a dívida pública. Se ela for aplicado nos quatro anos do governo, as simulações que eu conheço sugerem que a dívida pública vai subir 15 pontos porcentuais do PIB. Vamos sair de uma dívida de 74% do PIB para 89%. O presidente Lula tem um trabalho grande de convencer o Congresso a dar mais receita para ele, mas o Congresso tem se recusado a aumentar carga tributária há duas décadas.

Qual sua avaliação geral do governo Lula?

É um governo que começou com o pé trocado. O Lula é provavelmente a maior liderança política da história do País, é muito experiente, foi eleito três vezes presidente e fez uma sucessora. É uma pessoa que tem um sucesso na política brasileira que ninguém nunca teve. Dado o que acontecia no País, ele avaliou que tinha de começar o governo com o pé no acelerador do gasto público. Com isso, avaliou que tinha de rasgar o ‘livro texto da ciência política’. Segundo o ‘livro’, se começa um mandato com uma dominância da economia sobre a política, ou seja, gastando capital político para arrumar a casa, colhe uma situação melhor no final e termina bem o governo, com uma dominância da política sobre a economia. Ele começou aprovando uma emenda constitucional para colocar R$ 200 bilhões a mais no orçamento e queimou o capital político para gastar mais. De certo vai ter problemas para conseguir governar.

Com todas as dificuldades, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, tem se saído bem

Qual seria a razão dessa escolha?

Quando ouço cientistas e analistas políticos, a explicação que dão para tentar entender essa escolha é que o presidente Lula avaliou que, dado uma vitória por pequena margem, numa sociedade muito polarizada, deveria haver algumas entregas imediatas do governo, produzir resultados imediatos para a população porque dessa forma conseguiria diluir de alguma maneira essa polarização, esse clima ruim de disputa da sociedade brasileira. Não sei se está certo ou não, mas o ponto é que o governo começou assim, e sobrou um ‘pepinão’ para o ministro da Fazenda, que tem de arrumar essa situação toda.

E que avaliação o sr. faz do ministro Haddad?

Com todas as dificuldades, ele tem se saído bem. A agenda do governo hoje é estabelecida principalmente por ele. O fato de o governo ter uma agenda dá um norte, um caminho, e isso é bom. Qual é a agenda? Marco fiscal, reforma tributária, planejamento tributário, renda. É uma agenda meritória que ataca nossos maiores problemas como desequilíbrio fiscal, baixa produtividade do trabalho e falta de renda. Agora vamos ver quais serão os esforços do presidente Lula no Congresso para conseguir aprovar essa agenda.

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