BRASÍLIA - À frente de vários estudos de calibragem do impacto da reforma tributária nos últimos anos, o economista Sergio Gobetti afirma que a resistência à aprovação da proposta pela Câmara parte não só de setores econômicos específicos, que se beneficiam do modelo atual, e de empresas que ganham com a guerra fiscal, mas também de corporações profissionais, tanto no setor público quanto privado.
Um exemplo são as chamadas sociedades uniprofissionais, formadas, entre outros, por advogados, tributaristas, médicos, engenheiros, arquitetos e dentistas. Ele destaca que essas sociedades, desde a década de 60, são beneficiadas por um regime especial de tributação que lhes permite pagar o ISS em valor fixo por sócio, privilégio este que reduz a quase zero a alíquota efetiva do imposto em relação ao faturamento.
”É natural que os beneficiados por esse modelo estejam descontentes com uma reforma que promove maior uniformidade, mas o problema é quando essas pessoas escondem seus interesses individuais e criticam as mudanças como se estivessem falando em prol da coletividade e defendendo valores universais”, diz o pesquisador, que atua na secretaria de Fazenda do governo do Estado do Rio Grande do Sul.
Em entrevista ao Estadão, Gobetti diz que o aumento das exceções para quem tem direito à alíquota reduzida não fere o espírito da reforma. Ele rebate as críticas dos prefeitos das capitais à proposta e diz que ela amplia a autonomia tributária da maioria dos municípios. “Se entendermos autonomia como o poder real de tributar bens e serviços consumidos por sua população”, destaca. Para Gobetti, a transição federativa é fundamental para desconstruir o discurso de alguns prefeitos e governadores que reclamam que seus municípios ou estados perderiam.
Segundo ele, o modelo tributário atual, no caso do ISS, tributo cobrado pelos municípios, é que restringe muito a autonomia dos prefeitos, porque limita o poder de tributar aos municípios em que estão instaladas as sedes das empresas prestadoras de serviços. “Com isso, 60% dos municípios do Brasil não conseguem arrecadar nem R$ 100 por habitante no ano, enquanto, no outro extremo, temos um pequeno grupo de 61 cidades e apenas duas capitais que arrecadam mais de R$ 1 mil por habitante no ano.” A seguir, os principais trechos da entrevista.
Como avalia o texto da reforma tributária apresentado pelo relator?
Acho que as linhas mestras estão dentro do esperado e são muito positivas. A reforma proposta dá um passo enorme na direção de maior simplificação, menores distorções econômicas e federativas, com efeitos positivos sobre o PIB e sobre o bem estar social, ao se promover uma tributação mais uniforme entre os setores econômicos e uma distribuição de receita menos desigual entre os entes da federação.
Mas essa maior uniformidade não vai aumentar a carga tributária para 99%, como alega o ex-secretário da Receita Everardo Maciel?
Essa afirmação não tem qualquer base na realidade. Diferentes estudos técnicos recentes mostram que a atual diversidade de carga tributária, além de injustificável do ponto de vista econômico, beneficia em geral os mais ricos. São as famílias mais ricas que ganham com a menor tributação dos serviços, por exemplo. E são os pobres que mais são penalizados com a maior tributação de mercadorias. Logo, a maior uniformização da carga tributária é uma medida progressiva, que beneficia 90% da população, ao contrário do sugerido pelo ex-secretário.
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Essa uniformidade não ficou comprometida com tantas atividades e produtos que terão alíquota reduzida de 50%?
Não teremos uniformidade plena de alíquota, como seria o desejável por tudo que aprendemos nas últimas décadas de IVA (Imposto sobre Valor Agregado), mas isso não compromete o espírito da reforma. Teremos uma carga tributária mais uniforme do que hoje e o mais importante: tratamento em geral isonômico para bens e serviços.
A transição dos tributos antigos para os propostos na reforma se dará em oito anos, com dois anos de carência. Não ficou longa?
A transição mais longa para o fim dos tributos também não era o ideal, mas se essa era uma condição para viabilizar a aprovação da reforma, menos mal. Já a transição federativa ficou dentro do esperado e é fundamental para desconstruir o discurso de alguns prefeitos e governadores que reclamam que seus municípios ou Estados perderiam. Com essa transição longa e com os efeitos do crescimento econômico sobre a receita do futuro imposto, o índice de perdedores é muito pequeno. Ou seja, pouquíssimos municípios, cerca de 2%, devem arrecadar com a reforma menos do que arrecadariam sem a reforma.
O cashback funciona? As pessoas de baixa renda não terão de pagar mais caro pelas coisas para depois receber de volta?
Não. Em primeiro lugar, porque os pobres não vão pagar mais caro. Um ou outro item de consumo até pode ficar mais caro, mas a maioria deve ficar mais barato. Em segundo lugar, é possível talvez fazer a devolução instantaneamente, como em alguns países. No Rio Grande do Sul, por exemplo, estamos inclusive devolvendo antecipadamente a maior parte do imposto que incide sobre os alimentos. Devolvemos um valor fixo antecipadamente e uma parcela variável depois, proporcional ao consumo registrado nas notas fiscais.
Esse efeito positivo para os contribuintes ocorre inclusive sem o cashback?
Sim, mesmo sem cashback nossos estudos mostram que um IVA com menor diferenciação de alíquotas seria melhor para os pobres do que o modelo atual.Quando incluímos nas simulações a devolução de imposto para os mais pobres, a regressividade cai mais ainda.
E sobre a alegação de que a reforma reduz a autonomia, especialmente dos municípios?
Não é verdade. Eu diria que a reforma até amplia a autonomia tributária da maioria dos municípios, se entendermos a autonomia como o poder real de tributar bens e serviços consumidos por sua população. O modelo tributário atual, no caso do ISS, é que restringe muito a autonomia dos municípios, porque limita o poder de tributar aos municípios em que estão instaladas as sedes das empresas prestadoras de serviços. Com isso, 60% dos municípios do Brasil não conseguem arrecadar nem R$ 100 por habitante no ano; enquanto, no outro extremo, temos um pequeno grupo de 61 cidades e apenas duas capitais que arrecadam mais de R$ 1 mil por habitante no ano. Esses poucos municípios ricos estão, na prática, tributando o consumo dos municípios mais pobres, apropriando-se da renda alheia, digamos assim.
Isso é injusto?
Sim, é muito injusto, porque o imposto deveria ficar, via de regra, no local em que vivem as pessoas que pagaram por ele. E essa distorção é corrigida com a reforma tributária. A aplicação do princípio do destino prevê justamente que o imposto fique com os municípios e Estados onde ocorreu o consumo. Além de mais justo, esse sistema beneficia pelo menos 85% dos municípios brasileiros, segundo nossas estimativas.
Mas e como lidar com as perdas dos 15% restantes dos municípios?
A reforma lida com esse problema por meio de uma regra de transição. A proposta da transição é que uma parcela decrescente da receita do novo imposto siga sendo distribuída pelas regras atuais, enquanto outra parcela crescente (mas inicialmente menor) seria submetida ao princípio do destino, que beneficia os consumidores. Com isso, a mudança na distribuição ocorre lentamente, de modo que, com o PIB e a arrecadação crescendo, ninguém perde receita. Alguns ganham mais do que os outros, mas ninguém perde.
Você quer dizer que não perde porque a arrecadação aumentaria. Mas esses municípios, por exemplo, a capital paulista, não perdem por receberem menos do que receberiam caso não houvesse a reforma?
Mesmo nesta perspectiva, a maioria desses municípios não perde. Na nossa conta, dos 15% de potenciais perdedores, menos de 2% efetivamente correm o risco de ter sob a reforma uma receita menor do que teriam sem a reforma. A capital paulista está entre essas cidades. Isso porque as mudanças no sistema de tributação devem gerar maior crescimento econômico, compensando a redução da fatia do bolo. Nossas estimativas indicam que, com a reforma, a receita de São Paulo daqui 20 anos seria 2% a 8% maior do que sem reforma. O maior tamanho do bolo compensa a menor fatia proporcional.
Alguns críticos da reforma dizem que essa promessa de maior crescimento econômico seria uma fábula.
Não é verdade. A conclusão de que a reforma produzirá maior crescimento deriva da boa ciência econômica e, antes disso, da simples intuição econômica. O sistema tributário apresenta tantas distorções que, ao eliminá-las, como previsto pelas diretrizes já apresentadas, não há dúvida de que teremos efeitos positivos sobre a produtividade e sobre o PIB. Pode haver incerteza sobre quanto será o maior crescimento, mas todos estudos econômicos produzidos até agora convergem em reconhecer que há efeitos positivos.
A que você atribui tanta desconfiança e resistência de alguns setores?
A reforma tributária é sempre um tema polêmico. Há mais de 30 anos tentamos aprovar mudanças parecidas com as propostas atuais, baseadas no modelo de IVA, e não conseguimos pela oposição dos grupos de interesse de diferentes naturezas. São interesses não só de setores econômicos específicos, que se beneficiam do modelo atual, e de empresas que ganham com a guerra fiscal, mas também de corporações profissionais, tanto no setor público quanto privado. Um exemplo disso são as sociedades uniprofissionais, que desde a década de 60 são beneficiadas por um regime especial de tributação que lhes permite pagar o ISS em valor fixo por sócio, privilégio este que reduz a quase zero a alíquota efetiva do imposto em relação ao faturamento. É natural que os beneficiados por esse modelo estejam descontentes com uma reforma que promove maior uniformidade, mas o problema é quando essas pessoas escondem seus interesses individuais e criticam as mudanças como se estivessem falando em prol da coletividade e defendendo valores universais.