Única mulher negra no comando de uma empresa do Ibovespa, Tarciana Medeiros diz que teve suas primeiras promoções a cargos de liderança após o Banco do Brasil adotar, em 2017, uma política que determinava que a mesma proporção de mulheres inscritas em processos de seleção de gestores deveria avançar para a segunda fase. “Eu sou fruto de ação afirmativa feita pelo banco”, destaca a presidente do BB.
O banco é hoje uma das empresas listadas no Ibovespa com maior diversidade de gênero na liderança, segundo levantamento do Estadão. Dentre essas companhias, é a única com 50% do conselho de administração formado por mulheres. Na diretoria, são 28%.
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Antes de Tarciana assumir a presidência do BB, a presença feminina já era maior do que a média. Em 2022, das cadeiras do conselho, 38% eram ocupadas por mulheres; na diretoria, eram 11%. Após a chegada da executiva, em 2023, esses números subiram ainda mais com a inserção de medidas de diversidade na estratégia corporativa do banco. Com isso, a gerência de diversidade passou, por exemplo, a ter a mesma importância da gerência de crédito.
“Quando isso (a inclusão) não faz parte da estratégia corporativa, as iniciativas podem acabar. Mas, se está na estrutura organizacional, quem chega depois (à liderança) tem de partir desse ponto”, diz Tarciana.
Primeira presidente mulher do BB em 215 anos de instituição, Tarciana conta que, em sua trajetória, chegou a levar colegas a reuniões para não ser a única mulher. “É uma cultura instalada de não ouvir (a mulher), de não dar credibilidade, de não dar atenção. Em muitas situações, precisei levar outras colegas na reunião mesmo que elas não tivessem nada a ver com o assunto. Ficavam quietas, mas eu colocava outras mulheres para não falar sozinha.”
A seguir, trechos da entrevista:
O Banco do Brasil lançou seu programa de diversidade em março de 2023. Antes disso, os números de mulheres na liderança já eram melhores que os da média. O que era feito antes para aumentar a diversidade?
O banco sempre foi de vanguarda na busca por inclusão e equidade. Eu sou fruto de ação afirmativa feita pelo banco em 2017, um programa de inclusão de lideranças femininas. O processo que participei tinha uma regra de proporcionalidade. Antes dele, por exemplo, 40% do quadro do banco era formado por mulheres. Nos processos (seletivos para cargos mais elevados), só homens passavam da primeira para a segunda fase. Esse programa colocou uma regra que dizia que a mesma proporcionalidade de inscritas tinha de haver na segunda fase. Quando me inscrevi para um cargo de gerência, eram 28% de mulheres. Esse é um exemplo de que o banco tem políticas há muito tempo. Por exemplo, há mais de 20 anos, você pode colocar um parceiro homoafetivo no plano de saúde.
O que mudou em 2023 então?
Colocamos todas essas iniciativas dentro da estratégia corporativa do banco. Passamos a ter uma gerência executiva que foi aprovada em todas as instâncias da governança. Essa equipe de diversidade tem, na governança do banco, o mesmo peso da gerência executiva de crédito. Quando isso não faz parte da estratégia corporativa, as iniciativas podem acabar. Mas, se está na estrutura organizacional, o executivo que chega depois tem de partir desse ponto.
Quais políticas o banco adotou foram chaves para se ter uma liderança diversa?
A principal mudança é essa: aprovar a diversidade na estratégia corporativa. Aí você tem equipe, gerência, liderança e orçamento. Nós também nos tornamos embaixadores de três iniciativas do Pacto Global da ONU (nas quais, o banco se comprometeu a ter 30% de mulheres na liderança até 2025, 30% de pessoas negras no mesmo prazo e 100% dos funcionários com salário digno até 2030). Quando você se torna embaixador, assume um compromisso público com metas. Aí é preciso disciplina na execução. Outra coisa é que é preciso intencionalidade nos processos seletivos.
A empresa consegue mensurar se o aumento de diversidade trouxe resultados na operação?
A partir do fim deste ano, poderemos fazer um cálculo. Mas, quando a gente se envolve com olhares mais diversos, a probabilidade de fazer algo e precisar voltar para ajustar essa solução é mínima.
A sra. é a primeira mulher a comandar o Banco do Brasil. Em outros momentos da sua carreira, havia mulheres no seu nível hierárquico?
Fui a única em vários momentos da minha carreira. Quando me tornei gerente de negócios da superintendência pela primeira vez, eu era a única mulher nessa função no Estado. No País, éramos quatro entre 62 pessoas. Quando me tornei executiva na diretoria, era a única mulher nessa função, dentre 14 pessoas. Depois, quando o banco iniciou esse processo de ações mais afirmativas, aí a gente começou a ver mais mulheres em cargos executivos. Ainda assim, éramos poucas, umas 10 ou 12. Hoje somos mais de 40. Até 2023, tínhamos quatro mulheres diretoras no banco e uma vice-presidente. A partir de 2023, dos 12 cargos de gestão em diretorias que foram abertos, nove foram ocupados por mulheres. No nosso conselho diretor, pela primeira vez temos três mulheres. Então, ao longo da carreira, fui só eu muitas e muitas vezes. Não só naquela função, naquela unidade, mas também quando precisava participar de alguma reunião era comum eu ser a única mulher da sala.
A sra. se sentia ouvida nessas reuniões?
É uma cultura instalada de não ouvir, de não dar credibilidade, de não dar atenção, porque eu era a única. Em muitas situações, precisei levar outras colegas na reunião mesmo que elas não tivessem nada a ver com o assunto. Iam várias mulheres na reunião. Ficavam quietas, mas eu colocava outras mulheres para não falar sozinha. Assisti isso em um filme. Gostei e passei a fazer.
Que filme era?
Erin Brockovich. No filme, eles precisam fazer uma reunião, mas não tem advogados suficientes no escritório. Ela manda todo mundo colocar blazer e, quando chega a turma no escritório, tem várias pessoas na sala. Acham que todo mundo é advogado. Era mais ou menos isso. Mas eu também sempre busquei me fazer ouvir. Uma coisa interessante é que, ao longo da carreira, os colegas passaram a respeitar. Mas você se fazer respeitar é difícil, leva tempo. Te diria que, hoje, as colegas que estão sendo alçadas a cargos de liderança vão encontrar uma situação de respeito e de receptividade melhor do que o que eu encontrei quando cheguei.
Levantamento do ‘Estadão’ mostra que o crescimento do número de mulheres na liderança do Ibovespa perdeu força. Entre maio de 2022 e maio de 2023, a participação feminina havia crescido 14,5% nas diretorias e 22% nos conselhos de administração. Nos 12 meses seguintes, esses números foram 1,3% e 3,5%, respectivamente. A sra. percebe uma perda de ritmo na inclusão?
Existe um mandato dos conselhos. No ano passado, as pessoas assumiram os cargos. Esse é um ano de manutenção dos cargos. Crescer em relação ao ano anterior é muito interessante, significa que quem estava ficou e que chegaram novas. Isso é normal. Se em um ano eu tenho muitas posses novas; no outro, tenho um porcentual menor. A tendência é que, em 2025, esse porcentual cresça novamente, porque aí tenho dois anos de mandato. Para 2025, quando o mandato tiver acabando, aí teremos esse porcentual renovado. O que é preocupante é se, em 2025, esse número for negativo, porque significará que perdemos cargos.
Se a participação das mulheres na alta liderança é pequena, a de mulheres negras é ainda menor. Como o setor corporativo está tratando a questão?
A questão de gênero é uma pauta mais madura, discutida há mais tempo e com mais políticas já implementadas. A inclusão racial é uma pauta que precisa avançar muito. A gente (no Banco do Brasil) tem trabalhado bastante nesse sentido. Quando a gente fala da inclusão racial, tem um passo antes que precisa ser dado antes: a pessoa se declarar negra, saber que é negra. Tem todo um trabalho de letramento e conscientização que precisa ser feito. No Banco do Brasil, fizemos palestras e programas de capacitação. A partir disso, evoluímos para uma segunda etapa, que foi buscar dos funcionários a autodeclaração racial. Na terceira etapa, estamos empreendendo um programa de inclusão para lideranças negras, porque percebemos que há um abismo entre a quantidade de colegas brancos e negros na liderança. Está em andamento esse processo para a inclusão de 300 lideranças negras. Agora existem outros passos que precisam ser dados. Em editais de convocação de empresas terceirizadas, estamos colocando cláusulas de equidade e de inclusão racial. Estamos incentivando prestadores de serviço e nossos clientes. É um movimento que precisa acontecer dentro e fora do banco, mas não é uma pauta simples. A gente precisa encarar. Costumo brincar que, mais do que iniciativas, a gente tem de ter “acabativas”.
Falamos das ações do setor privado para aumentar a diversidade, qual a responsabilidade do setor público e como avalia a atuação do governo nessa área?
A minha nomeação, por si só, é um ato afirmativo intencional do presidente Lula. Ele buscou quem tinha capacidade para assumir o cargo e me nomeou. Quando olho no governo, a criação do Ministério da Mulher, do Ministério da Igualdade Racial, do Ministério dos Direitos Humanos, do Ministério dos Povos Indígenas, com direcionamento de verbas específicas, com ações, com investimento para causas femininas, são exemplos de políticas públicas que estão sendo colocadas em prática. Outra coisa: a lei da igualdade salarial está feita. Agora cabe a nós, empresas, colocar em prática. Tenho percebido uma disponibilidade do presidente Lula na causa da busca por equidade. Todas as oportunidades que o presidente tem, ele pessoalmente executa essa diretriz.
No STF, ele não indicou mulher.
No STF, acho que teve outras questões. Mas o que tenho percebido é que, nas oportunidades que ele tem, tem feito. Gosto de analisar o que está sendo feito e é inegável que o que está sendo feito agora é mais do que foi feito nos 215 anos do banco. Tem muito ainda a ser feito, mas, pela primeira vez, vi muito sendo feito por iniciativa do governo federal diretamente.