Zeina Latif: Saldo da reforma tributária é positivo, mas fica gosto amargo com número de exceções


Economista avalia que texto aprovado na Câmara trouxe muitas concessões para vários setores e que País poderia ter colhido uma reforma melhor em 2019, quando o texto da PEC foi apresentado

Por Luiz Guilherme Gerbelli
Foto: Taba Benedicto/Estadão
Entrevista comZeina LatifSócia-diretora da Gibraltar Consulting e doutora em economia pela Universidade de São Paulo

A economista Zeina Latif avalia que a reforma tributária aprovada na Câmara dos Deputados representa um claro avanço em relação ao sistema atual, mas deixa um gosto “amargo” por causa da quantidade de exceções. Na leitura dela, o País perdeu o timing para aprovar uma mudança mais positiva em 2019, quando o texto da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) foi apresentado.

“O saldo é positivo, mas tem, sim, um gosto amargo do timing perdido em 2019 e que acabou abrindo espaço para o fortalecimento de demandas que não deveriam, em condições ideais, serem atendidas”, afirma.

continua após a publicidade

No cenário macroeconômico, ela vê o Brasil bem posicionado com um quadro confortável na economia internacional e por uma acomodação das expectativas com o terceiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). “Se a gente vai colher todos os frutos, são outros quinhentos”, diz Zeina, sócia-diretora da Gibraltar Consulting.

Reforma tributária aprovada na Câmara dos Deputados foi positiva, mas foram muitas concessões, diz Zeina Foto: TABA BENEDICTO / ESTADAO

A seguir os principais trechos da entrevista concedida ao Estadão.

continua após a publicidade

Qual é a avaliação da sra. sobre a reforma tributária?

Foi um passo importante naquela linha da reforma possível. Fica a pergunta: e se esperasse um pouco mais e houvesse mais debate público, será que teríamos menos concessões? Eu temo que não. A primeira coisa é que tem janela de oportunidade, e o timing agora é valioso. É o início de um governo. Depois, as coisas ficam atrapalhadas, mais difíceis politicamente. E, na minha visão, ter perdido essa janela em 2019 (ano em a Propostas de Emenda à Constituição foi apresentada na Câmara dos Deputados) saiu caro.

O que teria sido diferente se o governo passado tivesse aprovado uma reforma em 2019?

continua após a publicidade

Havia condições de uma reforma mais ambiciosa, com um IVA (Imposto sobre Valor Agregado) único, nacional, não o dual. O fato de ser o dual (um para União e outro para Estados e municípios) trouxe várias complicações. Se fosse o IVA único, isso não estaria acontecendo. Não haveria essa dor de cabeça de discutir, por exemplo, o conselho (federativo). Seria outro desenho. Lá atrás, eu acho poderia ser uma reforma com menos concessões. Na hora, em que vai avançando, os vários grupos se organizam e eles têm poder de veto. Às vezes, perder o timing de uma reforma custa caro. Eu acho que é o caso agora. De qualquer forma, não podia perder essa (atual) janela de oportunidade. Mesmo com as concessões, valeu a pena. Claro que tem de ver como vai ser no Senado.

Como a sra. avalia a quantidade de concessões na reforma?

Foram muitas concessões de última hora, coisas que não têm cabimento. Foram concessão para igrejas, exceções para setores que não têm sentido, ligadas ao turismo e à classe artística, algumas na reta final, e a possibilidade de os Estados criarem uma contribuição para os seus fundos com o objetivo de compensar o fim da guerra fim da guerra fiscal. Foi demais. E uma coisa que eu acho que pesou é a própria conjuntura política.

continua após a publicidade

A sra. poderia detalhar?

Os grupos com mais resistências eram, justamente, os ligados à oposição. Foi preciso ceder. O saldo é positivo, mas tem, sim, um gosto amargo do timing perdido em 2019 e que acabou abrindo espaço para o fortalecimento de demandas que não deveriam, em condições ideais, serem atendidas. E acho que a conjuntura política tem peso nisso. Eu entendo que, no final, houve um empenho do governo. Não houve como ter um maior protagonismo do Lula. Não sei qual foi a intenção, mas uma possível leitura é que, num ambiente, ainda polarizado, talvez, tenha sido melhor ter evitado esse protagonismo.

É um governo que ainda tenta construir uma base sólida no Congresso, mas grupos de interesses não são novidades. Como enfrentá-los?

continua após a publicidade

No fundo, essa é a discussão de o País precisar de uma reforma política. Somos uma democracia eleitoral, mas, do ponto de vista de conseguir traduzir os anseios da sociedade nas decisões de política pública e do Congresso, tem um monte de fio solto. É um sistema político que não cumpre bem esse papel. Temos desde as bancadas, que distorcem a representatividade, a grupos que são associados a corporações. São saltos na nossa democracia que a gente precisa dar. A questão não se resume, portanto, ao fato de o governo não ter base ampla. E tem um outro lado da história: a disciplina partidária se enfraqueceu nesses esquemas de emendas parlamentares.

Reforma tem potencial para melhorar ambiente de negócios, afirma Zeina Foto: TABA BENEDICTO / ESTADAO

Como a sra. avalia o papel da reforma para melhorar no ambiente de negócios e ajudar o País a crescer mais?

continua após a publicidade

Claro que a reforma tem potencial para melhorar o ambiente de negócios. O tamanho disso é difícil de ter uma noção, até porque vai depender muito de decisões que vão vir ainda no projeto de lei complementar. O Brasil tem um exército de profissionais para lidar com a insegurança jurídica e a questão tributária. Tudo isso é custo para as empresas. É um recurso que você está liberando para as empresas fazerem outras coisas para ganhar produtividade. Toda essa discussão de produtividade do País começa nas empresas.

Os números da economia neste ano estão melhores do que o esperado. Qual é a avaliação da sra. em relação ao quadro macroeconômico?

Os economistas, principalmente os mais velhos que viram o governo Lula, tem uma brincadeira que é a seguinte: tem de colocar o fator sorte quando você vai fazer a projeção para Lula. Tem um quadro favorável do ponto de vista internacional. Não é aquele espetacular como foi o primeiro mandato do Lula. Ou mesmo do segundo, que teve a crise global, mas que não foi uma crise perversa para países emergentes. Não é isso, mas é um quadro bastante confortável para países como o Brasil.

O que explica esse cenário mais favorável?

Toda a pressão de custos por causa de commodities, por causa do comércio, estabilizou. Isso tira uma pressão muito grande. É um comércio mundial que anda de lado, mas que permite um alívio na inflação. Ao mesmo tempo, apesar dos discursos dos bancos centrais preocupados com a resistência da inflação de serviços e dos núcleos, é difícil enxergar um choque de juros mais significativo. O quadro macroeconômico não é ruim para emergentes e tem ainda atenuantes para o Brasil.

Quais são esses atenuantes para a economia brasileira?

A China está num momento de rebalanceamento do seu crescimento, desacelerando a economia, mas não o consumo das famílias. O plano do Xi Jinping é estimular o aumento paulatino do padrão de vida, o que deixa o nosso agro numa posição mais confortável. A gente tem também toda essa questão ambiental que coloca o Brasil em condições de receber recursos de fora. O País é uma democracia. O Brasil está bem posicionado. Se a gente vai colher todos os frutos, são outros quinhentos. E essas questões de inflação, juros e fiscal, se, antes, impactavam muito a economia brasileira, hoje, o investidor vê esses problemas mundo a fora. Isso reduz um pouco, no relativo, a preocupação com os desequilíbrios macroeconômicos do Brasil.

E o que tem contribuído no quadro interno?

Estou no grupo dos economistas que acha que, do Temer para cá, o País tem acumulado reformas que podem estar ajudando a melhorar o potencial de crescimento. Essas coisas são lentas, não são da noite para o dia. Um exemplo mais concreto é no mercado de trabalho, provavelmente, trazendo ganhos de produtividade e empregabilidade por causa da reforma trabalhista. Não acho que o potencial de crescimento é equivalente ao que foi no passado, como nos governos FHC e no Lula. Mesmo quando a gente fala que a surpresa do PIB foi o agro, é justamente o setor que está com ganhos de produtividade tão forte.

Mas o início do governo foi muito turbulento...

Passada aquela fase mais turbulenta, com muitos discursos e ruídos produzidos por ministros e pelo próprio presidente, tem uma acomodação. No ano passado, a discussão era que o Banco Central poderia cortar juros mais rapidamente em 2023, e não foi possível por causa dos próprios ruídos do governo. Entendo a posição do Banco Central, mas, para ser honesta, eu acho que já poderia ter cortado os juros.

O corte poderia ter ocorrido na última reunião?

Já tinha condições. Eu sei que o Banco Central não tinha sinalizado, tem toda essa questão da sinalização, mas eu acho que caberia até uma surpresa, um (corte de) 25 pontos, mesmo que fosse no dissenso. Mas, enfim, tudo isso para dizer que, até então, eu concordei e achei adequada a postura do BC mais conservadora.

Por quê?

Existiam várias fontes de preocupação possível. Num quadro de desancoragem de expectativas por causa do fiscal, dos ataques ao Banco Central e das discussões sobre mudança de meta, somado a uma potencial de dor de cabeça da inflação de serviços, o BC teve de ser mais duro. O fato é que essas coisas foram se desmontando. No final, acho que o mercado resgatou de certa forma coisas que a gente já viu no passado. Eu me lembro que, na época do Henrique Meirelles (presidente do BC entre 2003 e 2010), o Lula reclamava do Banco Central, mas, no final, o BC fez o que tinha de fazer e pronto. A gente viu a reclamação da meta de inflação, mas ela foi mantida. Foi muito ruído, mas a gente percebe que o Lula tem essa dubiedade. Ele trabalha com isso, e o mercado vai incorporando essa informação. Não é tudo que ele fala que vai acontecer.

Mercado vai incorporando dubiedade de Lula, afirma Zeina Foto: TABA BENEDICTO / ESTADAO

E qual é a avaliação da sra. sobre a questão fiscal?

A minha leitura é que aquela PEC da Transição esticou demais a corda, mas acho que não foi à toa que se decidiu anunciar o ministro (da Fazenda) depois. Era uma forma de o ministro não começar desgastado. A credibilidade do Haddad já começaria muito prejudicada. Eu achava - e continuo achando - que foi um cálculo político. Entra o Haddad e qual é a primeira fala dele: ‘eu não vou aceitar esse déficit. A gente vai arrumar um jeito de reduzir’. Ou seja, ele entra se distanciando da discussão e fala que vai fazer um pacote de medidas para aumentar a arrecadação.

O aumento da arrecadação é a melhor forma de se fazer um ajuste?

Não é a melhor e, dependendo da forma, é fonte de insegurança jurídica. O fato é que, naquele momento, aquela sinalização foi importante para os mercados. E aí vem o arcabouço fiscal. O mercado não compra a tese do superávit primário e a tese da contenção da dívida pública, mas acreditava que poderia ser pior. E tem uma coisa implícita - essa é a minha avaliação na formação de expectativas - que é a seguinte: a gente tem um governo que optou - pelo menos por ora - por não fazer reformas estruturais para conter gastos, mas não é o governo Dilma. Não é uma coisa descontrolada. O Lula não é a Dilma, e as instituições são mais fortes do que no passado. É um aprendizado do mercado. Tem de lembrar que o mercado é (formado por) gente muito jovem e que não viveu (outro governo) Lula. Tem esse aprendizado. E um outro ponto que também pode ajudar nessa acomodação é uma avaliação de que na próxima eleição a gente vai ter nomes de centro.

Qual é o impacto dessa avaliação?

O nome de centro é associado com reforma. A leitura é de que esse arcabouço fiscal não é bom, mas o próximo presidente pode fazer melhor. Ninguém vai colocar isso no seu modelo. Não se trata disso. Se trata de gerar maior acomodação de expectativas, porque você fala assim: ‘não é um país que está sem rumo e que vai ficar numa polarização’. Tem um amadurecimento do País.

E quais são os riscos para serem monitorados?

Tem sinalizações de retrocesso, decisões equivocadas. Tem preocupações em relação a excessos no fiscal, no BNDES, medidas que são aprovadas e trazem preocupação. A gente tem de ver qual vai ser a agenda daqui para frente.

Qual deve ser essa agenda até 2026?

Não perder o timing do acordo entre Mercosul e União Europeia. Seria positivo destravar (o acordo), mesmo que não traga efeitos de curto prazo. É importante o Brasil caminhar para diversificar parceiros comerciais, ter esses acordos e repensar o Mercosul numa outra etapa. E na agenda do Ministério da Fazenda, é colocar o arcabouço de pé e a discussão das outras etapas da reforma tributária. A julgar pelo que saiu na imprensa, a preocupação o ministro é fazer a reforma do Imposto de Renda, porque precisa de recursos para cumprir as metas fiscais, mas tem essa questão de desonerar a folha para salários menores, que é uma demanda importante e compreensível dos setores intensivos em mão de obra.

A economista Zeina Latif avalia que a reforma tributária aprovada na Câmara dos Deputados representa um claro avanço em relação ao sistema atual, mas deixa um gosto “amargo” por causa da quantidade de exceções. Na leitura dela, o País perdeu o timing para aprovar uma mudança mais positiva em 2019, quando o texto da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) foi apresentado.

“O saldo é positivo, mas tem, sim, um gosto amargo do timing perdido em 2019 e que acabou abrindo espaço para o fortalecimento de demandas que não deveriam, em condições ideais, serem atendidas”, afirma.

No cenário macroeconômico, ela vê o Brasil bem posicionado com um quadro confortável na economia internacional e por uma acomodação das expectativas com o terceiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). “Se a gente vai colher todos os frutos, são outros quinhentos”, diz Zeina, sócia-diretora da Gibraltar Consulting.

Reforma tributária aprovada na Câmara dos Deputados foi positiva, mas foram muitas concessões, diz Zeina Foto: TABA BENEDICTO / ESTADAO

A seguir os principais trechos da entrevista concedida ao Estadão.

Qual é a avaliação da sra. sobre a reforma tributária?

Foi um passo importante naquela linha da reforma possível. Fica a pergunta: e se esperasse um pouco mais e houvesse mais debate público, será que teríamos menos concessões? Eu temo que não. A primeira coisa é que tem janela de oportunidade, e o timing agora é valioso. É o início de um governo. Depois, as coisas ficam atrapalhadas, mais difíceis politicamente. E, na minha visão, ter perdido essa janela em 2019 (ano em a Propostas de Emenda à Constituição foi apresentada na Câmara dos Deputados) saiu caro.

O que teria sido diferente se o governo passado tivesse aprovado uma reforma em 2019?

Havia condições de uma reforma mais ambiciosa, com um IVA (Imposto sobre Valor Agregado) único, nacional, não o dual. O fato de ser o dual (um para União e outro para Estados e municípios) trouxe várias complicações. Se fosse o IVA único, isso não estaria acontecendo. Não haveria essa dor de cabeça de discutir, por exemplo, o conselho (federativo). Seria outro desenho. Lá atrás, eu acho poderia ser uma reforma com menos concessões. Na hora, em que vai avançando, os vários grupos se organizam e eles têm poder de veto. Às vezes, perder o timing de uma reforma custa caro. Eu acho que é o caso agora. De qualquer forma, não podia perder essa (atual) janela de oportunidade. Mesmo com as concessões, valeu a pena. Claro que tem de ver como vai ser no Senado.

Como a sra. avalia a quantidade de concessões na reforma?

Foram muitas concessões de última hora, coisas que não têm cabimento. Foram concessão para igrejas, exceções para setores que não têm sentido, ligadas ao turismo e à classe artística, algumas na reta final, e a possibilidade de os Estados criarem uma contribuição para os seus fundos com o objetivo de compensar o fim da guerra fim da guerra fiscal. Foi demais. E uma coisa que eu acho que pesou é a própria conjuntura política.

A sra. poderia detalhar?

Os grupos com mais resistências eram, justamente, os ligados à oposição. Foi preciso ceder. O saldo é positivo, mas tem, sim, um gosto amargo do timing perdido em 2019 e que acabou abrindo espaço para o fortalecimento de demandas que não deveriam, em condições ideais, serem atendidas. E acho que a conjuntura política tem peso nisso. Eu entendo que, no final, houve um empenho do governo. Não houve como ter um maior protagonismo do Lula. Não sei qual foi a intenção, mas uma possível leitura é que, num ambiente, ainda polarizado, talvez, tenha sido melhor ter evitado esse protagonismo.

É um governo que ainda tenta construir uma base sólida no Congresso, mas grupos de interesses não são novidades. Como enfrentá-los?

No fundo, essa é a discussão de o País precisar de uma reforma política. Somos uma democracia eleitoral, mas, do ponto de vista de conseguir traduzir os anseios da sociedade nas decisões de política pública e do Congresso, tem um monte de fio solto. É um sistema político que não cumpre bem esse papel. Temos desde as bancadas, que distorcem a representatividade, a grupos que são associados a corporações. São saltos na nossa democracia que a gente precisa dar. A questão não se resume, portanto, ao fato de o governo não ter base ampla. E tem um outro lado da história: a disciplina partidária se enfraqueceu nesses esquemas de emendas parlamentares.

Reforma tem potencial para melhorar ambiente de negócios, afirma Zeina Foto: TABA BENEDICTO / ESTADAO

Como a sra. avalia o papel da reforma para melhorar no ambiente de negócios e ajudar o País a crescer mais?

Claro que a reforma tem potencial para melhorar o ambiente de negócios. O tamanho disso é difícil de ter uma noção, até porque vai depender muito de decisões que vão vir ainda no projeto de lei complementar. O Brasil tem um exército de profissionais para lidar com a insegurança jurídica e a questão tributária. Tudo isso é custo para as empresas. É um recurso que você está liberando para as empresas fazerem outras coisas para ganhar produtividade. Toda essa discussão de produtividade do País começa nas empresas.

Os números da economia neste ano estão melhores do que o esperado. Qual é a avaliação da sra. em relação ao quadro macroeconômico?

Os economistas, principalmente os mais velhos que viram o governo Lula, tem uma brincadeira que é a seguinte: tem de colocar o fator sorte quando você vai fazer a projeção para Lula. Tem um quadro favorável do ponto de vista internacional. Não é aquele espetacular como foi o primeiro mandato do Lula. Ou mesmo do segundo, que teve a crise global, mas que não foi uma crise perversa para países emergentes. Não é isso, mas é um quadro bastante confortável para países como o Brasil.

O que explica esse cenário mais favorável?

Toda a pressão de custos por causa de commodities, por causa do comércio, estabilizou. Isso tira uma pressão muito grande. É um comércio mundial que anda de lado, mas que permite um alívio na inflação. Ao mesmo tempo, apesar dos discursos dos bancos centrais preocupados com a resistência da inflação de serviços e dos núcleos, é difícil enxergar um choque de juros mais significativo. O quadro macroeconômico não é ruim para emergentes e tem ainda atenuantes para o Brasil.

Quais são esses atenuantes para a economia brasileira?

A China está num momento de rebalanceamento do seu crescimento, desacelerando a economia, mas não o consumo das famílias. O plano do Xi Jinping é estimular o aumento paulatino do padrão de vida, o que deixa o nosso agro numa posição mais confortável. A gente tem também toda essa questão ambiental que coloca o Brasil em condições de receber recursos de fora. O País é uma democracia. O Brasil está bem posicionado. Se a gente vai colher todos os frutos, são outros quinhentos. E essas questões de inflação, juros e fiscal, se, antes, impactavam muito a economia brasileira, hoje, o investidor vê esses problemas mundo a fora. Isso reduz um pouco, no relativo, a preocupação com os desequilíbrios macroeconômicos do Brasil.

E o que tem contribuído no quadro interno?

Estou no grupo dos economistas que acha que, do Temer para cá, o País tem acumulado reformas que podem estar ajudando a melhorar o potencial de crescimento. Essas coisas são lentas, não são da noite para o dia. Um exemplo mais concreto é no mercado de trabalho, provavelmente, trazendo ganhos de produtividade e empregabilidade por causa da reforma trabalhista. Não acho que o potencial de crescimento é equivalente ao que foi no passado, como nos governos FHC e no Lula. Mesmo quando a gente fala que a surpresa do PIB foi o agro, é justamente o setor que está com ganhos de produtividade tão forte.

Mas o início do governo foi muito turbulento...

Passada aquela fase mais turbulenta, com muitos discursos e ruídos produzidos por ministros e pelo próprio presidente, tem uma acomodação. No ano passado, a discussão era que o Banco Central poderia cortar juros mais rapidamente em 2023, e não foi possível por causa dos próprios ruídos do governo. Entendo a posição do Banco Central, mas, para ser honesta, eu acho que já poderia ter cortado os juros.

O corte poderia ter ocorrido na última reunião?

Já tinha condições. Eu sei que o Banco Central não tinha sinalizado, tem toda essa questão da sinalização, mas eu acho que caberia até uma surpresa, um (corte de) 25 pontos, mesmo que fosse no dissenso. Mas, enfim, tudo isso para dizer que, até então, eu concordei e achei adequada a postura do BC mais conservadora.

Por quê?

Existiam várias fontes de preocupação possível. Num quadro de desancoragem de expectativas por causa do fiscal, dos ataques ao Banco Central e das discussões sobre mudança de meta, somado a uma potencial de dor de cabeça da inflação de serviços, o BC teve de ser mais duro. O fato é que essas coisas foram se desmontando. No final, acho que o mercado resgatou de certa forma coisas que a gente já viu no passado. Eu me lembro que, na época do Henrique Meirelles (presidente do BC entre 2003 e 2010), o Lula reclamava do Banco Central, mas, no final, o BC fez o que tinha de fazer e pronto. A gente viu a reclamação da meta de inflação, mas ela foi mantida. Foi muito ruído, mas a gente percebe que o Lula tem essa dubiedade. Ele trabalha com isso, e o mercado vai incorporando essa informação. Não é tudo que ele fala que vai acontecer.

Mercado vai incorporando dubiedade de Lula, afirma Zeina Foto: TABA BENEDICTO / ESTADAO

E qual é a avaliação da sra. sobre a questão fiscal?

A minha leitura é que aquela PEC da Transição esticou demais a corda, mas acho que não foi à toa que se decidiu anunciar o ministro (da Fazenda) depois. Era uma forma de o ministro não começar desgastado. A credibilidade do Haddad já começaria muito prejudicada. Eu achava - e continuo achando - que foi um cálculo político. Entra o Haddad e qual é a primeira fala dele: ‘eu não vou aceitar esse déficit. A gente vai arrumar um jeito de reduzir’. Ou seja, ele entra se distanciando da discussão e fala que vai fazer um pacote de medidas para aumentar a arrecadação.

O aumento da arrecadação é a melhor forma de se fazer um ajuste?

Não é a melhor e, dependendo da forma, é fonte de insegurança jurídica. O fato é que, naquele momento, aquela sinalização foi importante para os mercados. E aí vem o arcabouço fiscal. O mercado não compra a tese do superávit primário e a tese da contenção da dívida pública, mas acreditava que poderia ser pior. E tem uma coisa implícita - essa é a minha avaliação na formação de expectativas - que é a seguinte: a gente tem um governo que optou - pelo menos por ora - por não fazer reformas estruturais para conter gastos, mas não é o governo Dilma. Não é uma coisa descontrolada. O Lula não é a Dilma, e as instituições são mais fortes do que no passado. É um aprendizado do mercado. Tem de lembrar que o mercado é (formado por) gente muito jovem e que não viveu (outro governo) Lula. Tem esse aprendizado. E um outro ponto que também pode ajudar nessa acomodação é uma avaliação de que na próxima eleição a gente vai ter nomes de centro.

Qual é o impacto dessa avaliação?

O nome de centro é associado com reforma. A leitura é de que esse arcabouço fiscal não é bom, mas o próximo presidente pode fazer melhor. Ninguém vai colocar isso no seu modelo. Não se trata disso. Se trata de gerar maior acomodação de expectativas, porque você fala assim: ‘não é um país que está sem rumo e que vai ficar numa polarização’. Tem um amadurecimento do País.

E quais são os riscos para serem monitorados?

Tem sinalizações de retrocesso, decisões equivocadas. Tem preocupações em relação a excessos no fiscal, no BNDES, medidas que são aprovadas e trazem preocupação. A gente tem de ver qual vai ser a agenda daqui para frente.

Qual deve ser essa agenda até 2026?

Não perder o timing do acordo entre Mercosul e União Europeia. Seria positivo destravar (o acordo), mesmo que não traga efeitos de curto prazo. É importante o Brasil caminhar para diversificar parceiros comerciais, ter esses acordos e repensar o Mercosul numa outra etapa. E na agenda do Ministério da Fazenda, é colocar o arcabouço de pé e a discussão das outras etapas da reforma tributária. A julgar pelo que saiu na imprensa, a preocupação o ministro é fazer a reforma do Imposto de Renda, porque precisa de recursos para cumprir as metas fiscais, mas tem essa questão de desonerar a folha para salários menores, que é uma demanda importante e compreensível dos setores intensivos em mão de obra.

A economista Zeina Latif avalia que a reforma tributária aprovada na Câmara dos Deputados representa um claro avanço em relação ao sistema atual, mas deixa um gosto “amargo” por causa da quantidade de exceções. Na leitura dela, o País perdeu o timing para aprovar uma mudança mais positiva em 2019, quando o texto da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) foi apresentado.

“O saldo é positivo, mas tem, sim, um gosto amargo do timing perdido em 2019 e que acabou abrindo espaço para o fortalecimento de demandas que não deveriam, em condições ideais, serem atendidas”, afirma.

No cenário macroeconômico, ela vê o Brasil bem posicionado com um quadro confortável na economia internacional e por uma acomodação das expectativas com o terceiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). “Se a gente vai colher todos os frutos, são outros quinhentos”, diz Zeina, sócia-diretora da Gibraltar Consulting.

Reforma tributária aprovada na Câmara dos Deputados foi positiva, mas foram muitas concessões, diz Zeina Foto: TABA BENEDICTO / ESTADAO

A seguir os principais trechos da entrevista concedida ao Estadão.

Qual é a avaliação da sra. sobre a reforma tributária?

Foi um passo importante naquela linha da reforma possível. Fica a pergunta: e se esperasse um pouco mais e houvesse mais debate público, será que teríamos menos concessões? Eu temo que não. A primeira coisa é que tem janela de oportunidade, e o timing agora é valioso. É o início de um governo. Depois, as coisas ficam atrapalhadas, mais difíceis politicamente. E, na minha visão, ter perdido essa janela em 2019 (ano em a Propostas de Emenda à Constituição foi apresentada na Câmara dos Deputados) saiu caro.

O que teria sido diferente se o governo passado tivesse aprovado uma reforma em 2019?

Havia condições de uma reforma mais ambiciosa, com um IVA (Imposto sobre Valor Agregado) único, nacional, não o dual. O fato de ser o dual (um para União e outro para Estados e municípios) trouxe várias complicações. Se fosse o IVA único, isso não estaria acontecendo. Não haveria essa dor de cabeça de discutir, por exemplo, o conselho (federativo). Seria outro desenho. Lá atrás, eu acho poderia ser uma reforma com menos concessões. Na hora, em que vai avançando, os vários grupos se organizam e eles têm poder de veto. Às vezes, perder o timing de uma reforma custa caro. Eu acho que é o caso agora. De qualquer forma, não podia perder essa (atual) janela de oportunidade. Mesmo com as concessões, valeu a pena. Claro que tem de ver como vai ser no Senado.

Como a sra. avalia a quantidade de concessões na reforma?

Foram muitas concessões de última hora, coisas que não têm cabimento. Foram concessão para igrejas, exceções para setores que não têm sentido, ligadas ao turismo e à classe artística, algumas na reta final, e a possibilidade de os Estados criarem uma contribuição para os seus fundos com o objetivo de compensar o fim da guerra fim da guerra fiscal. Foi demais. E uma coisa que eu acho que pesou é a própria conjuntura política.

A sra. poderia detalhar?

Os grupos com mais resistências eram, justamente, os ligados à oposição. Foi preciso ceder. O saldo é positivo, mas tem, sim, um gosto amargo do timing perdido em 2019 e que acabou abrindo espaço para o fortalecimento de demandas que não deveriam, em condições ideais, serem atendidas. E acho que a conjuntura política tem peso nisso. Eu entendo que, no final, houve um empenho do governo. Não houve como ter um maior protagonismo do Lula. Não sei qual foi a intenção, mas uma possível leitura é que, num ambiente, ainda polarizado, talvez, tenha sido melhor ter evitado esse protagonismo.

É um governo que ainda tenta construir uma base sólida no Congresso, mas grupos de interesses não são novidades. Como enfrentá-los?

No fundo, essa é a discussão de o País precisar de uma reforma política. Somos uma democracia eleitoral, mas, do ponto de vista de conseguir traduzir os anseios da sociedade nas decisões de política pública e do Congresso, tem um monte de fio solto. É um sistema político que não cumpre bem esse papel. Temos desde as bancadas, que distorcem a representatividade, a grupos que são associados a corporações. São saltos na nossa democracia que a gente precisa dar. A questão não se resume, portanto, ao fato de o governo não ter base ampla. E tem um outro lado da história: a disciplina partidária se enfraqueceu nesses esquemas de emendas parlamentares.

Reforma tem potencial para melhorar ambiente de negócios, afirma Zeina Foto: TABA BENEDICTO / ESTADAO

Como a sra. avalia o papel da reforma para melhorar no ambiente de negócios e ajudar o País a crescer mais?

Claro que a reforma tem potencial para melhorar o ambiente de negócios. O tamanho disso é difícil de ter uma noção, até porque vai depender muito de decisões que vão vir ainda no projeto de lei complementar. O Brasil tem um exército de profissionais para lidar com a insegurança jurídica e a questão tributária. Tudo isso é custo para as empresas. É um recurso que você está liberando para as empresas fazerem outras coisas para ganhar produtividade. Toda essa discussão de produtividade do País começa nas empresas.

Os números da economia neste ano estão melhores do que o esperado. Qual é a avaliação da sra. em relação ao quadro macroeconômico?

Os economistas, principalmente os mais velhos que viram o governo Lula, tem uma brincadeira que é a seguinte: tem de colocar o fator sorte quando você vai fazer a projeção para Lula. Tem um quadro favorável do ponto de vista internacional. Não é aquele espetacular como foi o primeiro mandato do Lula. Ou mesmo do segundo, que teve a crise global, mas que não foi uma crise perversa para países emergentes. Não é isso, mas é um quadro bastante confortável para países como o Brasil.

O que explica esse cenário mais favorável?

Toda a pressão de custos por causa de commodities, por causa do comércio, estabilizou. Isso tira uma pressão muito grande. É um comércio mundial que anda de lado, mas que permite um alívio na inflação. Ao mesmo tempo, apesar dos discursos dos bancos centrais preocupados com a resistência da inflação de serviços e dos núcleos, é difícil enxergar um choque de juros mais significativo. O quadro macroeconômico não é ruim para emergentes e tem ainda atenuantes para o Brasil.

Quais são esses atenuantes para a economia brasileira?

A China está num momento de rebalanceamento do seu crescimento, desacelerando a economia, mas não o consumo das famílias. O plano do Xi Jinping é estimular o aumento paulatino do padrão de vida, o que deixa o nosso agro numa posição mais confortável. A gente tem também toda essa questão ambiental que coloca o Brasil em condições de receber recursos de fora. O País é uma democracia. O Brasil está bem posicionado. Se a gente vai colher todos os frutos, são outros quinhentos. E essas questões de inflação, juros e fiscal, se, antes, impactavam muito a economia brasileira, hoje, o investidor vê esses problemas mundo a fora. Isso reduz um pouco, no relativo, a preocupação com os desequilíbrios macroeconômicos do Brasil.

E o que tem contribuído no quadro interno?

Estou no grupo dos economistas que acha que, do Temer para cá, o País tem acumulado reformas que podem estar ajudando a melhorar o potencial de crescimento. Essas coisas são lentas, não são da noite para o dia. Um exemplo mais concreto é no mercado de trabalho, provavelmente, trazendo ganhos de produtividade e empregabilidade por causa da reforma trabalhista. Não acho que o potencial de crescimento é equivalente ao que foi no passado, como nos governos FHC e no Lula. Mesmo quando a gente fala que a surpresa do PIB foi o agro, é justamente o setor que está com ganhos de produtividade tão forte.

Mas o início do governo foi muito turbulento...

Passada aquela fase mais turbulenta, com muitos discursos e ruídos produzidos por ministros e pelo próprio presidente, tem uma acomodação. No ano passado, a discussão era que o Banco Central poderia cortar juros mais rapidamente em 2023, e não foi possível por causa dos próprios ruídos do governo. Entendo a posição do Banco Central, mas, para ser honesta, eu acho que já poderia ter cortado os juros.

O corte poderia ter ocorrido na última reunião?

Já tinha condições. Eu sei que o Banco Central não tinha sinalizado, tem toda essa questão da sinalização, mas eu acho que caberia até uma surpresa, um (corte de) 25 pontos, mesmo que fosse no dissenso. Mas, enfim, tudo isso para dizer que, até então, eu concordei e achei adequada a postura do BC mais conservadora.

Por quê?

Existiam várias fontes de preocupação possível. Num quadro de desancoragem de expectativas por causa do fiscal, dos ataques ao Banco Central e das discussões sobre mudança de meta, somado a uma potencial de dor de cabeça da inflação de serviços, o BC teve de ser mais duro. O fato é que essas coisas foram se desmontando. No final, acho que o mercado resgatou de certa forma coisas que a gente já viu no passado. Eu me lembro que, na época do Henrique Meirelles (presidente do BC entre 2003 e 2010), o Lula reclamava do Banco Central, mas, no final, o BC fez o que tinha de fazer e pronto. A gente viu a reclamação da meta de inflação, mas ela foi mantida. Foi muito ruído, mas a gente percebe que o Lula tem essa dubiedade. Ele trabalha com isso, e o mercado vai incorporando essa informação. Não é tudo que ele fala que vai acontecer.

Mercado vai incorporando dubiedade de Lula, afirma Zeina Foto: TABA BENEDICTO / ESTADAO

E qual é a avaliação da sra. sobre a questão fiscal?

A minha leitura é que aquela PEC da Transição esticou demais a corda, mas acho que não foi à toa que se decidiu anunciar o ministro (da Fazenda) depois. Era uma forma de o ministro não começar desgastado. A credibilidade do Haddad já começaria muito prejudicada. Eu achava - e continuo achando - que foi um cálculo político. Entra o Haddad e qual é a primeira fala dele: ‘eu não vou aceitar esse déficit. A gente vai arrumar um jeito de reduzir’. Ou seja, ele entra se distanciando da discussão e fala que vai fazer um pacote de medidas para aumentar a arrecadação.

O aumento da arrecadação é a melhor forma de se fazer um ajuste?

Não é a melhor e, dependendo da forma, é fonte de insegurança jurídica. O fato é que, naquele momento, aquela sinalização foi importante para os mercados. E aí vem o arcabouço fiscal. O mercado não compra a tese do superávit primário e a tese da contenção da dívida pública, mas acreditava que poderia ser pior. E tem uma coisa implícita - essa é a minha avaliação na formação de expectativas - que é a seguinte: a gente tem um governo que optou - pelo menos por ora - por não fazer reformas estruturais para conter gastos, mas não é o governo Dilma. Não é uma coisa descontrolada. O Lula não é a Dilma, e as instituições são mais fortes do que no passado. É um aprendizado do mercado. Tem de lembrar que o mercado é (formado por) gente muito jovem e que não viveu (outro governo) Lula. Tem esse aprendizado. E um outro ponto que também pode ajudar nessa acomodação é uma avaliação de que na próxima eleição a gente vai ter nomes de centro.

Qual é o impacto dessa avaliação?

O nome de centro é associado com reforma. A leitura é de que esse arcabouço fiscal não é bom, mas o próximo presidente pode fazer melhor. Ninguém vai colocar isso no seu modelo. Não se trata disso. Se trata de gerar maior acomodação de expectativas, porque você fala assim: ‘não é um país que está sem rumo e que vai ficar numa polarização’. Tem um amadurecimento do País.

E quais são os riscos para serem monitorados?

Tem sinalizações de retrocesso, decisões equivocadas. Tem preocupações em relação a excessos no fiscal, no BNDES, medidas que são aprovadas e trazem preocupação. A gente tem de ver qual vai ser a agenda daqui para frente.

Qual deve ser essa agenda até 2026?

Não perder o timing do acordo entre Mercosul e União Europeia. Seria positivo destravar (o acordo), mesmo que não traga efeitos de curto prazo. É importante o Brasil caminhar para diversificar parceiros comerciais, ter esses acordos e repensar o Mercosul numa outra etapa. E na agenda do Ministério da Fazenda, é colocar o arcabouço de pé e a discussão das outras etapas da reforma tributária. A julgar pelo que saiu na imprensa, a preocupação o ministro é fazer a reforma do Imposto de Renda, porque precisa de recursos para cumprir as metas fiscais, mas tem essa questão de desonerar a folha para salários menores, que é uma demanda importante e compreensível dos setores intensivos em mão de obra.

A economista Zeina Latif avalia que a reforma tributária aprovada na Câmara dos Deputados representa um claro avanço em relação ao sistema atual, mas deixa um gosto “amargo” por causa da quantidade de exceções. Na leitura dela, o País perdeu o timing para aprovar uma mudança mais positiva em 2019, quando o texto da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) foi apresentado.

“O saldo é positivo, mas tem, sim, um gosto amargo do timing perdido em 2019 e que acabou abrindo espaço para o fortalecimento de demandas que não deveriam, em condições ideais, serem atendidas”, afirma.

No cenário macroeconômico, ela vê o Brasil bem posicionado com um quadro confortável na economia internacional e por uma acomodação das expectativas com o terceiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). “Se a gente vai colher todos os frutos, são outros quinhentos”, diz Zeina, sócia-diretora da Gibraltar Consulting.

Reforma tributária aprovada na Câmara dos Deputados foi positiva, mas foram muitas concessões, diz Zeina Foto: TABA BENEDICTO / ESTADAO

A seguir os principais trechos da entrevista concedida ao Estadão.

Qual é a avaliação da sra. sobre a reforma tributária?

Foi um passo importante naquela linha da reforma possível. Fica a pergunta: e se esperasse um pouco mais e houvesse mais debate público, será que teríamos menos concessões? Eu temo que não. A primeira coisa é que tem janela de oportunidade, e o timing agora é valioso. É o início de um governo. Depois, as coisas ficam atrapalhadas, mais difíceis politicamente. E, na minha visão, ter perdido essa janela em 2019 (ano em a Propostas de Emenda à Constituição foi apresentada na Câmara dos Deputados) saiu caro.

O que teria sido diferente se o governo passado tivesse aprovado uma reforma em 2019?

Havia condições de uma reforma mais ambiciosa, com um IVA (Imposto sobre Valor Agregado) único, nacional, não o dual. O fato de ser o dual (um para União e outro para Estados e municípios) trouxe várias complicações. Se fosse o IVA único, isso não estaria acontecendo. Não haveria essa dor de cabeça de discutir, por exemplo, o conselho (federativo). Seria outro desenho. Lá atrás, eu acho poderia ser uma reforma com menos concessões. Na hora, em que vai avançando, os vários grupos se organizam e eles têm poder de veto. Às vezes, perder o timing de uma reforma custa caro. Eu acho que é o caso agora. De qualquer forma, não podia perder essa (atual) janela de oportunidade. Mesmo com as concessões, valeu a pena. Claro que tem de ver como vai ser no Senado.

Como a sra. avalia a quantidade de concessões na reforma?

Foram muitas concessões de última hora, coisas que não têm cabimento. Foram concessão para igrejas, exceções para setores que não têm sentido, ligadas ao turismo e à classe artística, algumas na reta final, e a possibilidade de os Estados criarem uma contribuição para os seus fundos com o objetivo de compensar o fim da guerra fim da guerra fiscal. Foi demais. E uma coisa que eu acho que pesou é a própria conjuntura política.

A sra. poderia detalhar?

Os grupos com mais resistências eram, justamente, os ligados à oposição. Foi preciso ceder. O saldo é positivo, mas tem, sim, um gosto amargo do timing perdido em 2019 e que acabou abrindo espaço para o fortalecimento de demandas que não deveriam, em condições ideais, serem atendidas. E acho que a conjuntura política tem peso nisso. Eu entendo que, no final, houve um empenho do governo. Não houve como ter um maior protagonismo do Lula. Não sei qual foi a intenção, mas uma possível leitura é que, num ambiente, ainda polarizado, talvez, tenha sido melhor ter evitado esse protagonismo.

É um governo que ainda tenta construir uma base sólida no Congresso, mas grupos de interesses não são novidades. Como enfrentá-los?

No fundo, essa é a discussão de o País precisar de uma reforma política. Somos uma democracia eleitoral, mas, do ponto de vista de conseguir traduzir os anseios da sociedade nas decisões de política pública e do Congresso, tem um monte de fio solto. É um sistema político que não cumpre bem esse papel. Temos desde as bancadas, que distorcem a representatividade, a grupos que são associados a corporações. São saltos na nossa democracia que a gente precisa dar. A questão não se resume, portanto, ao fato de o governo não ter base ampla. E tem um outro lado da história: a disciplina partidária se enfraqueceu nesses esquemas de emendas parlamentares.

Reforma tem potencial para melhorar ambiente de negócios, afirma Zeina Foto: TABA BENEDICTO / ESTADAO

Como a sra. avalia o papel da reforma para melhorar no ambiente de negócios e ajudar o País a crescer mais?

Claro que a reforma tem potencial para melhorar o ambiente de negócios. O tamanho disso é difícil de ter uma noção, até porque vai depender muito de decisões que vão vir ainda no projeto de lei complementar. O Brasil tem um exército de profissionais para lidar com a insegurança jurídica e a questão tributária. Tudo isso é custo para as empresas. É um recurso que você está liberando para as empresas fazerem outras coisas para ganhar produtividade. Toda essa discussão de produtividade do País começa nas empresas.

Os números da economia neste ano estão melhores do que o esperado. Qual é a avaliação da sra. em relação ao quadro macroeconômico?

Os economistas, principalmente os mais velhos que viram o governo Lula, tem uma brincadeira que é a seguinte: tem de colocar o fator sorte quando você vai fazer a projeção para Lula. Tem um quadro favorável do ponto de vista internacional. Não é aquele espetacular como foi o primeiro mandato do Lula. Ou mesmo do segundo, que teve a crise global, mas que não foi uma crise perversa para países emergentes. Não é isso, mas é um quadro bastante confortável para países como o Brasil.

O que explica esse cenário mais favorável?

Toda a pressão de custos por causa de commodities, por causa do comércio, estabilizou. Isso tira uma pressão muito grande. É um comércio mundial que anda de lado, mas que permite um alívio na inflação. Ao mesmo tempo, apesar dos discursos dos bancos centrais preocupados com a resistência da inflação de serviços e dos núcleos, é difícil enxergar um choque de juros mais significativo. O quadro macroeconômico não é ruim para emergentes e tem ainda atenuantes para o Brasil.

Quais são esses atenuantes para a economia brasileira?

A China está num momento de rebalanceamento do seu crescimento, desacelerando a economia, mas não o consumo das famílias. O plano do Xi Jinping é estimular o aumento paulatino do padrão de vida, o que deixa o nosso agro numa posição mais confortável. A gente tem também toda essa questão ambiental que coloca o Brasil em condições de receber recursos de fora. O País é uma democracia. O Brasil está bem posicionado. Se a gente vai colher todos os frutos, são outros quinhentos. E essas questões de inflação, juros e fiscal, se, antes, impactavam muito a economia brasileira, hoje, o investidor vê esses problemas mundo a fora. Isso reduz um pouco, no relativo, a preocupação com os desequilíbrios macroeconômicos do Brasil.

E o que tem contribuído no quadro interno?

Estou no grupo dos economistas que acha que, do Temer para cá, o País tem acumulado reformas que podem estar ajudando a melhorar o potencial de crescimento. Essas coisas são lentas, não são da noite para o dia. Um exemplo mais concreto é no mercado de trabalho, provavelmente, trazendo ganhos de produtividade e empregabilidade por causa da reforma trabalhista. Não acho que o potencial de crescimento é equivalente ao que foi no passado, como nos governos FHC e no Lula. Mesmo quando a gente fala que a surpresa do PIB foi o agro, é justamente o setor que está com ganhos de produtividade tão forte.

Mas o início do governo foi muito turbulento...

Passada aquela fase mais turbulenta, com muitos discursos e ruídos produzidos por ministros e pelo próprio presidente, tem uma acomodação. No ano passado, a discussão era que o Banco Central poderia cortar juros mais rapidamente em 2023, e não foi possível por causa dos próprios ruídos do governo. Entendo a posição do Banco Central, mas, para ser honesta, eu acho que já poderia ter cortado os juros.

O corte poderia ter ocorrido na última reunião?

Já tinha condições. Eu sei que o Banco Central não tinha sinalizado, tem toda essa questão da sinalização, mas eu acho que caberia até uma surpresa, um (corte de) 25 pontos, mesmo que fosse no dissenso. Mas, enfim, tudo isso para dizer que, até então, eu concordei e achei adequada a postura do BC mais conservadora.

Por quê?

Existiam várias fontes de preocupação possível. Num quadro de desancoragem de expectativas por causa do fiscal, dos ataques ao Banco Central e das discussões sobre mudança de meta, somado a uma potencial de dor de cabeça da inflação de serviços, o BC teve de ser mais duro. O fato é que essas coisas foram se desmontando. No final, acho que o mercado resgatou de certa forma coisas que a gente já viu no passado. Eu me lembro que, na época do Henrique Meirelles (presidente do BC entre 2003 e 2010), o Lula reclamava do Banco Central, mas, no final, o BC fez o que tinha de fazer e pronto. A gente viu a reclamação da meta de inflação, mas ela foi mantida. Foi muito ruído, mas a gente percebe que o Lula tem essa dubiedade. Ele trabalha com isso, e o mercado vai incorporando essa informação. Não é tudo que ele fala que vai acontecer.

Mercado vai incorporando dubiedade de Lula, afirma Zeina Foto: TABA BENEDICTO / ESTADAO

E qual é a avaliação da sra. sobre a questão fiscal?

A minha leitura é que aquela PEC da Transição esticou demais a corda, mas acho que não foi à toa que se decidiu anunciar o ministro (da Fazenda) depois. Era uma forma de o ministro não começar desgastado. A credibilidade do Haddad já começaria muito prejudicada. Eu achava - e continuo achando - que foi um cálculo político. Entra o Haddad e qual é a primeira fala dele: ‘eu não vou aceitar esse déficit. A gente vai arrumar um jeito de reduzir’. Ou seja, ele entra se distanciando da discussão e fala que vai fazer um pacote de medidas para aumentar a arrecadação.

O aumento da arrecadação é a melhor forma de se fazer um ajuste?

Não é a melhor e, dependendo da forma, é fonte de insegurança jurídica. O fato é que, naquele momento, aquela sinalização foi importante para os mercados. E aí vem o arcabouço fiscal. O mercado não compra a tese do superávit primário e a tese da contenção da dívida pública, mas acreditava que poderia ser pior. E tem uma coisa implícita - essa é a minha avaliação na formação de expectativas - que é a seguinte: a gente tem um governo que optou - pelo menos por ora - por não fazer reformas estruturais para conter gastos, mas não é o governo Dilma. Não é uma coisa descontrolada. O Lula não é a Dilma, e as instituições são mais fortes do que no passado. É um aprendizado do mercado. Tem de lembrar que o mercado é (formado por) gente muito jovem e que não viveu (outro governo) Lula. Tem esse aprendizado. E um outro ponto que também pode ajudar nessa acomodação é uma avaliação de que na próxima eleição a gente vai ter nomes de centro.

Qual é o impacto dessa avaliação?

O nome de centro é associado com reforma. A leitura é de que esse arcabouço fiscal não é bom, mas o próximo presidente pode fazer melhor. Ninguém vai colocar isso no seu modelo. Não se trata disso. Se trata de gerar maior acomodação de expectativas, porque você fala assim: ‘não é um país que está sem rumo e que vai ficar numa polarização’. Tem um amadurecimento do País.

E quais são os riscos para serem monitorados?

Tem sinalizações de retrocesso, decisões equivocadas. Tem preocupações em relação a excessos no fiscal, no BNDES, medidas que são aprovadas e trazem preocupação. A gente tem de ver qual vai ser a agenda daqui para frente.

Qual deve ser essa agenda até 2026?

Não perder o timing do acordo entre Mercosul e União Europeia. Seria positivo destravar (o acordo), mesmo que não traga efeitos de curto prazo. É importante o Brasil caminhar para diversificar parceiros comerciais, ter esses acordos e repensar o Mercosul numa outra etapa. E na agenda do Ministério da Fazenda, é colocar o arcabouço de pé e a discussão das outras etapas da reforma tributária. A julgar pelo que saiu na imprensa, a preocupação o ministro é fazer a reforma do Imposto de Renda, porque precisa de recursos para cumprir as metas fiscais, mas tem essa questão de desonerar a folha para salários menores, que é uma demanda importante e compreensível dos setores intensivos em mão de obra.

A economista Zeina Latif avalia que a reforma tributária aprovada na Câmara dos Deputados representa um claro avanço em relação ao sistema atual, mas deixa um gosto “amargo” por causa da quantidade de exceções. Na leitura dela, o País perdeu o timing para aprovar uma mudança mais positiva em 2019, quando o texto da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) foi apresentado.

“O saldo é positivo, mas tem, sim, um gosto amargo do timing perdido em 2019 e que acabou abrindo espaço para o fortalecimento de demandas que não deveriam, em condições ideais, serem atendidas”, afirma.

No cenário macroeconômico, ela vê o Brasil bem posicionado com um quadro confortável na economia internacional e por uma acomodação das expectativas com o terceiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT). “Se a gente vai colher todos os frutos, são outros quinhentos”, diz Zeina, sócia-diretora da Gibraltar Consulting.

Reforma tributária aprovada na Câmara dos Deputados foi positiva, mas foram muitas concessões, diz Zeina Foto: TABA BENEDICTO / ESTADAO

A seguir os principais trechos da entrevista concedida ao Estadão.

Qual é a avaliação da sra. sobre a reforma tributária?

Foi um passo importante naquela linha da reforma possível. Fica a pergunta: e se esperasse um pouco mais e houvesse mais debate público, será que teríamos menos concessões? Eu temo que não. A primeira coisa é que tem janela de oportunidade, e o timing agora é valioso. É o início de um governo. Depois, as coisas ficam atrapalhadas, mais difíceis politicamente. E, na minha visão, ter perdido essa janela em 2019 (ano em a Propostas de Emenda à Constituição foi apresentada na Câmara dos Deputados) saiu caro.

O que teria sido diferente se o governo passado tivesse aprovado uma reforma em 2019?

Havia condições de uma reforma mais ambiciosa, com um IVA (Imposto sobre Valor Agregado) único, nacional, não o dual. O fato de ser o dual (um para União e outro para Estados e municípios) trouxe várias complicações. Se fosse o IVA único, isso não estaria acontecendo. Não haveria essa dor de cabeça de discutir, por exemplo, o conselho (federativo). Seria outro desenho. Lá atrás, eu acho poderia ser uma reforma com menos concessões. Na hora, em que vai avançando, os vários grupos se organizam e eles têm poder de veto. Às vezes, perder o timing de uma reforma custa caro. Eu acho que é o caso agora. De qualquer forma, não podia perder essa (atual) janela de oportunidade. Mesmo com as concessões, valeu a pena. Claro que tem de ver como vai ser no Senado.

Como a sra. avalia a quantidade de concessões na reforma?

Foram muitas concessões de última hora, coisas que não têm cabimento. Foram concessão para igrejas, exceções para setores que não têm sentido, ligadas ao turismo e à classe artística, algumas na reta final, e a possibilidade de os Estados criarem uma contribuição para os seus fundos com o objetivo de compensar o fim da guerra fim da guerra fiscal. Foi demais. E uma coisa que eu acho que pesou é a própria conjuntura política.

A sra. poderia detalhar?

Os grupos com mais resistências eram, justamente, os ligados à oposição. Foi preciso ceder. O saldo é positivo, mas tem, sim, um gosto amargo do timing perdido em 2019 e que acabou abrindo espaço para o fortalecimento de demandas que não deveriam, em condições ideais, serem atendidas. E acho que a conjuntura política tem peso nisso. Eu entendo que, no final, houve um empenho do governo. Não houve como ter um maior protagonismo do Lula. Não sei qual foi a intenção, mas uma possível leitura é que, num ambiente, ainda polarizado, talvez, tenha sido melhor ter evitado esse protagonismo.

É um governo que ainda tenta construir uma base sólida no Congresso, mas grupos de interesses não são novidades. Como enfrentá-los?

No fundo, essa é a discussão de o País precisar de uma reforma política. Somos uma democracia eleitoral, mas, do ponto de vista de conseguir traduzir os anseios da sociedade nas decisões de política pública e do Congresso, tem um monte de fio solto. É um sistema político que não cumpre bem esse papel. Temos desde as bancadas, que distorcem a representatividade, a grupos que são associados a corporações. São saltos na nossa democracia que a gente precisa dar. A questão não se resume, portanto, ao fato de o governo não ter base ampla. E tem um outro lado da história: a disciplina partidária se enfraqueceu nesses esquemas de emendas parlamentares.

Reforma tem potencial para melhorar ambiente de negócios, afirma Zeina Foto: TABA BENEDICTO / ESTADAO

Como a sra. avalia o papel da reforma para melhorar no ambiente de negócios e ajudar o País a crescer mais?

Claro que a reforma tem potencial para melhorar o ambiente de negócios. O tamanho disso é difícil de ter uma noção, até porque vai depender muito de decisões que vão vir ainda no projeto de lei complementar. O Brasil tem um exército de profissionais para lidar com a insegurança jurídica e a questão tributária. Tudo isso é custo para as empresas. É um recurso que você está liberando para as empresas fazerem outras coisas para ganhar produtividade. Toda essa discussão de produtividade do País começa nas empresas.

Os números da economia neste ano estão melhores do que o esperado. Qual é a avaliação da sra. em relação ao quadro macroeconômico?

Os economistas, principalmente os mais velhos que viram o governo Lula, tem uma brincadeira que é a seguinte: tem de colocar o fator sorte quando você vai fazer a projeção para Lula. Tem um quadro favorável do ponto de vista internacional. Não é aquele espetacular como foi o primeiro mandato do Lula. Ou mesmo do segundo, que teve a crise global, mas que não foi uma crise perversa para países emergentes. Não é isso, mas é um quadro bastante confortável para países como o Brasil.

O que explica esse cenário mais favorável?

Toda a pressão de custos por causa de commodities, por causa do comércio, estabilizou. Isso tira uma pressão muito grande. É um comércio mundial que anda de lado, mas que permite um alívio na inflação. Ao mesmo tempo, apesar dos discursos dos bancos centrais preocupados com a resistência da inflação de serviços e dos núcleos, é difícil enxergar um choque de juros mais significativo. O quadro macroeconômico não é ruim para emergentes e tem ainda atenuantes para o Brasil.

Quais são esses atenuantes para a economia brasileira?

A China está num momento de rebalanceamento do seu crescimento, desacelerando a economia, mas não o consumo das famílias. O plano do Xi Jinping é estimular o aumento paulatino do padrão de vida, o que deixa o nosso agro numa posição mais confortável. A gente tem também toda essa questão ambiental que coloca o Brasil em condições de receber recursos de fora. O País é uma democracia. O Brasil está bem posicionado. Se a gente vai colher todos os frutos, são outros quinhentos. E essas questões de inflação, juros e fiscal, se, antes, impactavam muito a economia brasileira, hoje, o investidor vê esses problemas mundo a fora. Isso reduz um pouco, no relativo, a preocupação com os desequilíbrios macroeconômicos do Brasil.

E o que tem contribuído no quadro interno?

Estou no grupo dos economistas que acha que, do Temer para cá, o País tem acumulado reformas que podem estar ajudando a melhorar o potencial de crescimento. Essas coisas são lentas, não são da noite para o dia. Um exemplo mais concreto é no mercado de trabalho, provavelmente, trazendo ganhos de produtividade e empregabilidade por causa da reforma trabalhista. Não acho que o potencial de crescimento é equivalente ao que foi no passado, como nos governos FHC e no Lula. Mesmo quando a gente fala que a surpresa do PIB foi o agro, é justamente o setor que está com ganhos de produtividade tão forte.

Mas o início do governo foi muito turbulento...

Passada aquela fase mais turbulenta, com muitos discursos e ruídos produzidos por ministros e pelo próprio presidente, tem uma acomodação. No ano passado, a discussão era que o Banco Central poderia cortar juros mais rapidamente em 2023, e não foi possível por causa dos próprios ruídos do governo. Entendo a posição do Banco Central, mas, para ser honesta, eu acho que já poderia ter cortado os juros.

O corte poderia ter ocorrido na última reunião?

Já tinha condições. Eu sei que o Banco Central não tinha sinalizado, tem toda essa questão da sinalização, mas eu acho que caberia até uma surpresa, um (corte de) 25 pontos, mesmo que fosse no dissenso. Mas, enfim, tudo isso para dizer que, até então, eu concordei e achei adequada a postura do BC mais conservadora.

Por quê?

Existiam várias fontes de preocupação possível. Num quadro de desancoragem de expectativas por causa do fiscal, dos ataques ao Banco Central e das discussões sobre mudança de meta, somado a uma potencial de dor de cabeça da inflação de serviços, o BC teve de ser mais duro. O fato é que essas coisas foram se desmontando. No final, acho que o mercado resgatou de certa forma coisas que a gente já viu no passado. Eu me lembro que, na época do Henrique Meirelles (presidente do BC entre 2003 e 2010), o Lula reclamava do Banco Central, mas, no final, o BC fez o que tinha de fazer e pronto. A gente viu a reclamação da meta de inflação, mas ela foi mantida. Foi muito ruído, mas a gente percebe que o Lula tem essa dubiedade. Ele trabalha com isso, e o mercado vai incorporando essa informação. Não é tudo que ele fala que vai acontecer.

Mercado vai incorporando dubiedade de Lula, afirma Zeina Foto: TABA BENEDICTO / ESTADAO

E qual é a avaliação da sra. sobre a questão fiscal?

A minha leitura é que aquela PEC da Transição esticou demais a corda, mas acho que não foi à toa que se decidiu anunciar o ministro (da Fazenda) depois. Era uma forma de o ministro não começar desgastado. A credibilidade do Haddad já começaria muito prejudicada. Eu achava - e continuo achando - que foi um cálculo político. Entra o Haddad e qual é a primeira fala dele: ‘eu não vou aceitar esse déficit. A gente vai arrumar um jeito de reduzir’. Ou seja, ele entra se distanciando da discussão e fala que vai fazer um pacote de medidas para aumentar a arrecadação.

O aumento da arrecadação é a melhor forma de se fazer um ajuste?

Não é a melhor e, dependendo da forma, é fonte de insegurança jurídica. O fato é que, naquele momento, aquela sinalização foi importante para os mercados. E aí vem o arcabouço fiscal. O mercado não compra a tese do superávit primário e a tese da contenção da dívida pública, mas acreditava que poderia ser pior. E tem uma coisa implícita - essa é a minha avaliação na formação de expectativas - que é a seguinte: a gente tem um governo que optou - pelo menos por ora - por não fazer reformas estruturais para conter gastos, mas não é o governo Dilma. Não é uma coisa descontrolada. O Lula não é a Dilma, e as instituições são mais fortes do que no passado. É um aprendizado do mercado. Tem de lembrar que o mercado é (formado por) gente muito jovem e que não viveu (outro governo) Lula. Tem esse aprendizado. E um outro ponto que também pode ajudar nessa acomodação é uma avaliação de que na próxima eleição a gente vai ter nomes de centro.

Qual é o impacto dessa avaliação?

O nome de centro é associado com reforma. A leitura é de que esse arcabouço fiscal não é bom, mas o próximo presidente pode fazer melhor. Ninguém vai colocar isso no seu modelo. Não se trata disso. Se trata de gerar maior acomodação de expectativas, porque você fala assim: ‘não é um país que está sem rumo e que vai ficar numa polarização’. Tem um amadurecimento do País.

E quais são os riscos para serem monitorados?

Tem sinalizações de retrocesso, decisões equivocadas. Tem preocupações em relação a excessos no fiscal, no BNDES, medidas que são aprovadas e trazem preocupação. A gente tem de ver qual vai ser a agenda daqui para frente.

Qual deve ser essa agenda até 2026?

Não perder o timing do acordo entre Mercosul e União Europeia. Seria positivo destravar (o acordo), mesmo que não traga efeitos de curto prazo. É importante o Brasil caminhar para diversificar parceiros comerciais, ter esses acordos e repensar o Mercosul numa outra etapa. E na agenda do Ministério da Fazenda, é colocar o arcabouço de pé e a discussão das outras etapas da reforma tributária. A julgar pelo que saiu na imprensa, a preocupação o ministro é fazer a reforma do Imposto de Renda, porque precisa de recursos para cumprir as metas fiscais, mas tem essa questão de desonerar a folha para salários menores, que é uma demanda importante e compreensível dos setores intensivos em mão de obra.

Entrevista por Luiz Guilherme Gerbelli

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.