BRASÍLIA E SÃO PAULO - Quase quatro meses após anunciar a adoção da meta contínua de inflação a partir de 2025, o governo Lula continua sem previsão para publicar o decreto que pactua a mudança do regime adotado hoje, de ano-calendário, para o novo formato.
Mais do que a falta de oficialização, a ausência do decreto gera receio entre agentes do mercado porque, até o momento, a equipe econômica deu poucas pistas de como será a nova sistemática.
Sem informações, há preocupações no mercado tanto em relação às expectativas de inflação para 2025 e 2026 — em 3,5% no boletim Focus, acima do alvo de 3% — quanto sobre o horizonte relevante para perseguir a meta.
Interlocutores da Fazenda ouvidos pelo Estadão/Broadcast reforçam que os estudos sobre sistemas de meta contínua em outros países já foram apresentados ao ministro Fernando Haddad. Quando ele definir uma proposta para o Brasil, o modelo será apresentado ao restante da equipe econômica e ao presidente Lula.
A avaliação interna é que essa não é a pauta prioritária, tendo em vista a extensa agenda econômica no Congresso. Por ora, a equipe guarda a sete chaves os levantamentos feitos sobre o assunto e, mesmo nos bastidores, prefere não dar pistas sobre qual modelo teria mais simpatia da Fazenda.
Em entrevista ao Estadão/Broadcast em setembro, o secretário de Política Econômica da pasta, Guilherme Mello, afirmou apenas que a Fazenda não costuma adotar a prática de simplesmente “copiar” uma experiência internacional — prefere, sim, fazer arranjos entre modelos bem-sucedidos e a realidade brasileira.
“Nós olhamos o padrão internacional, as melhores práticas, sopesamos isso com a realidade institucional brasileira, e decidimos por um modelo que depois vamos discutir com o restante dos interessados e levamos ao presidente”, disse.
No mercado, há quem diga que a incerteza sobre a condução do sistema de meta contínua ajuda a explicar as expectativas de inflação de 2025 e 2026 em 3,5% no boletim Focus, acima do alvo de 3%. Quando anunciou a mudança, o governo explicou que o atual regime ainda vai funcionar durante o ano de 2024. Há também quem se preocupe com a possibilidade de o governo usar o decreto que formalizará a meta contínua para fixar o horizonte que o Banco Central terá que perseguir.
Hoje, na prática, o BC tem flexibilidade, ao mirar no horizonte relevante da política monetária, e costuma trabalhar com um prazo de 18 meses para atingir a meta de inflação. Atualmente, como o sistema é por ano-calendário, se o objetivo não for cumprido em 12 meses, o presidente da autarquia precisa escrever uma carta para justificar o resultado.
“O medo é que o governo use o decreto para dizer que horizonte o BC tem que perseguir”, diz um ex-diretor do BC reservadamente. O formato da prestação de contas do Banco Central sobre o cumprimento da meta, via Relatório Trimestral de Inflação (RTI) ou carta aberta, e a periodicidade dessas publicações, entre outros pontos, têm importância menor para o mercado, acrescenta. “O relevante é se quiser escrever no decreto o horizonte. Seria muito ruim. O BC tem horizonte flexível, sinaliza, mas é flexível, e permite alongar (o cumprimento da meta)”, completa.
A Fazenda não deu sinais exatamente claros sobre o assunto quando anunciou o novo regime. Em junho, Haddad afirmou durante a coletiva de imprensa após a reunião do Conselho Monetário Nacional (CMN) que, “na prática”, o horizonte para atingir o alvo inflacionário seria de 24 meses com a adoção da meta contínua, mas não explicou o porquê dessa afirmação.
Em outro momento, no mesmo dia, o ministro disse que a decisão do horizonte será do BC — alternativa que, em tese, vai ao encontro do que preferem agentes do mercado.
Apesar dos receios, profissionais de mercado ponderam que a elaboração do decreto da mudança de regime naturalmente exigiria tempo, sem descartar que o texto possa estar parado por questões operacionais. “Mas quanto mais demora, mais pulga atrás da orelha”, resume uma fonte.
Quando anunciou a adoção do novo sistema de meta de inflação a partir de 2025, junto da fixação do patamar em 3% para 2026, o governo conseguiu gerar um alívio no mercado. Passou a atribuir, inclusive, uma melhora nas expectativas de inflação e a possibilidade de início do corte de juros, em parte, ao anúncio.
À época, a decisão também serviu para acalmar as preocupações de que o governo petista poderia elevar a meta inflacionária justamente para acomodar uma política fiscal expansionista. O mercado, por sua vez, ainda guarda desconfianças com a agenda econômica, debate alimentado recentemente pela meta de déficit zero no orçamento do próximo ano.
A ala do PT que, no meio do ano, nutriu especulações sobre uma meta de inflação mais alta, também é frequentemente responsável por um fogo amigo em torno do alvo de Haddad de produzir um resultado primário neutro em 2024. O Ministério da Fazenda foi procurado para comentar o decreto da meta contínua de inflação, mas não houve retorno até a publicação deste texto.