Economia e políticas públicas

Opinião|A encruzilhada diante de Lula


Presidente vai ter de optar nos próximos meses entre fazer uma uma substancial correção no rumo da política fiscal do seu terceiro mandato, ou tocar com a barriga e apostar na sorte de um cenário internacional predominantemente favorável até o ano eleitoral de 2026.

Por Fernando Dantas

Luiz Inácio Lula da Silva ingressou numa fase do seu mandato em que há uma clara bifurcação à frente relacionada à política econômica e, principalmente, fiscal. O caminho que o presidente escolher nos próximos meses deve moldar a paisagem político-econômica brasileira até o fim deste mandato presidencial e além.

Há alguns eventos políticos que atravancam a tomada de decisões sobre temas fundamentais e de longo prazo. O segundo turno das eleições municipais e a eleição para as presidências das Casas congressuais no início do próximo ano tendem a guiar corações e mentes do governo para o varejo da política. Nesse contexto, optar com sabedoria entre manter ou alterar o rumo geral do governo torna-se mais difícil.

Ainda assim, Lula não terá como escapar à escolha de redefinir seu governo ou não.

continua após a publicidade

O presidente iniciou o atual mandato com a diretriz de expandir fortemente o gasto público, mas tentando evitar o erro da nova matriz econômica de chutar completamente o balde da responsabilidade fiscal. Fernando Haddad, ministro da Fazenda, assumiu a missão de buscar mais receita tributária para financiar, na medida do possível, a expansão acelerada da receita.

O novo arcabouço fiscal, de certa forma, traduz em termos estruturais esse modus operandi. O gasto pode crescer, mas menos que a receita, de forma a gerar sustentabilidade da dívida pública de forma extremamente gradual.

No mundo da política, porém, tudo é mais confuso e malfeito do que no mundo das ideias. Medidas tomadas neste terceiro mandato de Lula tornaram a sustentação do arcabouço a médio e longo prazo uma possibilidade remota, e re-acionaram o principal mecanismo de fragilização fiscal do Brasil. A coluna se refere a, respectivamente, a revinculação dos gastos de saúde e educação à receita e a formalização da regra de aumento real do salário mínimo (que indexa dezenas de milhões de benefícios previdenciários e sociais) em praticamente todos os anos.

continua após a publicidade

É nesse contexto que Lula vai se aproximando do final do segundo ano do seu mandato. Analistas mais serenos já notaram desde o primeiro ano do Lula 3 que Haddad faz, sim, alguma diferença na política econômica petista. Há um pequeno núcleo no governo (de que Simone Tebet também participa) que busca evitar e mitigar o populismo econômico e fiscal mais desabrido.

Mas os mesmos analistas também já notaram que o arranjo é frágil, e depende fortemente do clima econômico-financeiro internacional. Supondo que a economia norte-americana tenha de fato um pouso excepcionalmente suave, que Kamala Harris seja a próxima presidente dos Estados Unidos e que a China consiga reimpulsionar a sua economia, o prêmio de risco do Brasil pode cair.

Nesse caso, os mercados tendem a fazer vista grossa para vulnerabilidades de emergentes como o Brasil. E, nessa conjuntura, seria possível pensar que, com alguns band-aids na política fiscal, o governo brasileiro conseguiria conduzir um pouso suave também na economia brasileira, com o providencial repique no ano eleitoral de 2026.

continua após a publicidade

Esta é a alternativa de tocar com a barriga. Concretamente, Lula acataria alguma "maldades" e vetaria outras da lista de medidas de corte de gastos de Haddad e Tebet, os tabus sobre os grandes problemas fiscais (mencionados acima) seriam reforçados e se tocaria o barco até a temporada eleitoral de 2026.

O atual estresse nos ativos brasileiros, porém, mostra como essa opção é arriscada. Se talvez seja exagero dizer, como no passado, que qualquer resfriado internacional provoca pneumonia no Brasil, é possível apontar que provoca, pelo menos, uma gripe forte.

Câmbio muito depreciado e curva de juros com prêmios superelevados são ingredientes que dificultam o pouso suave no Brasil. O trabalho do BC fica mais difícil, pois os efeitos dos seus instrumentos - já por natureza nada cirúrgicos - são sobrepujados pelas reações fortes e intempestivas de um mercado à beira do ataque de nervos.

continua após a publicidade

No momento a economia que afeta diretamente o eleitor mediano ainda vai bem, com crescimento acima das expectativas, desemprego em baixa recorde e uma inflação que não é pequena, mas está longe de explosiva.

Curiosamente, Lula não está colhendo os ganhos de popularidade dessa economia aquecida como acontecia no passado. Seus índices de aprovação são medianos, e não espetaculares. Há algumas hipóteses para explicar o fenômeno. Uma delas é que o eleitorado agora resolveu dar tanta ou mais importância à pauta de valores do que à situação do bolso. Outra, abordada recentemente neste espaço, é a "cheapflation", o fenômeno pelo qual a inflação dos produtos baratos, com destaque para alimentação, é maior do que a dos caros.

Seja como for, o ciclo de alta da Selic e o nervosismo dos ativos brasileiros prenunciam que a economia sentida diretamente pelo eleitor mediano tende, a curto e médio prazo, a ficar pior, e não melhor. É verdade que há bom prenúncios na área do clima e da agricultura para 2025, também abordados recentemente pela coluna, que podem amenizar a desaceleração e ajudar numa eventual retomada de 2025 para 2026. Mas, como de hábito, são projeções e hipóteses. Jogar todas as fichas em que tudo vai dar certo é contar com muita sorte.

continua após a publicidade

O segundo caminho na bifurcação diante de Lula seria o de, como primeiro passo, levar extremamente a sério o que Haddad e Tebet têm a lhe dizer sobre a situação da política fiscal. Nesse caso, o presidente não só aprovaria toda a lista de corte de gastos, como empregaria o seu enorme capital político e de popularidade para vendê-las como a coisa certa para a sociedade e ajudar a aprová-las no Congresso. E, claro, proibir terminantemente o fogo amigo dentro do governo e, na medida do que for possível, também o do PT.

Seria talvez irrealista e ingênuo cobrar de Lula que a curtíssimo prazo desse aval a temas ultracarregados politicamente como desvinculação de benefícios do salário mínimo. Mas uma postura presidencial firme e sem qualquer ambivalência em relação à agenda de corte de gastos de Haddad e Tebet sinalizaria para a sociedade a extrema necessidade do ajuste fiscal. E essa consciência social - como no caso da reforma da Previdência de 2019 - poderia abrir as portas para que, mais adiante, de forma gradativa e cautelosa, os temas tabu também fossem colocados na roda de uma agenda possível mesmo para um governo de esquerda.

Lula, goste ou não goste, está diante da encruzilhada. Nos próximos meses, deve ficar claro o caminho escolhido pelo presidente.

continua após a publicidade

Fernando Dantas é colunista do Broadcast e escreve às terças, quartas e sextas-feiras (fojdantas@gmail.com).

Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 18/10/2022, sexta-feira.

Luiz Inácio Lula da Silva ingressou numa fase do seu mandato em que há uma clara bifurcação à frente relacionada à política econômica e, principalmente, fiscal. O caminho que o presidente escolher nos próximos meses deve moldar a paisagem político-econômica brasileira até o fim deste mandato presidencial e além.

Há alguns eventos políticos que atravancam a tomada de decisões sobre temas fundamentais e de longo prazo. O segundo turno das eleições municipais e a eleição para as presidências das Casas congressuais no início do próximo ano tendem a guiar corações e mentes do governo para o varejo da política. Nesse contexto, optar com sabedoria entre manter ou alterar o rumo geral do governo torna-se mais difícil.

Ainda assim, Lula não terá como escapar à escolha de redefinir seu governo ou não.

O presidente iniciou o atual mandato com a diretriz de expandir fortemente o gasto público, mas tentando evitar o erro da nova matriz econômica de chutar completamente o balde da responsabilidade fiscal. Fernando Haddad, ministro da Fazenda, assumiu a missão de buscar mais receita tributária para financiar, na medida do possível, a expansão acelerada da receita.

O novo arcabouço fiscal, de certa forma, traduz em termos estruturais esse modus operandi. O gasto pode crescer, mas menos que a receita, de forma a gerar sustentabilidade da dívida pública de forma extremamente gradual.

No mundo da política, porém, tudo é mais confuso e malfeito do que no mundo das ideias. Medidas tomadas neste terceiro mandato de Lula tornaram a sustentação do arcabouço a médio e longo prazo uma possibilidade remota, e re-acionaram o principal mecanismo de fragilização fiscal do Brasil. A coluna se refere a, respectivamente, a revinculação dos gastos de saúde e educação à receita e a formalização da regra de aumento real do salário mínimo (que indexa dezenas de milhões de benefícios previdenciários e sociais) em praticamente todos os anos.

É nesse contexto que Lula vai se aproximando do final do segundo ano do seu mandato. Analistas mais serenos já notaram desde o primeiro ano do Lula 3 que Haddad faz, sim, alguma diferença na política econômica petista. Há um pequeno núcleo no governo (de que Simone Tebet também participa) que busca evitar e mitigar o populismo econômico e fiscal mais desabrido.

Mas os mesmos analistas também já notaram que o arranjo é frágil, e depende fortemente do clima econômico-financeiro internacional. Supondo que a economia norte-americana tenha de fato um pouso excepcionalmente suave, que Kamala Harris seja a próxima presidente dos Estados Unidos e que a China consiga reimpulsionar a sua economia, o prêmio de risco do Brasil pode cair.

Nesse caso, os mercados tendem a fazer vista grossa para vulnerabilidades de emergentes como o Brasil. E, nessa conjuntura, seria possível pensar que, com alguns band-aids na política fiscal, o governo brasileiro conseguiria conduzir um pouso suave também na economia brasileira, com o providencial repique no ano eleitoral de 2026.

Esta é a alternativa de tocar com a barriga. Concretamente, Lula acataria alguma "maldades" e vetaria outras da lista de medidas de corte de gastos de Haddad e Tebet, os tabus sobre os grandes problemas fiscais (mencionados acima) seriam reforçados e se tocaria o barco até a temporada eleitoral de 2026.

O atual estresse nos ativos brasileiros, porém, mostra como essa opção é arriscada. Se talvez seja exagero dizer, como no passado, que qualquer resfriado internacional provoca pneumonia no Brasil, é possível apontar que provoca, pelo menos, uma gripe forte.

Câmbio muito depreciado e curva de juros com prêmios superelevados são ingredientes que dificultam o pouso suave no Brasil. O trabalho do BC fica mais difícil, pois os efeitos dos seus instrumentos - já por natureza nada cirúrgicos - são sobrepujados pelas reações fortes e intempestivas de um mercado à beira do ataque de nervos.

No momento a economia que afeta diretamente o eleitor mediano ainda vai bem, com crescimento acima das expectativas, desemprego em baixa recorde e uma inflação que não é pequena, mas está longe de explosiva.

Curiosamente, Lula não está colhendo os ganhos de popularidade dessa economia aquecida como acontecia no passado. Seus índices de aprovação são medianos, e não espetaculares. Há algumas hipóteses para explicar o fenômeno. Uma delas é que o eleitorado agora resolveu dar tanta ou mais importância à pauta de valores do que à situação do bolso. Outra, abordada recentemente neste espaço, é a "cheapflation", o fenômeno pelo qual a inflação dos produtos baratos, com destaque para alimentação, é maior do que a dos caros.

Seja como for, o ciclo de alta da Selic e o nervosismo dos ativos brasileiros prenunciam que a economia sentida diretamente pelo eleitor mediano tende, a curto e médio prazo, a ficar pior, e não melhor. É verdade que há bom prenúncios na área do clima e da agricultura para 2025, também abordados recentemente pela coluna, que podem amenizar a desaceleração e ajudar numa eventual retomada de 2025 para 2026. Mas, como de hábito, são projeções e hipóteses. Jogar todas as fichas em que tudo vai dar certo é contar com muita sorte.

O segundo caminho na bifurcação diante de Lula seria o de, como primeiro passo, levar extremamente a sério o que Haddad e Tebet têm a lhe dizer sobre a situação da política fiscal. Nesse caso, o presidente não só aprovaria toda a lista de corte de gastos, como empregaria o seu enorme capital político e de popularidade para vendê-las como a coisa certa para a sociedade e ajudar a aprová-las no Congresso. E, claro, proibir terminantemente o fogo amigo dentro do governo e, na medida do que for possível, também o do PT.

Seria talvez irrealista e ingênuo cobrar de Lula que a curtíssimo prazo desse aval a temas ultracarregados politicamente como desvinculação de benefícios do salário mínimo. Mas uma postura presidencial firme e sem qualquer ambivalência em relação à agenda de corte de gastos de Haddad e Tebet sinalizaria para a sociedade a extrema necessidade do ajuste fiscal. E essa consciência social - como no caso da reforma da Previdência de 2019 - poderia abrir as portas para que, mais adiante, de forma gradativa e cautelosa, os temas tabu também fossem colocados na roda de uma agenda possível mesmo para um governo de esquerda.

Lula, goste ou não goste, está diante da encruzilhada. Nos próximos meses, deve ficar claro o caminho escolhido pelo presidente.

Fernando Dantas é colunista do Broadcast e escreve às terças, quartas e sextas-feiras (fojdantas@gmail.com).

Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 18/10/2022, sexta-feira.

Luiz Inácio Lula da Silva ingressou numa fase do seu mandato em que há uma clara bifurcação à frente relacionada à política econômica e, principalmente, fiscal. O caminho que o presidente escolher nos próximos meses deve moldar a paisagem político-econômica brasileira até o fim deste mandato presidencial e além.

Há alguns eventos políticos que atravancam a tomada de decisões sobre temas fundamentais e de longo prazo. O segundo turno das eleições municipais e a eleição para as presidências das Casas congressuais no início do próximo ano tendem a guiar corações e mentes do governo para o varejo da política. Nesse contexto, optar com sabedoria entre manter ou alterar o rumo geral do governo torna-se mais difícil.

Ainda assim, Lula não terá como escapar à escolha de redefinir seu governo ou não.

O presidente iniciou o atual mandato com a diretriz de expandir fortemente o gasto público, mas tentando evitar o erro da nova matriz econômica de chutar completamente o balde da responsabilidade fiscal. Fernando Haddad, ministro da Fazenda, assumiu a missão de buscar mais receita tributária para financiar, na medida do possível, a expansão acelerada da receita.

O novo arcabouço fiscal, de certa forma, traduz em termos estruturais esse modus operandi. O gasto pode crescer, mas menos que a receita, de forma a gerar sustentabilidade da dívida pública de forma extremamente gradual.

No mundo da política, porém, tudo é mais confuso e malfeito do que no mundo das ideias. Medidas tomadas neste terceiro mandato de Lula tornaram a sustentação do arcabouço a médio e longo prazo uma possibilidade remota, e re-acionaram o principal mecanismo de fragilização fiscal do Brasil. A coluna se refere a, respectivamente, a revinculação dos gastos de saúde e educação à receita e a formalização da regra de aumento real do salário mínimo (que indexa dezenas de milhões de benefícios previdenciários e sociais) em praticamente todos os anos.

É nesse contexto que Lula vai se aproximando do final do segundo ano do seu mandato. Analistas mais serenos já notaram desde o primeiro ano do Lula 3 que Haddad faz, sim, alguma diferença na política econômica petista. Há um pequeno núcleo no governo (de que Simone Tebet também participa) que busca evitar e mitigar o populismo econômico e fiscal mais desabrido.

Mas os mesmos analistas também já notaram que o arranjo é frágil, e depende fortemente do clima econômico-financeiro internacional. Supondo que a economia norte-americana tenha de fato um pouso excepcionalmente suave, que Kamala Harris seja a próxima presidente dos Estados Unidos e que a China consiga reimpulsionar a sua economia, o prêmio de risco do Brasil pode cair.

Nesse caso, os mercados tendem a fazer vista grossa para vulnerabilidades de emergentes como o Brasil. E, nessa conjuntura, seria possível pensar que, com alguns band-aids na política fiscal, o governo brasileiro conseguiria conduzir um pouso suave também na economia brasileira, com o providencial repique no ano eleitoral de 2026.

Esta é a alternativa de tocar com a barriga. Concretamente, Lula acataria alguma "maldades" e vetaria outras da lista de medidas de corte de gastos de Haddad e Tebet, os tabus sobre os grandes problemas fiscais (mencionados acima) seriam reforçados e se tocaria o barco até a temporada eleitoral de 2026.

O atual estresse nos ativos brasileiros, porém, mostra como essa opção é arriscada. Se talvez seja exagero dizer, como no passado, que qualquer resfriado internacional provoca pneumonia no Brasil, é possível apontar que provoca, pelo menos, uma gripe forte.

Câmbio muito depreciado e curva de juros com prêmios superelevados são ingredientes que dificultam o pouso suave no Brasil. O trabalho do BC fica mais difícil, pois os efeitos dos seus instrumentos - já por natureza nada cirúrgicos - são sobrepujados pelas reações fortes e intempestivas de um mercado à beira do ataque de nervos.

No momento a economia que afeta diretamente o eleitor mediano ainda vai bem, com crescimento acima das expectativas, desemprego em baixa recorde e uma inflação que não é pequena, mas está longe de explosiva.

Curiosamente, Lula não está colhendo os ganhos de popularidade dessa economia aquecida como acontecia no passado. Seus índices de aprovação são medianos, e não espetaculares. Há algumas hipóteses para explicar o fenômeno. Uma delas é que o eleitorado agora resolveu dar tanta ou mais importância à pauta de valores do que à situação do bolso. Outra, abordada recentemente neste espaço, é a "cheapflation", o fenômeno pelo qual a inflação dos produtos baratos, com destaque para alimentação, é maior do que a dos caros.

Seja como for, o ciclo de alta da Selic e o nervosismo dos ativos brasileiros prenunciam que a economia sentida diretamente pelo eleitor mediano tende, a curto e médio prazo, a ficar pior, e não melhor. É verdade que há bom prenúncios na área do clima e da agricultura para 2025, também abordados recentemente pela coluna, que podem amenizar a desaceleração e ajudar numa eventual retomada de 2025 para 2026. Mas, como de hábito, são projeções e hipóteses. Jogar todas as fichas em que tudo vai dar certo é contar com muita sorte.

O segundo caminho na bifurcação diante de Lula seria o de, como primeiro passo, levar extremamente a sério o que Haddad e Tebet têm a lhe dizer sobre a situação da política fiscal. Nesse caso, o presidente não só aprovaria toda a lista de corte de gastos, como empregaria o seu enorme capital político e de popularidade para vendê-las como a coisa certa para a sociedade e ajudar a aprová-las no Congresso. E, claro, proibir terminantemente o fogo amigo dentro do governo e, na medida do que for possível, também o do PT.

Seria talvez irrealista e ingênuo cobrar de Lula que a curtíssimo prazo desse aval a temas ultracarregados politicamente como desvinculação de benefícios do salário mínimo. Mas uma postura presidencial firme e sem qualquer ambivalência em relação à agenda de corte de gastos de Haddad e Tebet sinalizaria para a sociedade a extrema necessidade do ajuste fiscal. E essa consciência social - como no caso da reforma da Previdência de 2019 - poderia abrir as portas para que, mais adiante, de forma gradativa e cautelosa, os temas tabu também fossem colocados na roda de uma agenda possível mesmo para um governo de esquerda.

Lula, goste ou não goste, está diante da encruzilhada. Nos próximos meses, deve ficar claro o caminho escolhido pelo presidente.

Fernando Dantas é colunista do Broadcast e escreve às terças, quartas e sextas-feiras (fojdantas@gmail.com).

Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 18/10/2022, sexta-feira.

Luiz Inácio Lula da Silva ingressou numa fase do seu mandato em que há uma clara bifurcação à frente relacionada à política econômica e, principalmente, fiscal. O caminho que o presidente escolher nos próximos meses deve moldar a paisagem político-econômica brasileira até o fim deste mandato presidencial e além.

Há alguns eventos políticos que atravancam a tomada de decisões sobre temas fundamentais e de longo prazo. O segundo turno das eleições municipais e a eleição para as presidências das Casas congressuais no início do próximo ano tendem a guiar corações e mentes do governo para o varejo da política. Nesse contexto, optar com sabedoria entre manter ou alterar o rumo geral do governo torna-se mais difícil.

Ainda assim, Lula não terá como escapar à escolha de redefinir seu governo ou não.

O presidente iniciou o atual mandato com a diretriz de expandir fortemente o gasto público, mas tentando evitar o erro da nova matriz econômica de chutar completamente o balde da responsabilidade fiscal. Fernando Haddad, ministro da Fazenda, assumiu a missão de buscar mais receita tributária para financiar, na medida do possível, a expansão acelerada da receita.

O novo arcabouço fiscal, de certa forma, traduz em termos estruturais esse modus operandi. O gasto pode crescer, mas menos que a receita, de forma a gerar sustentabilidade da dívida pública de forma extremamente gradual.

No mundo da política, porém, tudo é mais confuso e malfeito do que no mundo das ideias. Medidas tomadas neste terceiro mandato de Lula tornaram a sustentação do arcabouço a médio e longo prazo uma possibilidade remota, e re-acionaram o principal mecanismo de fragilização fiscal do Brasil. A coluna se refere a, respectivamente, a revinculação dos gastos de saúde e educação à receita e a formalização da regra de aumento real do salário mínimo (que indexa dezenas de milhões de benefícios previdenciários e sociais) em praticamente todos os anos.

É nesse contexto que Lula vai se aproximando do final do segundo ano do seu mandato. Analistas mais serenos já notaram desde o primeiro ano do Lula 3 que Haddad faz, sim, alguma diferença na política econômica petista. Há um pequeno núcleo no governo (de que Simone Tebet também participa) que busca evitar e mitigar o populismo econômico e fiscal mais desabrido.

Mas os mesmos analistas também já notaram que o arranjo é frágil, e depende fortemente do clima econômico-financeiro internacional. Supondo que a economia norte-americana tenha de fato um pouso excepcionalmente suave, que Kamala Harris seja a próxima presidente dos Estados Unidos e que a China consiga reimpulsionar a sua economia, o prêmio de risco do Brasil pode cair.

Nesse caso, os mercados tendem a fazer vista grossa para vulnerabilidades de emergentes como o Brasil. E, nessa conjuntura, seria possível pensar que, com alguns band-aids na política fiscal, o governo brasileiro conseguiria conduzir um pouso suave também na economia brasileira, com o providencial repique no ano eleitoral de 2026.

Esta é a alternativa de tocar com a barriga. Concretamente, Lula acataria alguma "maldades" e vetaria outras da lista de medidas de corte de gastos de Haddad e Tebet, os tabus sobre os grandes problemas fiscais (mencionados acima) seriam reforçados e se tocaria o barco até a temporada eleitoral de 2026.

O atual estresse nos ativos brasileiros, porém, mostra como essa opção é arriscada. Se talvez seja exagero dizer, como no passado, que qualquer resfriado internacional provoca pneumonia no Brasil, é possível apontar que provoca, pelo menos, uma gripe forte.

Câmbio muito depreciado e curva de juros com prêmios superelevados são ingredientes que dificultam o pouso suave no Brasil. O trabalho do BC fica mais difícil, pois os efeitos dos seus instrumentos - já por natureza nada cirúrgicos - são sobrepujados pelas reações fortes e intempestivas de um mercado à beira do ataque de nervos.

No momento a economia que afeta diretamente o eleitor mediano ainda vai bem, com crescimento acima das expectativas, desemprego em baixa recorde e uma inflação que não é pequena, mas está longe de explosiva.

Curiosamente, Lula não está colhendo os ganhos de popularidade dessa economia aquecida como acontecia no passado. Seus índices de aprovação são medianos, e não espetaculares. Há algumas hipóteses para explicar o fenômeno. Uma delas é que o eleitorado agora resolveu dar tanta ou mais importância à pauta de valores do que à situação do bolso. Outra, abordada recentemente neste espaço, é a "cheapflation", o fenômeno pelo qual a inflação dos produtos baratos, com destaque para alimentação, é maior do que a dos caros.

Seja como for, o ciclo de alta da Selic e o nervosismo dos ativos brasileiros prenunciam que a economia sentida diretamente pelo eleitor mediano tende, a curto e médio prazo, a ficar pior, e não melhor. É verdade que há bom prenúncios na área do clima e da agricultura para 2025, também abordados recentemente pela coluna, que podem amenizar a desaceleração e ajudar numa eventual retomada de 2025 para 2026. Mas, como de hábito, são projeções e hipóteses. Jogar todas as fichas em que tudo vai dar certo é contar com muita sorte.

O segundo caminho na bifurcação diante de Lula seria o de, como primeiro passo, levar extremamente a sério o que Haddad e Tebet têm a lhe dizer sobre a situação da política fiscal. Nesse caso, o presidente não só aprovaria toda a lista de corte de gastos, como empregaria o seu enorme capital político e de popularidade para vendê-las como a coisa certa para a sociedade e ajudar a aprová-las no Congresso. E, claro, proibir terminantemente o fogo amigo dentro do governo e, na medida do que for possível, também o do PT.

Seria talvez irrealista e ingênuo cobrar de Lula que a curtíssimo prazo desse aval a temas ultracarregados politicamente como desvinculação de benefícios do salário mínimo. Mas uma postura presidencial firme e sem qualquer ambivalência em relação à agenda de corte de gastos de Haddad e Tebet sinalizaria para a sociedade a extrema necessidade do ajuste fiscal. E essa consciência social - como no caso da reforma da Previdência de 2019 - poderia abrir as portas para que, mais adiante, de forma gradativa e cautelosa, os temas tabu também fossem colocados na roda de uma agenda possível mesmo para um governo de esquerda.

Lula, goste ou não goste, está diante da encruzilhada. Nos próximos meses, deve ficar claro o caminho escolhido pelo presidente.

Fernando Dantas é colunista do Broadcast e escreve às terças, quartas e sextas-feiras (fojdantas@gmail.com).

Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 18/10/2022, sexta-feira.

Opinião por Fernando Dantas

Atualizamos nossa política de cookies

Ao utilizar nossos serviços, você aceita a política de monitoramento de cookies.