Economia e políticas públicas

Opinião|A nova cara do pobre: sem trabalho


Ricardo Paes de Barros, especialista em pobreza, e colegas do Insper apontam queda enorme, entre os mais pobres, da proporção das pessoas em idade de trabalhar que trabalham. Salário mínimo real elevado pode ser uma causa.

Por Fernando Dantas

A extrema pobreza no Brasil em 2021, atingindo quase 10% da população, representou um recuo no tempo de 14 anos, para um nível próximo do prevalecente em 2007-08. Com base em pesquisa realizada com Laura Muller Machado e Laura Almeida Ramos de Abreu, o economista Ricardo Paes de Barros, conhecido como "PB", explica que a retomada econômica recente está acontecendo com crescimento da pobreza. Os três pesquisadores são do Insper.

"Não estamos compartilhando essa prosperidade com os 5-10% mais pobres, que não estão conseguindo se engajar no mundo do trabalho", diz PB.

Isso acontece em função de uma mudança muito forte nas características dos brasileiros mais pobres, segundo os pesquisadores.

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Entre 2004 e 2014, período de grande queda da pobreza e de redução da desigualdade, a renda familiar per capita dos 10% mais pobres no Brasil aumentou a um ritmo de 8% ao ano, de R$ 84 para R$ 177. PB mostra que 52% desse aumento veio da renda não derivada do trabalho (basicamente transferências), que cresceu 11% ao ano em termos reais no período; e 46% da remuneração do trabalho, que teve alta média anual real de 6%.

Já no período de 2014 a 2021, a renda per capita dos 10% mais pobres quase devolveu todo o ganho de 2004-2014, caindo a um ritmo de 8% ao ano para R$ 94. Cerca de 27% dessa queda se deve a uma redução real de 4% ao ano na renda não derivada do trabalho, que são basicamente transferências.

Uma parcela de 26% do recuo da renda per capita vem do recuo de 5% ao ano da remuneração do trabalho.

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Mas é nesse ponto que PB introduz uma radical mudança no perfil do pobre entre 2014 e 2021: o nível de ocupação (definido no trabalho de PB e nesta coluna sempre como os ocupados como parcela das pessoas em idade de trabalhar) entre os 10% mais pobres despencou de 36% para 18%, isto é, caiu pela metade. Isso por si só explicaria 78% da redução quase pela metade da renda per capita familiar entre 2014 e 2021. O resultado só não foi pior porque o porcentual de adultos nos domicílios dos 10% mais pobres subiu de 59% para 67% entre 2014 e 2021, compensando um pouco a queda no nívelde ocupação.

"Entre os 10% mais pobres, só 18% dos adultos em idade de trabalhar trabalhavam em 2021, é uma crise de trabalho entre os pobres". Entre os 5% mais pobres, o indicador cai para apenas 10%.

Já o nível de ocupação do Brasil como um todo teve um recuo de 59% para 53% entre 2014 e 2021.

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Quando se considera a duas décadas de 2001 a 2021, a queda do nível de ocupação dos pobres revela-se ainda mais dramática: de 48% para 18% entre os 10% mais pobres, enquanto a dos brasileiros como um todo saiu de 60% para 53%.

Explicações - PB diz não saber ao certo o que levou a essa enorme redução da ocupação dos mais pobres, mas desconfia que pode estar ligada a um salário mínimo real muito alto.

"A gente pode estar começando a pagar o preço de ter um salário mínimo elevado", ele pondera, acrescentando que entre 2001 e 2019 o salário mínimo foi aumentado quase 70% a mais que a evolução da produtividade do trabalho.

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Outra possível explicação é que hoje o pobre recebe mais transferências do que no passado, e o chamado "salário de reserva" (o mínimo pelo que se aceita trabalhar) tenha se tornado mais alto.

Mas PB, sem ter ainda uma resposta segura à questão, crê mais no fator salário mínimo.

"Na verdade, de 2004 a 2014, a remuneração do trabalho [dos 10% mais pobres] aumenta e a taxa de ocupação cai, o que parece ser muito mais um efeito do salário mínimo do que de a pessoa não querer o emprego - parece mais um problema de demanda por trabalho do que de salário de reserva alto", aponta o pesquisador.

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No período pós 2014, com queda do salário real, a taxa de ocupação dos 10% mais pobres cai de forma ainda bem mais drástica.

Entre 2001 e 2021 houve também um enorme aumento da taxa de desemprego entre os mais pobres, não acompanhada pelo mesmo indicador dos mais ricos.

Entre os 5% mais pobres, a taxa de desemprego em 2021 foi de 77% (contra 14% para a população como um todo), número que vai a 90% se incluir os desencorajados e os que trabalham menos horas do que gostariam. Para a população em geral, o mesmo indicador em 2021 foi de 28%.

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A taxa de desemprego, por envolver por definição os que querem trabalhar, também é um indicativo de que a crise de trabalho entre os pobres é mais uma questão de demanda por trabalho do que de oferta de trabalhadores.

"A gente pode estar sofrendo as consequências do aumento desenfreado do salário mínimo, que foi tão bom para reduzir a pobreza de 2004 e 2014", diz o pesquisador.

Um terceiro componente mencionado por PB seria ligado ao que chama de "estratégias de sobrevivência" dos mais pobres, ligadas a trabalhos extremamente precários.

"Durante a recessão e principalmente durante a pandemia, a gente aprendeu a viver sem esse trabalho precário", diz o pesquisador, referindo-se a quem consome o produto (basicamente serviços) desse tipo de ocupação.

Ele exemplifica com o fato de que novas gerações consideram uma empregada doméstica 24 horas por dia em casa como algo intrusivo. E há também uma série de serviços ineficientes que as empresas costumavam contratar até perceberem que não precisavam mais deles.

Já mudanças tecnológicas como iFood e Uber conseguem fazer com menos gente um volume de serviços cuja realização antes era disseminada entre um número muito maior de ocupados menos eficientes.

"Estratégias de sobrevivência que os pobres levaram 30 anos para criar e pelas quais davam uma pequena mordida na economia brasileira desapareceram, e eles têm muito mais dificuldade de abocanhar alguma renda porque não conseguiram substituir as estratégias antigas por estratégias novas", acrescenta PB.

Para o economista, quando se analisa a tendência histórica, "estamos trocando o pobre que trabalhava 60 horas por semana todas as semanas do ano, com renda muito baixa, pelo pobre que não tem trabalho".

Na sua visão, já era difícil acabar com a pobreza quando a pessoa trabalhava, mas o trabalho dela era pouco produtivo - a solução era melhorar a produtividade do trabalho desse indivíduo.

"Agora você tem alguém que não está trabalhando há dois anos, como vai fazer a inserção dele no mundo do trabalho? - fica muito mais difícil", conclui o pesquisador.

E quanto mais tempo passar, mais grave se torna o problema, porque os mais pobres se desconectam cada vez mais do mundo do trabalho.

Fernando Dantas é colunista do Broadcast (fernando.dantas@estadao.com)

Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 13/10/2022, quinta-feira.

A extrema pobreza no Brasil em 2021, atingindo quase 10% da população, representou um recuo no tempo de 14 anos, para um nível próximo do prevalecente em 2007-08. Com base em pesquisa realizada com Laura Muller Machado e Laura Almeida Ramos de Abreu, o economista Ricardo Paes de Barros, conhecido como "PB", explica que a retomada econômica recente está acontecendo com crescimento da pobreza. Os três pesquisadores são do Insper.

"Não estamos compartilhando essa prosperidade com os 5-10% mais pobres, que não estão conseguindo se engajar no mundo do trabalho", diz PB.

Isso acontece em função de uma mudança muito forte nas características dos brasileiros mais pobres, segundo os pesquisadores.

Entre 2004 e 2014, período de grande queda da pobreza e de redução da desigualdade, a renda familiar per capita dos 10% mais pobres no Brasil aumentou a um ritmo de 8% ao ano, de R$ 84 para R$ 177. PB mostra que 52% desse aumento veio da renda não derivada do trabalho (basicamente transferências), que cresceu 11% ao ano em termos reais no período; e 46% da remuneração do trabalho, que teve alta média anual real de 6%.

Já no período de 2014 a 2021, a renda per capita dos 10% mais pobres quase devolveu todo o ganho de 2004-2014, caindo a um ritmo de 8% ao ano para R$ 94. Cerca de 27% dessa queda se deve a uma redução real de 4% ao ano na renda não derivada do trabalho, que são basicamente transferências.

Uma parcela de 26% do recuo da renda per capita vem do recuo de 5% ao ano da remuneração do trabalho.

Mas é nesse ponto que PB introduz uma radical mudança no perfil do pobre entre 2014 e 2021: o nível de ocupação (definido no trabalho de PB e nesta coluna sempre como os ocupados como parcela das pessoas em idade de trabalhar) entre os 10% mais pobres despencou de 36% para 18%, isto é, caiu pela metade. Isso por si só explicaria 78% da redução quase pela metade da renda per capita familiar entre 2014 e 2021. O resultado só não foi pior porque o porcentual de adultos nos domicílios dos 10% mais pobres subiu de 59% para 67% entre 2014 e 2021, compensando um pouco a queda no nívelde ocupação.

"Entre os 10% mais pobres, só 18% dos adultos em idade de trabalhar trabalhavam em 2021, é uma crise de trabalho entre os pobres". Entre os 5% mais pobres, o indicador cai para apenas 10%.

Já o nível de ocupação do Brasil como um todo teve um recuo de 59% para 53% entre 2014 e 2021.

Quando se considera a duas décadas de 2001 a 2021, a queda do nível de ocupação dos pobres revela-se ainda mais dramática: de 48% para 18% entre os 10% mais pobres, enquanto a dos brasileiros como um todo saiu de 60% para 53%.

Explicações - PB diz não saber ao certo o que levou a essa enorme redução da ocupação dos mais pobres, mas desconfia que pode estar ligada a um salário mínimo real muito alto.

"A gente pode estar começando a pagar o preço de ter um salário mínimo elevado", ele pondera, acrescentando que entre 2001 e 2019 o salário mínimo foi aumentado quase 70% a mais que a evolução da produtividade do trabalho.

Outra possível explicação é que hoje o pobre recebe mais transferências do que no passado, e o chamado "salário de reserva" (o mínimo pelo que se aceita trabalhar) tenha se tornado mais alto.

Mas PB, sem ter ainda uma resposta segura à questão, crê mais no fator salário mínimo.

"Na verdade, de 2004 a 2014, a remuneração do trabalho [dos 10% mais pobres] aumenta e a taxa de ocupação cai, o que parece ser muito mais um efeito do salário mínimo do que de a pessoa não querer o emprego - parece mais um problema de demanda por trabalho do que de salário de reserva alto", aponta o pesquisador.

No período pós 2014, com queda do salário real, a taxa de ocupação dos 10% mais pobres cai de forma ainda bem mais drástica.

Entre 2001 e 2021 houve também um enorme aumento da taxa de desemprego entre os mais pobres, não acompanhada pelo mesmo indicador dos mais ricos.

Entre os 5% mais pobres, a taxa de desemprego em 2021 foi de 77% (contra 14% para a população como um todo), número que vai a 90% se incluir os desencorajados e os que trabalham menos horas do que gostariam. Para a população em geral, o mesmo indicador em 2021 foi de 28%.

A taxa de desemprego, por envolver por definição os que querem trabalhar, também é um indicativo de que a crise de trabalho entre os pobres é mais uma questão de demanda por trabalho do que de oferta de trabalhadores.

"A gente pode estar sofrendo as consequências do aumento desenfreado do salário mínimo, que foi tão bom para reduzir a pobreza de 2004 e 2014", diz o pesquisador.

Um terceiro componente mencionado por PB seria ligado ao que chama de "estratégias de sobrevivência" dos mais pobres, ligadas a trabalhos extremamente precários.

"Durante a recessão e principalmente durante a pandemia, a gente aprendeu a viver sem esse trabalho precário", diz o pesquisador, referindo-se a quem consome o produto (basicamente serviços) desse tipo de ocupação.

Ele exemplifica com o fato de que novas gerações consideram uma empregada doméstica 24 horas por dia em casa como algo intrusivo. E há também uma série de serviços ineficientes que as empresas costumavam contratar até perceberem que não precisavam mais deles.

Já mudanças tecnológicas como iFood e Uber conseguem fazer com menos gente um volume de serviços cuja realização antes era disseminada entre um número muito maior de ocupados menos eficientes.

"Estratégias de sobrevivência que os pobres levaram 30 anos para criar e pelas quais davam uma pequena mordida na economia brasileira desapareceram, e eles têm muito mais dificuldade de abocanhar alguma renda porque não conseguiram substituir as estratégias antigas por estratégias novas", acrescenta PB.

Para o economista, quando se analisa a tendência histórica, "estamos trocando o pobre que trabalhava 60 horas por semana todas as semanas do ano, com renda muito baixa, pelo pobre que não tem trabalho".

Na sua visão, já era difícil acabar com a pobreza quando a pessoa trabalhava, mas o trabalho dela era pouco produtivo - a solução era melhorar a produtividade do trabalho desse indivíduo.

"Agora você tem alguém que não está trabalhando há dois anos, como vai fazer a inserção dele no mundo do trabalho? - fica muito mais difícil", conclui o pesquisador.

E quanto mais tempo passar, mais grave se torna o problema, porque os mais pobres se desconectam cada vez mais do mundo do trabalho.

Fernando Dantas é colunista do Broadcast (fernando.dantas@estadao.com)

Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 13/10/2022, quinta-feira.

A extrema pobreza no Brasil em 2021, atingindo quase 10% da população, representou um recuo no tempo de 14 anos, para um nível próximo do prevalecente em 2007-08. Com base em pesquisa realizada com Laura Muller Machado e Laura Almeida Ramos de Abreu, o economista Ricardo Paes de Barros, conhecido como "PB", explica que a retomada econômica recente está acontecendo com crescimento da pobreza. Os três pesquisadores são do Insper.

"Não estamos compartilhando essa prosperidade com os 5-10% mais pobres, que não estão conseguindo se engajar no mundo do trabalho", diz PB.

Isso acontece em função de uma mudança muito forte nas características dos brasileiros mais pobres, segundo os pesquisadores.

Entre 2004 e 2014, período de grande queda da pobreza e de redução da desigualdade, a renda familiar per capita dos 10% mais pobres no Brasil aumentou a um ritmo de 8% ao ano, de R$ 84 para R$ 177. PB mostra que 52% desse aumento veio da renda não derivada do trabalho (basicamente transferências), que cresceu 11% ao ano em termos reais no período; e 46% da remuneração do trabalho, que teve alta média anual real de 6%.

Já no período de 2014 a 2021, a renda per capita dos 10% mais pobres quase devolveu todo o ganho de 2004-2014, caindo a um ritmo de 8% ao ano para R$ 94. Cerca de 27% dessa queda se deve a uma redução real de 4% ao ano na renda não derivada do trabalho, que são basicamente transferências.

Uma parcela de 26% do recuo da renda per capita vem do recuo de 5% ao ano da remuneração do trabalho.

Mas é nesse ponto que PB introduz uma radical mudança no perfil do pobre entre 2014 e 2021: o nível de ocupação (definido no trabalho de PB e nesta coluna sempre como os ocupados como parcela das pessoas em idade de trabalhar) entre os 10% mais pobres despencou de 36% para 18%, isto é, caiu pela metade. Isso por si só explicaria 78% da redução quase pela metade da renda per capita familiar entre 2014 e 2021. O resultado só não foi pior porque o porcentual de adultos nos domicílios dos 10% mais pobres subiu de 59% para 67% entre 2014 e 2021, compensando um pouco a queda no nívelde ocupação.

"Entre os 10% mais pobres, só 18% dos adultos em idade de trabalhar trabalhavam em 2021, é uma crise de trabalho entre os pobres". Entre os 5% mais pobres, o indicador cai para apenas 10%.

Já o nível de ocupação do Brasil como um todo teve um recuo de 59% para 53% entre 2014 e 2021.

Quando se considera a duas décadas de 2001 a 2021, a queda do nível de ocupação dos pobres revela-se ainda mais dramática: de 48% para 18% entre os 10% mais pobres, enquanto a dos brasileiros como um todo saiu de 60% para 53%.

Explicações - PB diz não saber ao certo o que levou a essa enorme redução da ocupação dos mais pobres, mas desconfia que pode estar ligada a um salário mínimo real muito alto.

"A gente pode estar começando a pagar o preço de ter um salário mínimo elevado", ele pondera, acrescentando que entre 2001 e 2019 o salário mínimo foi aumentado quase 70% a mais que a evolução da produtividade do trabalho.

Outra possível explicação é que hoje o pobre recebe mais transferências do que no passado, e o chamado "salário de reserva" (o mínimo pelo que se aceita trabalhar) tenha se tornado mais alto.

Mas PB, sem ter ainda uma resposta segura à questão, crê mais no fator salário mínimo.

"Na verdade, de 2004 a 2014, a remuneração do trabalho [dos 10% mais pobres] aumenta e a taxa de ocupação cai, o que parece ser muito mais um efeito do salário mínimo do que de a pessoa não querer o emprego - parece mais um problema de demanda por trabalho do que de salário de reserva alto", aponta o pesquisador.

No período pós 2014, com queda do salário real, a taxa de ocupação dos 10% mais pobres cai de forma ainda bem mais drástica.

Entre 2001 e 2021 houve também um enorme aumento da taxa de desemprego entre os mais pobres, não acompanhada pelo mesmo indicador dos mais ricos.

Entre os 5% mais pobres, a taxa de desemprego em 2021 foi de 77% (contra 14% para a população como um todo), número que vai a 90% se incluir os desencorajados e os que trabalham menos horas do que gostariam. Para a população em geral, o mesmo indicador em 2021 foi de 28%.

A taxa de desemprego, por envolver por definição os que querem trabalhar, também é um indicativo de que a crise de trabalho entre os pobres é mais uma questão de demanda por trabalho do que de oferta de trabalhadores.

"A gente pode estar sofrendo as consequências do aumento desenfreado do salário mínimo, que foi tão bom para reduzir a pobreza de 2004 e 2014", diz o pesquisador.

Um terceiro componente mencionado por PB seria ligado ao que chama de "estratégias de sobrevivência" dos mais pobres, ligadas a trabalhos extremamente precários.

"Durante a recessão e principalmente durante a pandemia, a gente aprendeu a viver sem esse trabalho precário", diz o pesquisador, referindo-se a quem consome o produto (basicamente serviços) desse tipo de ocupação.

Ele exemplifica com o fato de que novas gerações consideram uma empregada doméstica 24 horas por dia em casa como algo intrusivo. E há também uma série de serviços ineficientes que as empresas costumavam contratar até perceberem que não precisavam mais deles.

Já mudanças tecnológicas como iFood e Uber conseguem fazer com menos gente um volume de serviços cuja realização antes era disseminada entre um número muito maior de ocupados menos eficientes.

"Estratégias de sobrevivência que os pobres levaram 30 anos para criar e pelas quais davam uma pequena mordida na economia brasileira desapareceram, e eles têm muito mais dificuldade de abocanhar alguma renda porque não conseguiram substituir as estratégias antigas por estratégias novas", acrescenta PB.

Para o economista, quando se analisa a tendência histórica, "estamos trocando o pobre que trabalhava 60 horas por semana todas as semanas do ano, com renda muito baixa, pelo pobre que não tem trabalho".

Na sua visão, já era difícil acabar com a pobreza quando a pessoa trabalhava, mas o trabalho dela era pouco produtivo - a solução era melhorar a produtividade do trabalho desse indivíduo.

"Agora você tem alguém que não está trabalhando há dois anos, como vai fazer a inserção dele no mundo do trabalho? - fica muito mais difícil", conclui o pesquisador.

E quanto mais tempo passar, mais grave se torna o problema, porque os mais pobres se desconectam cada vez mais do mundo do trabalho.

Fernando Dantas é colunista do Broadcast (fernando.dantas@estadao.com)

Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 13/10/2022, quinta-feira.

A extrema pobreza no Brasil em 2021, atingindo quase 10% da população, representou um recuo no tempo de 14 anos, para um nível próximo do prevalecente em 2007-08. Com base em pesquisa realizada com Laura Muller Machado e Laura Almeida Ramos de Abreu, o economista Ricardo Paes de Barros, conhecido como "PB", explica que a retomada econômica recente está acontecendo com crescimento da pobreza. Os três pesquisadores são do Insper.

"Não estamos compartilhando essa prosperidade com os 5-10% mais pobres, que não estão conseguindo se engajar no mundo do trabalho", diz PB.

Isso acontece em função de uma mudança muito forte nas características dos brasileiros mais pobres, segundo os pesquisadores.

Entre 2004 e 2014, período de grande queda da pobreza e de redução da desigualdade, a renda familiar per capita dos 10% mais pobres no Brasil aumentou a um ritmo de 8% ao ano, de R$ 84 para R$ 177. PB mostra que 52% desse aumento veio da renda não derivada do trabalho (basicamente transferências), que cresceu 11% ao ano em termos reais no período; e 46% da remuneração do trabalho, que teve alta média anual real de 6%.

Já no período de 2014 a 2021, a renda per capita dos 10% mais pobres quase devolveu todo o ganho de 2004-2014, caindo a um ritmo de 8% ao ano para R$ 94. Cerca de 27% dessa queda se deve a uma redução real de 4% ao ano na renda não derivada do trabalho, que são basicamente transferências.

Uma parcela de 26% do recuo da renda per capita vem do recuo de 5% ao ano da remuneração do trabalho.

Mas é nesse ponto que PB introduz uma radical mudança no perfil do pobre entre 2014 e 2021: o nível de ocupação (definido no trabalho de PB e nesta coluna sempre como os ocupados como parcela das pessoas em idade de trabalhar) entre os 10% mais pobres despencou de 36% para 18%, isto é, caiu pela metade. Isso por si só explicaria 78% da redução quase pela metade da renda per capita familiar entre 2014 e 2021. O resultado só não foi pior porque o porcentual de adultos nos domicílios dos 10% mais pobres subiu de 59% para 67% entre 2014 e 2021, compensando um pouco a queda no nívelde ocupação.

"Entre os 10% mais pobres, só 18% dos adultos em idade de trabalhar trabalhavam em 2021, é uma crise de trabalho entre os pobres". Entre os 5% mais pobres, o indicador cai para apenas 10%.

Já o nível de ocupação do Brasil como um todo teve um recuo de 59% para 53% entre 2014 e 2021.

Quando se considera a duas décadas de 2001 a 2021, a queda do nível de ocupação dos pobres revela-se ainda mais dramática: de 48% para 18% entre os 10% mais pobres, enquanto a dos brasileiros como um todo saiu de 60% para 53%.

Explicações - PB diz não saber ao certo o que levou a essa enorme redução da ocupação dos mais pobres, mas desconfia que pode estar ligada a um salário mínimo real muito alto.

"A gente pode estar começando a pagar o preço de ter um salário mínimo elevado", ele pondera, acrescentando que entre 2001 e 2019 o salário mínimo foi aumentado quase 70% a mais que a evolução da produtividade do trabalho.

Outra possível explicação é que hoje o pobre recebe mais transferências do que no passado, e o chamado "salário de reserva" (o mínimo pelo que se aceita trabalhar) tenha se tornado mais alto.

Mas PB, sem ter ainda uma resposta segura à questão, crê mais no fator salário mínimo.

"Na verdade, de 2004 a 2014, a remuneração do trabalho [dos 10% mais pobres] aumenta e a taxa de ocupação cai, o que parece ser muito mais um efeito do salário mínimo do que de a pessoa não querer o emprego - parece mais um problema de demanda por trabalho do que de salário de reserva alto", aponta o pesquisador.

No período pós 2014, com queda do salário real, a taxa de ocupação dos 10% mais pobres cai de forma ainda bem mais drástica.

Entre 2001 e 2021 houve também um enorme aumento da taxa de desemprego entre os mais pobres, não acompanhada pelo mesmo indicador dos mais ricos.

Entre os 5% mais pobres, a taxa de desemprego em 2021 foi de 77% (contra 14% para a população como um todo), número que vai a 90% se incluir os desencorajados e os que trabalham menos horas do que gostariam. Para a população em geral, o mesmo indicador em 2021 foi de 28%.

A taxa de desemprego, por envolver por definição os que querem trabalhar, também é um indicativo de que a crise de trabalho entre os pobres é mais uma questão de demanda por trabalho do que de oferta de trabalhadores.

"A gente pode estar sofrendo as consequências do aumento desenfreado do salário mínimo, que foi tão bom para reduzir a pobreza de 2004 e 2014", diz o pesquisador.

Um terceiro componente mencionado por PB seria ligado ao que chama de "estratégias de sobrevivência" dos mais pobres, ligadas a trabalhos extremamente precários.

"Durante a recessão e principalmente durante a pandemia, a gente aprendeu a viver sem esse trabalho precário", diz o pesquisador, referindo-se a quem consome o produto (basicamente serviços) desse tipo de ocupação.

Ele exemplifica com o fato de que novas gerações consideram uma empregada doméstica 24 horas por dia em casa como algo intrusivo. E há também uma série de serviços ineficientes que as empresas costumavam contratar até perceberem que não precisavam mais deles.

Já mudanças tecnológicas como iFood e Uber conseguem fazer com menos gente um volume de serviços cuja realização antes era disseminada entre um número muito maior de ocupados menos eficientes.

"Estratégias de sobrevivência que os pobres levaram 30 anos para criar e pelas quais davam uma pequena mordida na economia brasileira desapareceram, e eles têm muito mais dificuldade de abocanhar alguma renda porque não conseguiram substituir as estratégias antigas por estratégias novas", acrescenta PB.

Para o economista, quando se analisa a tendência histórica, "estamos trocando o pobre que trabalhava 60 horas por semana todas as semanas do ano, com renda muito baixa, pelo pobre que não tem trabalho".

Na sua visão, já era difícil acabar com a pobreza quando a pessoa trabalhava, mas o trabalho dela era pouco produtivo - a solução era melhorar a produtividade do trabalho desse indivíduo.

"Agora você tem alguém que não está trabalhando há dois anos, como vai fazer a inserção dele no mundo do trabalho? - fica muito mais difícil", conclui o pesquisador.

E quanto mais tempo passar, mais grave se torna o problema, porque os mais pobres se desconectam cada vez mais do mundo do trabalho.

Fernando Dantas é colunista do Broadcast (fernando.dantas@estadao.com)

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