Certo nível de cinismo parece bastante naturalizado na política brasileira, incluindo temas menos afeitos ao teatro exuberante de acusações e baixarias das nossas campanhas eleitorais. Um exemplo claro dessa tendência é a atitude de Lula e de parcelas do PT em relação ao assunto técnico e pouco glamuroso da política monetária.
Qualquer cidadão que não faça parte das torcidas organizadas da política nacional tem todo o direito de se perguntar qual é a diferença entre uma alta de juros "do mal" e uma alta de juros "do bem".
Essa indagação, claro, surge de inúmeras declarações de Lula e de estrelas do PT. Enquanto era Roberto Campos Neto, atual presidente do Banco Central (BC), quem dava as cartas na política monetária, a retórica contra a elevação de juros por parte do presidente e seus associados era pesadíssima. Campos Neto não estaria cometendo erros técnicos, mas sim propositadamente fazendo uma política monetária para prejudicar Lula em termos políticos e trazer infelicidade ao povo brasileiro.
Agora, porém, embora Campos Neto ainda esteja formalmente no comando do BC, todos os holofotes se voltaram a Gabriel Galípolo, nomeado por Lula e já aprovado pelo Senado para presidir a autoridade monetária a partir de janeiro de 2025.
Subitamente, a criminalização da alta dos juros por Lula foi silenciada, apertar a política monetária passou a ser visto como algo necessário de vez em quando, e o máximo que o presidente da República diz é que a taxa de juros ainda "há de ceder". No PT, as vozes que atacavam a política monetária de Campos Neto de forma feroz e apaixonada agora apenas fazem reparos protocolares à atual alta de juros.
Estômagos mais sensíveis certamente se incomodam com essa forma um tanto despudorada de mudar de opinião ao sabor de quem está fazendo determinada coisa, e não de qual coisa está sendo feita. Mas a sociedade brasileira atual parece muito distante desses pruridos, e o cavalo de pau de Lula e do PT sobre juros é visto como "parte do jogo".
O problema, na verdade, é que nem tudo é cinismo. A suspensão provisória dos ataques à autoridade monetária por parte do Executivo é parte de uma estratégia para reforçar e legitimar Galípolo. Lula não é bobo e sabe que manter o fogo amigo contra alguém não só nomeado pelo PT, mas próximo ao partido, seria um épico tiro no pé.
Mas o presidente e boa parte do PT e do seu eleitorado têm uma desconfiança sincera da política monetária tal como ela é praticada hoje na maior parte dos países, com exceções como Venezuela e Turquia (que têm inflações muito elevadas). Os bancos centrais são vistos como viveiros de economistas com formação "neoliberal", que na sua obsessão em manter a inflação baixa - o que para alguns seria agir em favor do sistema financeiro -, por vezes não se importam em "tirar o prato da mesa do trabalhador", como na infame propaganda de Dilma contra Marina na disputa presidencial de 2014.
A pergunta, portanto, é até quando vai durar a paciência de Lula e do PT com Galípolo. É evidente que isso depende do timing, de previsão muito difícil, do ciclo econômico. Se a atual alta de juros, livre do pecado original, lograr controlar a inflação e, a partir de algum momento não muito tardio de 2025, o BC orquestrar um ciclo de baixa de juros que leve a uma economia pujante no ano eleitoral de 2026, o presidente nomeado do BC não deve ter muitos problemas. O perigo reside em que algo saia meio errado nesse roteiro, e Galípolo tenha que administrar uma política monetária contracionista, ou insuficientemente expansionista, durante o aquecimento e - pior ainda - o jogo da próxima campanha presidencial. Nesse caso, o cinismo pode dar lugar aos velhos preconceitos e a um pesado fogo amigo.
Fernando Dantas é colunista do Broadcast e escreve às terças, quartas e sextas-feiras (fojdantas@gmail.com)
Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 9/10/2024, quarta-feira.