A próxima etapa da reforma tributária no Brasil, se vier mesmo a acontecer, envolve os tributos sobre a renda. A ideia é fazer com que dispositivos pelos quais os mais ricos pagam menos do que deviam pagar sejam corrigidos, e aumentar a progressividade do sistema.
Marta Arretche, cientista política da USP, vem pesquisando (com pós-graduandos que orienta) até que ponto uma reforma desse tipo pode ter apoio político suficiente para ser aprovada no Brasil. Quase todos os seus pontos são baseados em trabalhos acadêmicos, do seu grupo e de outros autores, que serão mencionados de forma sintética nesta coluna.
As conclusões de Arretche apontam grandes dificuldades de aprovação de uma reforma progressiva da tributação da renda no Brasil.
Ela começa pela teoria do eleitor mediano (abordada por Meltzer e Richard em trabalho seminal de 1981). A ideia simplificada é que, em países (como o Brasil) com maioria de pobres, a maior parte dos eleitores apoia a taxação progressiva. Nela, os ricos pagam mais e os pobres se beneficiam liquidamente (tipicamente não pagam imposto de renda e recebem transferências).
Dessa forma, a taxação progressiva recebe apoio do eleitorado, transmitido ao sistema político, que trabalha para um Estado grande e distributivo financiado por tributação progressiva.
Arretche observa que essa teoria é uma espécie de referencial do debate até hoje, mas, na verdade, é muito criticada. Há muitos estudos que buscam justamente entender por que a teoria do eleitor mediano frequentemente não funciona.
Vários fatores atrapalham o funcionamento da teoria do eleitor mediano. A política tributária é complexa e opaca, e o eleitor, ao contrário dos grupos de interesse organizado, tem dificuldade de entender o que está sendo discutido e decidido no Parlamento (Hacker e Pierson, 2010). Assim, o eleitor (especialmente pobre) não percebe direito quando sua preferência é contrariada e não pune, em futuras eleições, os políticos que votaram contra seus interesses (Achen e Bartels, 2021).
Já os grupos de interesses organizados são dominantes na política tributária, influenciam de forma decisiva os legisladores, incluindo a esquerda. Os parlamentares, por sua vez, dependem bastante do financiamento desses grupos (Page e Gilles, 2020; Hacker e Pierson, 2020).
"Quem acompanhou a reforma tributária do consumo ano passado e este ano vai reconhecer muito bem esse padrão", aponta Arretche.
Também em termos da arena eleitoral, trabalhos empíricos indicam que as pessoas comuns sabem muito pouco sobre a extensão da desigualdade e sua própria posição na distribuição de renda (Gimpelson e Treisman, 2018; Mahlmeister, 2023). Consequentemente, desconhecem se serão ganhadoras ou perdedoras com mais progressividade, e tendem a se sentir ameaçadas com propostas de reforma tributária.
Outro trabalho (Edlund, 2003) indica que o apoio dos eleitores à tributação progressiva parece ser forte apenas em países em que a tributação já é progressiva e nos quais os sistemas tributários não são complexos. Arretche nota que Brasil não preenche nenhuma das duas condições.
A lista de dificuldades esquadrinhadas por trabalhos da economia e da ciência política não para por aí. A economia comportamental (Kahneman e Tversky, 1979) mostra que, para o mesmo valor, quem perde tem reação mais forte (e reage como mais vigor) do que quem ganha. As políticas públicas - por exemplo, benefícios tributários para grupos específicos - criam beneficiários que passam a fazer lobby por sua manutenção (Lowi, 1979). E a política tributária, em especial, concentra as perdas (gerando mais reação) em troca de benefícios mais difusos (Wilson, 1984; Junqueira, 2015).
Há também estudo que mostra que, quando bem-informado sobre a desigualdade, o eleitor aumenta sua preocupação com o tema, mas muito menos o seu apoio à progressividade da tributação (Kuziemko e outros, 2015).
Estudo de 2022 de Eduardo Lazzari, Arretche e Rodrigo Mahlmeister aponta que 70% dos brasileiros acham que é obrigação do governo diminuir a desigualdade entre ricos e pobres, e a proporção só diminui ligeiramente quando se pergunta se quem ganha mais deve pagar mais imposto do que quem ganha menos. Porém, se a pergunta é objetivamente sobre se o governo deve aumentar impostos para garantir melhor educação, saúde e moradia para quem precisa, o apoio cai para 29%.
Esse padrão não acontece só no Brasil e, segundo Arretche, faz com que cientistas políticos não levem muito a sério o apoio à tributação progressiva que transparece nas duas primeiras respostas acima. Há o chamado "viés de omissão de custo". Quando se explicita o aumento de imposto, o apoio cai drasticamente no Brasil e no mundo.
Para piorar, outro estudo dos mesmos autores acima, com dados do Latinobarómetro de 2007, indica que, comparado com a América Latina, o brasileiro vê mais desigualdade no seu próprio país e tem também mais percepção de que os impostos (também no seu país) são altos demais.
Outro problema, finalmente, é que pouquíssima gente se acha rica no Brasil (Mahlmeister, Arretche e Lazzari, 2022), incluindo muitos que estão na parte mais de cima da pirâmide de renda. No fundo, o apoio à taxação dos mais ricos se traduz quase como apoio à taxação de outras pessoas que não sejam quem está manifestando o apoio.
A rejeição ao aumento de tributos se intensifica quando há descrédito do Estado e do governo (Kuziemko e outros, 2015). Nessas condições, informar o leitor sobre a desigualdade aumenta o apoio à filantropia, não à taxação progressiva.
Arretche nota que o Brasil, com a profusão de escândalos de corrupção, salários extremamente altos da elite do funcionalismo e percepção negativa sobre o funcionamento das políticas públicas (mesmo no caso das que funcionam), é uma caso emblemático de descrédito do eleitor no Estado e no governo.
Apesar de se partir de uma situação muito difícil, como mostrado acima, a ciência política mostra que há uma agenda para tentar aumentar o apoio eleitoral à tributação progressiva. Ela inclui informação ampla e de qualidade ao eleitorado sobre custos e benefícios da reforma (Sears e Funk, 1990-91), magnitude dos valores envolvidos (Funk, 1990-91) e sobre o pequeno número de pessoas que se beneficiam de um sistema regressivo (Sides, 2021).
Pode-se dizer que a divulgação desse tipo de informação ajudou na aprovação da reforma tributária do consumo e da agenda tributária de Fernando Haddad, ministro da Fazenda, de fechar brechas que beneficiavam ricos e empresas.
Outros trabalhos mostram que o fato de os potenciais beneficiários merecerem o ganho da reforma proposta (Ginza e Wrede, 2022) e a conexão da reforma com objetivos socialmente desejáveis (Garay, 2016) também aumentam o apoio eleitoral.
Por outro lado, há um série de fatores que afetam negativamente as chances de uma reforma tributária na "arena parlamentar" no Brasil.
Os deputados brasileiros gostam muito de propor benefícios tributários, que correspondem a 70% de suas proposições legislativas (Lazzari, 2021). De 4.841 propostas tributárias dos deputados entre 1988 e 2020 (Lazzari, Arretche e Mahlmeister, 2022), 5% foram progressivas e o restante, regressivas. 67% dessas propostas são de deduções, isenções e regimes especiais no campo tributário.
Adicionalmente, sistemas multipartidários sem regra de fidelidade partidária (como o Brasil) favorecem os lobbies (Immergut, 1993). Finalmente, a situação fiscal brasileira sempre difícil ajuda a percepção de que reforma tributária tem o único objetivo de aumentar a arrecadação (e não de criar um sistema mais eficiente e mais justo).
"Nós não temos 4% do PIB de gasto tributário [benefício tributário] por acaso - isso é a preferência dominante no Congresso", conclui Arretche.
Fernando Dantas é colunista do Broadcast e escreve às terças, quartas e sextas-feiras (fojdantas@gmail.com)
Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 27/9/2024, sexta-feira.