Para Fernando Honorato Barbosa, economista-chefe do Bradesco, a guerra entre Rússia e Ucrânia vai trazer mais inflação e talvez elevar o pico da Selic neste ciclo de alta (a atual projeção do Bradesco é 12,25%), com o aperto monetário impactando o crescimento em 2023, projetado em 0,5% (como o de 2022). Mas ele vê resiliência na economia brasileira, que não sofre risco de solvência de curto prazo, com o risco eleitoral já mais ou menos precificado, apesar de possíveis ruídos na campanha. Segundo Barbosa, o tema da sustentabilidade da dívida pública e de possíveis mudanças no teto e no regime fiscal deve ser discutido no primeiro semestre de 2023. Porém, para que no próximo mandato o País volte a crescer, será inevitável retomar reformas.
Como o sr. viu os resultados divulgados hoje do PIB do 4º trimestre e de 2021?
Fernando Honorato Barbosa - Veio em linha com o que esperávamos. A minha impressão é que esse PIB responde a uma economia que vinha gerando empregos, em particular no setor formal. Nós estimávamos 70 mil empregos formais por mês em janeiro e fevereiro no Caged, mas nossos indicadores estão sugerindo algo mais próximo de 150 mil em cada mês. Tem também a reabertura dos serviços e, falando de 2021, uma taxa de juros que ainda era baixa quando olhamos para o segundo e terceiro trimestres do ano passado. Mas essa configuração está mudando. Os juros subiram muito mais e a incerteza da economia global, agora com a guerra entre Rússia e Ucrânia, vai afetar o PIB de diversos países, inclusive o do Brasil.
Como você analisa o choque econômico da guerra?
Honorato - Não me parece a esta altura que a gente vá viver uma crise sistêmica global, em termos de risco corporativo, soberano e bancário. Mas, como os preços de commodities subiram muito, a inflação no Brasil vai ser mais elevada. Nossa projeção de IPCA hoje é 5,4% este ano e 3,3% em 2023, mas, com a guerra, pode ir a 6% em 2022 e, no ano que vem, ficar ainda em torno da meta, mas um pouco acima daquilo. O que deve levar o Banco Central a ter uma postura cautelosa na política monetária. Não revisamos ainda a projeção de Selic no pico do ciclo, e nosso número é 12,25%. Mas devemos fazer uma divulgação nos próximos dias. Não consigo cravar para que número vamos, só ressalto que as pressões de inflação são maiores do que a gente pensava, então é possível que seja um pouco maior do que nosso cenário básico hoje. A economia em 2023 deve sofrer um pouco mais o impacto dessa política monetária mais apertada, e crescer novamente 0,5%.
Qual a sua visão sobre o desempenho da economia brasileira em meio a tantos choques?
Honorato - A economia brasileira tem mostrado certa resiliência. O País tem uma situação de contas externas bastante confortável, com situação muito confortável de solvência da dívida tanto corporativa quanto pública. Nossas reservas são elevadas e o perfil de rolagem é bastante alongado. Isso é importante tendo em vista o conflito na Rússia, esse canal externo de transmissão poderia drenar um pouco o PIB brasileiro de 2022. Em segundo, há uma resiliência vinda dos balanços corporativos. As empresas listadas na B3 têm o menor nível de endividamento, dívida líquida sobre EBITDA, em pelo menos uma década.
E a dívida pública interna?
Honorato - Ainda que nosso problema de contas públicas seja estrutural, e mereça muita atenção, o Tesouro foi bem sucedido em manter um nível de caixa bastante elevado para poder enfrentar um ano de pagamentos sem precisar emitir nova dívida. Nossa dívida não está no melhor momento de composição, mas é uma composição que aguenta alguns choques. 70% da dívida hoje é prefixada ou indexada ao IPCA.
Mesmo com resiliência, só cresceremos 0,5% em 2022 e 2023?
Honorato - Nós estávamos na iminência de fazer uma revisão para cima de nosso PIB de 2022, para algo talvez entre 0,8% e 1%. Há a resiliência e, em adição a isso,a agropecuária que ainda vai ter um ano bom, apesar das incertezas; a reabertura plena do setor de serviços; e, por último, os gastos dos Estados e municípios. Mas aí veio a guerra, um elemento novo, e interrompemos o processo de revisão para cima. O que não muda a resiliência que destaquei.
Como o sr. analisa a recente apreciação do real?
Honorato - Poucas pessoas apostariam que o real estivesse tendo a atual performance diante das incertezas fiscais, e, agora, com a guerra. Quem imaginaria um câmbio abaixo de R$ 5,1? O Brasil não tem um problema de solvência de curto prazo e isso importa muito para os preços de ativos, comparando vários ciclos eleitorais. Em 2002 havia problema claro de solvência, não tínhamos reservas para honrar a dívida externa num prazo de três meses. A dívida local era indexada ao câmbio e o Tesouro não tinha caixa para muito mais que três ou quatro meses. Em 2014, tínhamos um problema de solvência das empresas, corporativo e de contas externas. O déficit em conta corrente era 4% do PIB. A Petrobrás era a empresa mais endividada do mundo, com US$ 100 bilhões de dívida, e cada piora do câmbio elevava o CDS [credit default swap, medida de risco de dívida] da Petrobras e piorava o risco Brasil porque se supunha que o Tesouro ia honrar aquela dívida. Atualmente, a taxa de juros que estamos praticando e vamos praticar, os 12,25% do nosso cenário ou eventualmente um pouco mais, paga e compensa os riscos que estamos vivendo. Combinando isso com a alta das commodities, entendemos a performance do real.
Mas o nervosismo eleitoral não pode mudar esse quadro?
Honorato - A gente pode ter bastante ruído sobre qual política econômica os candidatos vão "ofertar" nessa eleição. Porém, sem um tema de solvência de curto prazo, acho que os mercados estão mais ou menos precificados para a eleição.
O sr. poderia exemplificar?
Em 2002 havia problema claro de solvência, não tínhamos reservas para honrar a dívida externa num prazo de três meses. A dívida local era indexada ao câmbio e o Tesouro não tinha caixa para muito mais que três ou quatro meses. Em 2014, tínhamos um problema de solvência das empresas, corporativo e de contas externas. O déficit em conta corrente era 4% do PIB. A Petrobrás era a empresa mais endividada do mundo, com US$ 100 bilhões de dívida, e cada piora do câmbio elevava o CDS [credit default swap, medida de risco de dívida] da Petrobras e piorava o risco Brasil porque se supunha que o Tesouro ia honrar aquela dívida.
Mas claro que a política econômica escolhida para 2023 pode ter uma implicação significativa para o futuro. O tema da sustentabilidade da dívida deve ser discutido no primeiro semestre de 2023.
Não há um certo paradoxo entre os números fiscais de 2021 e o pessimismo do mercado quanto às contas públicas?
Honorato - Houve reformas importantes nos últimos anos, teto, Previdência, que ajudaram a acomodar a despesa, e teve o efeito de inflação e commodities que ajudou muito a receita em 2021, com melhora significativa do resultado primário e da dívida pública. Mas a percepção estrutural dos economistas, e me incluo aqui, é sobre a incerteza das regras fiscais. A promessa mais crível de um país é a Constituição e se, como ocorreu, a regra constitucional é alterada ao sabor do momento, a confiança diminui. Há dúvida importante sobre o regime fiscal futuro.
Como o sr. vê o futuro do teto?
Honorato - Essa tem que ser uma discussão sem preconceito. Olhando outros países, as regras são as mais distintas possíveis. Não está escrito nas leis da economia que se o teto de deixar de existir o País está fadado ao fracasso. O teto cumpriu um papel extraordinário de sinalização, mas temo que não consiga mais cumprir esse papel com as mudanças que foram feitas. Acho que há regras alternativas que podem ser colocadas no lugar, mas a grande ressalva é que a regra tem que ser muito crível. Não sei como será feito, mas dá para ter regra um pouco mais flexível que sinalize claramente para a consolidação da dívida pública.
O sr. tem alguma hipótese de como poderia ser?
Honorato - Acho que vai acabar misturando um elemento cíclico - se a economia cresce faz um pouco mais de superávit e vice-versa -e provavelmente um elemento de aumento de carga tributária. Acho muito difícil o País escapar disso se o teto foi revisado. Se o teto não for revisado a gente provavelmente não precisa aumentar a carga tributária.
Qual a sua expectativa de crescimento econômico de 2023 em diante?
Honorato - O Brasil precisa desesperadamente crescer. O que me angustia é que, em crescimento, estamos perdendo tração ante o mundo. Sempre crescemos menos que o mundo, mas essa defasagem está aumentando. Política de crescimento, e estou chovendo no molhado, é boa reforma tributária, reforma administrativa, abertura comercial, inserção internacional, regras de estímulo em inovação e tecnologia da indústria 4.0, não estou falando em dinheiro público, mas em regras e ambiente de negócios. A eficiência na educação. Eu sou otimista com o Brasil, aos trancos e barrancos viemos fazendo reformas. Fizemos a reforma da Previdência, a mudança do BNDES - a TLP - , o marco do saneamento, a reforma trabalhista, a autonomia do Banco Central. O próximo presidente vai se beneficiar dessas reformas e deveria construir em cima delas. Mas vai ter que prosseguir nas reformas.
Esta entrevista foi publicada pelo Broadcast em 4/3/2022, sexta-feira. Nesta versão há um pequeno acréscimo.