O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, quer a privatização do Porto de Santos (isto é, da autoridade portuária), hipótese descartada pelo ministro de Portos e Aeroportos, Márcio França, com o governo federal acalentando alternativamente a ideia de transferir quatro áreas do porto ao setor privado - como relatou em 30/1 a colunista Mariana Carneiro, do Estadão.
Ex-ministro da Infraestrutura de Bolsonaro, e visto como potencial líder da direita no Brasil num futuro próximo, a postura de Tarcísio em relação ao Porto de Santos em teoria lustra ainda mais seu perfil de campeão do livre mercado e do liberalismo.
Só que não, na visão do economista José Tavares, diretor do Centro de Estudos de Integração e Desenvolvimento (CINDES), no Rio, um think-tank voltado a questões da integração internacional do Brasil.
O modelo portuário que o governo Bolsonaro tentou implantar, sob a batuta de Tarcísio, tem aspectos, comenta Tavares - num tom humorado em que o exagero dá relevo mais claro à crítica -, "que lembram o planejamento estatal do estalinismo na década de 30".
Mas ele isenta o atual governador de São Paulo da formulação desse modelo de forte centralização da governança portuária no governo federal. Para o diretor do Cindes, essa tendência acompanhou todas as fases das reformas portuárias no Brasil desde os anos 90.
"O que o Tarcísio fez foi tentar radicalizar o modelo que já vinha nessa direção".
Na verdade, ressalva Tavares, por um lado da moeda esse modelo foi bem sucedido. Os portos brasileiros hoje são modernos, eficientes e cumprem as normais ambientais. O movimento de contêineres no Porto de Santos entre 2010 e 2019 registrou índices de crescimento superiores à média dos 50 maiores portos mundiais.
Por outro lado, no entanto, os portos brasileiros são detestados pelos usuários, o que evidentemente indica um problema de competitividade. Segundo Tavares, desde 1995 os portos brasileiros são classificados anualmente nas edições do Global Competitiveness Report (GCR) como entre os piores do mundo. Em 2019, numa lista de 139 países, o Brasil ficou em 104º lugar.
Em recente trabalho de crítica do modelo mencionado acima (encomendado por um cliente da sua consultoria Ecostrat, mas que representa a visão de Tavares sobre o tema, como este frisa), o diretor do Cindes analisa em detalhe um caso particular para desfiar os problemas que vê na gestão portuária centralizada no governo federal.
O caso em questão foram os leilões pelos quais as empresas de celulose Suzano, Bracell SP Celulose e Eldorado Brasil adquiram o direito de construir, para elas mesmas operarem, três terminais de celulose no Porto de Santos, com uma área conjunta de 125 mil m². Os dois primeiros já estão em operação e o da Eldorado Brasil tem inauguração prevista para o segundo semestre de 2023.
O que Tavares mostra em detalhes no artigo é que a decisão federal de leiloar esses terminais não levou em conta a disseminação da exportação da celulose em oito Estados brasileiro, a perda de participação de São Paulo na indústria nacional de celulose, a tendência declinante do preço do produto a partir de 2011, a crescente sofisticação do perfil de cargas do Porto de Santos (que pode não justificar a substituição de terminais de contêineres por terminais de celulose) - e, sobretudo, não levou em conta as projeções do próprio Plano Mestre que, segundo a Portaria nº 61 do então Ministério da Infraestrutura, é o ponto de partida do sistema de planejamento do Estado para o setor portuário nacional.
Assim, um complexo modelo econométrico dinâmico autorregressivo, com 128 variáveis endógenas, do Plano Mestre previu uma evolução da demanda por exportação de celulose pelo Porto de Santos saindo de 5,2 milhões de toneladas em 2020 para 7,1 milhões em 2060.
No entanto, como escreve Tavares, o Plano de Desenvolvimento e Zoneamento (PDZ) da "Santos Port Authority" (SPA), homologado pelo Ministério da Infraestrutura em julho de 2020, "considera que as séries do Plano Mestre estão 'aparentemente' (sic) subestimadas, e gera um novo conjunto de projeções bianuais para o período 2020-2040, sem indicar as fontes dos dados ali utilizados, nem tampouco a metodologia aplicada nas projeções".
Segundo o diretor do Cindes, "nos dias atuais, investimentos em terminais portuários localizados em outros países jamais dependem de processos de planejamento estatal erráticos e sem transparência como o descrito na seção anterior [e mencionados acima nesta coluna]".
O economista descreve as diretrizes prioritárias da gestão portuária no governo Bolsonaro como as de privatizar as Cias. Docas e, simultaneamente, manter o poder de comando do governo federal sobre as decisões do setor.
Tavares aponta que "se o projeto acima tivesse sido concluído, o Brasil teria se transformado no único país do mundo com um sistema portuário operado exclusivamente por firmas privadas, mas rigidamente subordinadas ao governo federal em todos os tipos de decisões relacionadas a investimentos".
O modelo portuário que o economista defende, derivado de estudos do prêmio Nobel de Economia Elinor Ostrom, é caracterizado pela "governança policêntrica" e, tipicamente, inclui empresas estatais municipais como autoridade portuária. Na verdade, essas empresas intrinsicamente locais respondem à lógica superior de descentralizar as decisões no setor portuário, e atuam como árbitro entre distintos atores e interesses, sempre mutantes (inclusive pelo progresso tecnológico), em torno de questões como usos alternativos da terra, impactos ambientais, entrada de novos provedores de serviços, qualidade de vida da população no entorno do porto, direitos trabalhistas etc.
"Este processo tende a gerar conflitos de interesses cujas soluções são sempre transitórias, e exigem a participação de todos os agentes que atuam ou dependem do porto, sob a coordenação da autoridade portuária", descreve Tavares.
Ele lembra que, no peculiar e complexo contexto portuário, Olson explicou que "a dicotomia 'Estado versus Mercado' é irrelevante".
A "governança policêntrica" já há muito saiu da teoria para a prática. Como aponta o diretor do Cindes, essa visão levou ao movimento concreto conhecido como "renascimento dos portos", com esse modelo de gestão de portos (incluindo estatal municipal como autoridade portuária) sendo adotado por países como Alemanha, Bélgica, China, Cingapura, Coreia do Sul, Estados Unidos, Holanda, Hong Kong e Taiwan - como se vê, abrangendo vários dos mais importantes portos do mundo.
De acordo com Tavares, a adoção desse modelo no Brasil envolveria três medidas jurídicas factíveis, que transformariam as Cias. Docas em estatais municipais não subordinadas ao governo federal e guiadas pelo princípio da governança policêntrica.
Fernando Dantas e colunista do Broadcast (fojdantas@gmail.com)
Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 3/3/2023, sexta-feira.