A discussão sobre regras - especialmente do mundo desenvolvido, e em particular da Europa - que punem exportadores de países que desmatam para produzir produtos agropecuários, madeira ou outros produtos extrativos é bem conhecida. É comum que se indique ao agronegócio no Brasil que pode ser um tiro no pé a posição de tentar sempre flexibilizar a legislação ambiental e sanitária.
Bem menos falada é uma nova tendência de impor "medidas de ajuste de carbono na fronteira", ou CBAM, na sigla em inglês pela qual esse tipo de mecanismo é conhecido internacionalmente.
Como explica a economista Sandra Rios, do Centro de Estudos de Integração e Desenvolvimento (Cindes), think-tank de comércio e integração internacional no Rio de Janeiro, o CBAM tem como pano de fundo a ausência de acordos multilaterais que gerem obrigações vinculantes para os países no combate às mudanças climáticas.
Nesse contexto, ela continua, "as iniciativas unilaterais tendem a surgir como resultado das pressões da opinião pública, particularmente nos países desenvolvidos".
Na União Europeia (UE), por exemplo, os produtores locais se sentem prejudicados pelo chamado "vazamento de carbono". Isso ocorre quando a demanda local de determinado produto intensivo em carbono é suprida por importações de produtores de países menos exigentes em termos de regulações de emissões. Outra forma de "vazamento" são os investimentos produtivos daquele setor se deslocarem em direção aos países menos exigentes.
Rios aponta que a UE saiu na frente tanto na regulação antidesmatamento quanto no CBAM. A primeira afeta o agronegócio brasileiro, e a segunda tem potencial de atrapalhar exportações industriais.
A economista tem um particular envolvimento com o tema do CBAM porque o Cindes faz parte de um projeto internacional de diálogos sobre esse tipo de dispositivo, buscando incorporar as perspectivas das partes interessadas ("stakeholders").
Dois workshops (a CNI também está envolvida) foram organizados em setembro e novembro do ano passado no Brasil, com representantes do governo, de setores de aço, alumínio, químicos, vidro e petróleo, e de acadêmicos. A ausência de convidados dos sindicatos e setor financeiro mostra que o assunto ainda não tem toda a atenção que merece.
A regulação do CBAM da UE entrou em vigência em maio de 2023 e, desde outubro passado, está em fase de transição que vai até o final de 2025, atingindo setores intensivos em energia: ferro e aço, alumínio, cimento, fertilizantes, eletricidade e hidrogênio.
Mas o sistema começa efetivamente a onerar importações a partir de 2026, quando os importadores passarão a comprar junto às autoridades ambientais da UE certificados CBAM equivalentes ao montante de emissões declarado em suas importações - como se elas tivessem sido produzidas nos países da UE e estivessem sujeitas ao mercado regulado de carbono do bloco (EU ETS). Os importadores poderão descontar valores pagos no país de origem (se houver mercado regulado de carbono) por emissões, caso possam comprovar tais despesas.
Segundo Rios, há muitos detalhes na regulação e na forma de operacionalização do CBAM europeu que ainda não estão claros e que vêm causando preocupação para exportadores de diversos países. Há risco de arbitrariedades com objetivos não declarados de protecionismo.
O esforço de levantamento de informações dos possíveis impactos do CBAM europeu no Brasil, no contexto do projeto internacional mencionado acima, não aponta ainda grandes riscos. No caso do CBAM da UE, apenas cerca de US$ 3 bilhões em exportações brasileiras seriam afetadas pelo mecanismo. As exportações dos produtos sujeitos ao CBAM para o mercado europeu são apenas 0,6% do total exportado pelo Brasil no triênio 2020-22. Ferro e aço correspondem a 92% da produção nacional afetada, e alumínio a 3%.
Mas a preocupação, indica Rios, é que mecanismos como o CBAM podem se disseminar para outros países e blocos do mundo rico, e até do emergente, caso em que uma proporção maior das exportações brasileiras poderia ser afetada. Ela aponta que Reino Unido e Canadá já estão em estágio avançado no caminho para implementar o CBAM, enquanto Austrália, Japão e Estados Unidos vêm discutindo internamente iniciativas na mesma direção.
Os Estados Unidos compram quase 50% do aço e 25% dos produtos transformados de ferro e aço exportados pelo Brasil. No caso do alumínio, o Japão absorve aproximadamente 30% das exportações brasileiras do produto.
O número de setores incluídos nesse tipo de mecanismo também pode aumentar. No Reino Unido, por exemplo, vidro e cerâmica também devem entrar (mas eletricidade deve ser excluída).
Para Rios, "é um processo de fragmentação de regras de comércio, em que os exportadores estarão sujeitos ao cumprimento de exigências distintas a depender do mercado de destino, com impactos negativos sobre o sistema do comércio internacional".
Ela nota que o desenho regulatório do CBAM na UE, e eventualmente em outros países e blocos, é fundamental para avaliar os riscos para a competividade das exportações brasileiras. Assim, o governo e setor privado no Brasil têm o dever de casa de identificar seus interesses e buscar influenciar a regulação que está em gestação nos mercados relevantes.
A economista destaca, como pontos importantes para o Brasil, o escopo de emissões cobertas pelo mecanismo, o cálculo das emissões embutidas nos produtos, a questão do tratamento especial para países em desenvolvimento, o uso das receitas coletadas com a compra de certificados CBAM pelas autoridades europeias e o papel da OMC.
No caso do primeiro item, a matriz energética limpa do Brasil contaria alguma coisa? Já no caso das receitas, a proposta do setor privado brasileiro é que esses recursos sejam usados para financiar a descarbonização nos países em desenvolvimento - e não para fomentar a adaptação tecnológica das indústrias europeias, caso em que o mecanismo aumentaria o desnível em relação aos países em desenvolvimento.
Fernando Dantas é colunista do Broadcast e escreve às terças, quartas e sextas-feiras (fojdantas@gmail.com)
Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 7/8/2024, quarta-feira.