Economia e políticas públicas

Opinião|O Brasil num eventual governo Trump


Cientista político Guilherme Casarões vê muito problemas para o Brasil de Lula caso Trump seja eleito, mas também uma oportunidade.

Por Fernando Dantas

Os candidatos a presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris, do partido democrata, e Donald Trump, do partido republicano, se enfrentam hoje num debate que está sendo visto pelos analistas como potencialmente decisivo.

Após Joe Biden, o atual presidente, ter ido muito mal num debate por problemas de sua idade avançada, sendo substituído algum tempo depois como candidato por Harris, a atual vice-presidente empolgou e as pesquisas eleitorais colocaram-na na frente de Trump. O republicano, porém, vem reagindo, e vários levantamentos bem recentes apontam-no como favorito. A impressão é que será uma eleição muito apertada. Mas não há dúvida de que a hipótese de Trump ser o próximo presidente dos Estados Unidos voltou com força à mesa.

Lula é um presidente de esquerda e pode ter problemas no caso da eleição do republicano, talvez o principal expoente mundial da onda de populismo de direita.

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Guilherme Casarões, cientista política e professor da FGV EAESP, que vem se debruçando sobre o tema, diz que "uma eventual vitória de Trump deve representar um conjunto de problemas para o Brasil, mas também uma oportunidade".

Começando pelos problemas, ele nota que a eventual eleição de Trump fortalece a oposição ao governo Lula, empoderando o bolsonarismo. O pesquisador acrescenta que esse é um cenário no qual o bolsonarismo aposta, com destaque para Eduardo Bolsonaro, deputado federal por São Paulo (PL). O filho do ex-presidente inclusive ventilou a ideia de fazer uma interlocução direta com parlamentares republicanos no Congresso americano. O plano, explica Casarões "é tentar forçar o governo americano a adotar uma postura mais dura com o Brasil [presidido por Lula]".

Um tema importante nessa estratégia, valorizado tanto pelos republicanos como pela direita bolsonarista no Brasil, é a "liberdade de expressão", com um dos principais alvos sendo Alexandre de Moraes. O ministro do STF, "bête noire" do bolsonarismo, se chocou com o empresário Elon Musk (apoiador de Trump) ao proibir a rede social X no Brasil. Outra prioridade bolsonarista é obter apoio americano num eventual governo Trump para tentar reverter a inelegibilidade de Jair Bolsonaro.

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Em termos externos, Casarões vê dois problemas imediatos para Lula no caso da vitória de Trump. O primeiro é que o político americano deixou claro em seu primeiro mandato que a sua presidência, ainda mais que ideológica, é fundamentalmente "transacional", algo que emana da própria personalidade de Trump.

"Ele costuma só se relacionar bem com um país ou governante se entender que o interlocutor tem alguma concessão a fazer ou algo a oferecer", aponta o cientista político.

No caso brasileiro, Casarões acha possível que Trump queira concessões principalmente em política comercial envolvendo a indústria, com redução de tarifas, corte de subsídios e incentivos fiscais, e por aí vai. A indústria siderúrgica em particular pode ser objeto dessas demandas. Ele nota que Lula dificilmente cederia nesses pontos, com sua visão de uma política industrial mais ativa. O cientista político acrescenta que o figurino típico de Trump é o de fazer essas exigências sem oferecer nada em troca, como por exemplo redução de subsídios agrícolas, uma tradicional bandeira da política comercial brasileira.

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Um segundo problema no cenário internacional, continua o pesquisador da FGV EAESP, é que as agendas multilaterais de Trump e Lula em temas como meio ambiente e direitos humanos são bastante divergentes, com risco de os dois países baterem de frente, ao contrário do que ocorre entre Biden e o atual governo brasileiro - que tendem a convergir nesses tópicos.

Finalmente, o terceiro grande problema externo para o Brasil caso Trump seja eleito é a Venezuela. Quando presidente, Trump chegou ao ponto de sugerir que até uma intervenção militar direta dos Estados Unidos na Venezuela não era uma carta fora do baralho.

O cientista político pondera que, com todas as críticas que se possa fazer à gestão de Lula em relação à crise venezuelana, é fato que um dos feitos recentes da diplomacia brasileira foi justamente o de contribuir para que os Estados Unidos ficassem relativamente distantes desse problema. Biden e Antony Blinken, seu secretário de Estado, deixaram que o protagonismo em relação à crise na Venezuela ficasse com países como Brasil e Colômbia.

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Caso Trump seja vitorioso na eleição deste ano, será muito mais difícil manter os Estados Unidos ao largo de ações diretas no conflito interno do país sul-americano. "Nos cenários mais extremos, há o risco para Lula de a Venezuela virar um satélite americano ou um satélite russo, em ambos os casos desfechos ruins para o Brasil", diz Casarões.

A possível oportunidade, ou "lado bom" da eleição de Trump para o Brasil, de acordo com o cientista político, é que o ex-presidente dos Estados Unidos no seu primeiro mandato mostrou uma tendência ao isolacionismo. Em termos de América Latina, com exceção da Venezuela e da questão imigratória para os Estados Unidos, Trump não fez quase nada. Ele também desengajou os Estados Unidos tanto da guerra civil da Síria quanto do conflito com o Irã, e terceirizou em parte a presença militar americana para que países como a Arábia Saudita exercitassem maior protagonismo (no caso, no Oriente Médio), ou Japão e Índia na contenção da China.

Na visão de Casarões, caso esse vácuo se repita num segundo mandato de Trump, é uma oportunidade para o Brasil ser mais assertivo em algumas ambições no cenário internacional, tanto em temas como meio ambiente e direitos humanos, como também na integração da América do Sul a partir do Mercosul. O cientista político lembra que, no passado, ofertas comerciais americanas para países como o Uruguai ou o Peru atuaram para enfraquecer as iniciativas brasileiras de reforçar e ampliar o Mercosul, na direção de uma integração maior da América do Sul.

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Mesmo em relação aos Brics, o espaço de manobra do Brasil poderia aumentar, embora nesse caso, no primeiro governo Trump, houve tentativas dos Estados Unidos de afastar o Brasil da China. Se isso se repetir num eventual segundo governo Trump, pode ser mais uma fonte de tensão entre Brasil e China, que tem uma parceria comercial muito forte, com o agronegócio brasileiro tendo uma presença dominante no mercado chinês.

"Lula nesse caso deveria desenvolver uma estratégia para manter boas relações dentro de certos limites com Trump ao mesmo tempo em que preserva a boa relação com a China, num cenário internacional potencialmente mais pressionado", analisa Casarões.

A coluna focou na visão do cientista político sobre o Brasil num possível governo Trump, mas o pesquisador também comentou de forma mais rápida o cenário com Kamala Harris como presidente. Nesse caso, ele aponta, haveria bastante continuidade do que já vem ocorrendo com Biden, e que é uma relação harmoniosa, com convergências em temas como meio ambiente, por exemplo. Com Harris, a convergência possivelmente se estenderia e se reforçaria em relação a temas particularmente caros à candidata democrata, como saúde pública, direitos humanos e combate ao extremismo de direita.

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Fernando Dantas é colunista do Broadcast e escreve às terças, quartas e sextas-feiras (fojdantas@gmail.com)

Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 10/9/2024, terça-feira.

Os candidatos a presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris, do partido democrata, e Donald Trump, do partido republicano, se enfrentam hoje num debate que está sendo visto pelos analistas como potencialmente decisivo.

Após Joe Biden, o atual presidente, ter ido muito mal num debate por problemas de sua idade avançada, sendo substituído algum tempo depois como candidato por Harris, a atual vice-presidente empolgou e as pesquisas eleitorais colocaram-na na frente de Trump. O republicano, porém, vem reagindo, e vários levantamentos bem recentes apontam-no como favorito. A impressão é que será uma eleição muito apertada. Mas não há dúvida de que a hipótese de Trump ser o próximo presidente dos Estados Unidos voltou com força à mesa.

Lula é um presidente de esquerda e pode ter problemas no caso da eleição do republicano, talvez o principal expoente mundial da onda de populismo de direita.

Guilherme Casarões, cientista política e professor da FGV EAESP, que vem se debruçando sobre o tema, diz que "uma eventual vitória de Trump deve representar um conjunto de problemas para o Brasil, mas também uma oportunidade".

Começando pelos problemas, ele nota que a eventual eleição de Trump fortalece a oposição ao governo Lula, empoderando o bolsonarismo. O pesquisador acrescenta que esse é um cenário no qual o bolsonarismo aposta, com destaque para Eduardo Bolsonaro, deputado federal por São Paulo (PL). O filho do ex-presidente inclusive ventilou a ideia de fazer uma interlocução direta com parlamentares republicanos no Congresso americano. O plano, explica Casarões "é tentar forçar o governo americano a adotar uma postura mais dura com o Brasil [presidido por Lula]".

Um tema importante nessa estratégia, valorizado tanto pelos republicanos como pela direita bolsonarista no Brasil, é a "liberdade de expressão", com um dos principais alvos sendo Alexandre de Moraes. O ministro do STF, "bête noire" do bolsonarismo, se chocou com o empresário Elon Musk (apoiador de Trump) ao proibir a rede social X no Brasil. Outra prioridade bolsonarista é obter apoio americano num eventual governo Trump para tentar reverter a inelegibilidade de Jair Bolsonaro.

Em termos externos, Casarões vê dois problemas imediatos para Lula no caso da vitória de Trump. O primeiro é que o político americano deixou claro em seu primeiro mandato que a sua presidência, ainda mais que ideológica, é fundamentalmente "transacional", algo que emana da própria personalidade de Trump.

"Ele costuma só se relacionar bem com um país ou governante se entender que o interlocutor tem alguma concessão a fazer ou algo a oferecer", aponta o cientista político.

No caso brasileiro, Casarões acha possível que Trump queira concessões principalmente em política comercial envolvendo a indústria, com redução de tarifas, corte de subsídios e incentivos fiscais, e por aí vai. A indústria siderúrgica em particular pode ser objeto dessas demandas. Ele nota que Lula dificilmente cederia nesses pontos, com sua visão de uma política industrial mais ativa. O cientista político acrescenta que o figurino típico de Trump é o de fazer essas exigências sem oferecer nada em troca, como por exemplo redução de subsídios agrícolas, uma tradicional bandeira da política comercial brasileira.

Um segundo problema no cenário internacional, continua o pesquisador da FGV EAESP, é que as agendas multilaterais de Trump e Lula em temas como meio ambiente e direitos humanos são bastante divergentes, com risco de os dois países baterem de frente, ao contrário do que ocorre entre Biden e o atual governo brasileiro - que tendem a convergir nesses tópicos.

Finalmente, o terceiro grande problema externo para o Brasil caso Trump seja eleito é a Venezuela. Quando presidente, Trump chegou ao ponto de sugerir que até uma intervenção militar direta dos Estados Unidos na Venezuela não era uma carta fora do baralho.

O cientista político pondera que, com todas as críticas que se possa fazer à gestão de Lula em relação à crise venezuelana, é fato que um dos feitos recentes da diplomacia brasileira foi justamente o de contribuir para que os Estados Unidos ficassem relativamente distantes desse problema. Biden e Antony Blinken, seu secretário de Estado, deixaram que o protagonismo em relação à crise na Venezuela ficasse com países como Brasil e Colômbia.

Caso Trump seja vitorioso na eleição deste ano, será muito mais difícil manter os Estados Unidos ao largo de ações diretas no conflito interno do país sul-americano. "Nos cenários mais extremos, há o risco para Lula de a Venezuela virar um satélite americano ou um satélite russo, em ambos os casos desfechos ruins para o Brasil", diz Casarões.

A possível oportunidade, ou "lado bom" da eleição de Trump para o Brasil, de acordo com o cientista político, é que o ex-presidente dos Estados Unidos no seu primeiro mandato mostrou uma tendência ao isolacionismo. Em termos de América Latina, com exceção da Venezuela e da questão imigratória para os Estados Unidos, Trump não fez quase nada. Ele também desengajou os Estados Unidos tanto da guerra civil da Síria quanto do conflito com o Irã, e terceirizou em parte a presença militar americana para que países como a Arábia Saudita exercitassem maior protagonismo (no caso, no Oriente Médio), ou Japão e Índia na contenção da China.

Na visão de Casarões, caso esse vácuo se repita num segundo mandato de Trump, é uma oportunidade para o Brasil ser mais assertivo em algumas ambições no cenário internacional, tanto em temas como meio ambiente e direitos humanos, como também na integração da América do Sul a partir do Mercosul. O cientista político lembra que, no passado, ofertas comerciais americanas para países como o Uruguai ou o Peru atuaram para enfraquecer as iniciativas brasileiras de reforçar e ampliar o Mercosul, na direção de uma integração maior da América do Sul.

Mesmo em relação aos Brics, o espaço de manobra do Brasil poderia aumentar, embora nesse caso, no primeiro governo Trump, houve tentativas dos Estados Unidos de afastar o Brasil da China. Se isso se repetir num eventual segundo governo Trump, pode ser mais uma fonte de tensão entre Brasil e China, que tem uma parceria comercial muito forte, com o agronegócio brasileiro tendo uma presença dominante no mercado chinês.

"Lula nesse caso deveria desenvolver uma estratégia para manter boas relações dentro de certos limites com Trump ao mesmo tempo em que preserva a boa relação com a China, num cenário internacional potencialmente mais pressionado", analisa Casarões.

A coluna focou na visão do cientista político sobre o Brasil num possível governo Trump, mas o pesquisador também comentou de forma mais rápida o cenário com Kamala Harris como presidente. Nesse caso, ele aponta, haveria bastante continuidade do que já vem ocorrendo com Biden, e que é uma relação harmoniosa, com convergências em temas como meio ambiente, por exemplo. Com Harris, a convergência possivelmente se estenderia e se reforçaria em relação a temas particularmente caros à candidata democrata, como saúde pública, direitos humanos e combate ao extremismo de direita.

Fernando Dantas é colunista do Broadcast e escreve às terças, quartas e sextas-feiras (fojdantas@gmail.com)

Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 10/9/2024, terça-feira.

Os candidatos a presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris, do partido democrata, e Donald Trump, do partido republicano, se enfrentam hoje num debate que está sendo visto pelos analistas como potencialmente decisivo.

Após Joe Biden, o atual presidente, ter ido muito mal num debate por problemas de sua idade avançada, sendo substituído algum tempo depois como candidato por Harris, a atual vice-presidente empolgou e as pesquisas eleitorais colocaram-na na frente de Trump. O republicano, porém, vem reagindo, e vários levantamentos bem recentes apontam-no como favorito. A impressão é que será uma eleição muito apertada. Mas não há dúvida de que a hipótese de Trump ser o próximo presidente dos Estados Unidos voltou com força à mesa.

Lula é um presidente de esquerda e pode ter problemas no caso da eleição do republicano, talvez o principal expoente mundial da onda de populismo de direita.

Guilherme Casarões, cientista política e professor da FGV EAESP, que vem se debruçando sobre o tema, diz que "uma eventual vitória de Trump deve representar um conjunto de problemas para o Brasil, mas também uma oportunidade".

Começando pelos problemas, ele nota que a eventual eleição de Trump fortalece a oposição ao governo Lula, empoderando o bolsonarismo. O pesquisador acrescenta que esse é um cenário no qual o bolsonarismo aposta, com destaque para Eduardo Bolsonaro, deputado federal por São Paulo (PL). O filho do ex-presidente inclusive ventilou a ideia de fazer uma interlocução direta com parlamentares republicanos no Congresso americano. O plano, explica Casarões "é tentar forçar o governo americano a adotar uma postura mais dura com o Brasil [presidido por Lula]".

Um tema importante nessa estratégia, valorizado tanto pelos republicanos como pela direita bolsonarista no Brasil, é a "liberdade de expressão", com um dos principais alvos sendo Alexandre de Moraes. O ministro do STF, "bête noire" do bolsonarismo, se chocou com o empresário Elon Musk (apoiador de Trump) ao proibir a rede social X no Brasil. Outra prioridade bolsonarista é obter apoio americano num eventual governo Trump para tentar reverter a inelegibilidade de Jair Bolsonaro.

Em termos externos, Casarões vê dois problemas imediatos para Lula no caso da vitória de Trump. O primeiro é que o político americano deixou claro em seu primeiro mandato que a sua presidência, ainda mais que ideológica, é fundamentalmente "transacional", algo que emana da própria personalidade de Trump.

"Ele costuma só se relacionar bem com um país ou governante se entender que o interlocutor tem alguma concessão a fazer ou algo a oferecer", aponta o cientista político.

No caso brasileiro, Casarões acha possível que Trump queira concessões principalmente em política comercial envolvendo a indústria, com redução de tarifas, corte de subsídios e incentivos fiscais, e por aí vai. A indústria siderúrgica em particular pode ser objeto dessas demandas. Ele nota que Lula dificilmente cederia nesses pontos, com sua visão de uma política industrial mais ativa. O cientista político acrescenta que o figurino típico de Trump é o de fazer essas exigências sem oferecer nada em troca, como por exemplo redução de subsídios agrícolas, uma tradicional bandeira da política comercial brasileira.

Um segundo problema no cenário internacional, continua o pesquisador da FGV EAESP, é que as agendas multilaterais de Trump e Lula em temas como meio ambiente e direitos humanos são bastante divergentes, com risco de os dois países baterem de frente, ao contrário do que ocorre entre Biden e o atual governo brasileiro - que tendem a convergir nesses tópicos.

Finalmente, o terceiro grande problema externo para o Brasil caso Trump seja eleito é a Venezuela. Quando presidente, Trump chegou ao ponto de sugerir que até uma intervenção militar direta dos Estados Unidos na Venezuela não era uma carta fora do baralho.

O cientista político pondera que, com todas as críticas que se possa fazer à gestão de Lula em relação à crise venezuelana, é fato que um dos feitos recentes da diplomacia brasileira foi justamente o de contribuir para que os Estados Unidos ficassem relativamente distantes desse problema. Biden e Antony Blinken, seu secretário de Estado, deixaram que o protagonismo em relação à crise na Venezuela ficasse com países como Brasil e Colômbia.

Caso Trump seja vitorioso na eleição deste ano, será muito mais difícil manter os Estados Unidos ao largo de ações diretas no conflito interno do país sul-americano. "Nos cenários mais extremos, há o risco para Lula de a Venezuela virar um satélite americano ou um satélite russo, em ambos os casos desfechos ruins para o Brasil", diz Casarões.

A possível oportunidade, ou "lado bom" da eleição de Trump para o Brasil, de acordo com o cientista político, é que o ex-presidente dos Estados Unidos no seu primeiro mandato mostrou uma tendência ao isolacionismo. Em termos de América Latina, com exceção da Venezuela e da questão imigratória para os Estados Unidos, Trump não fez quase nada. Ele também desengajou os Estados Unidos tanto da guerra civil da Síria quanto do conflito com o Irã, e terceirizou em parte a presença militar americana para que países como a Arábia Saudita exercitassem maior protagonismo (no caso, no Oriente Médio), ou Japão e Índia na contenção da China.

Na visão de Casarões, caso esse vácuo se repita num segundo mandato de Trump, é uma oportunidade para o Brasil ser mais assertivo em algumas ambições no cenário internacional, tanto em temas como meio ambiente e direitos humanos, como também na integração da América do Sul a partir do Mercosul. O cientista político lembra que, no passado, ofertas comerciais americanas para países como o Uruguai ou o Peru atuaram para enfraquecer as iniciativas brasileiras de reforçar e ampliar o Mercosul, na direção de uma integração maior da América do Sul.

Mesmo em relação aos Brics, o espaço de manobra do Brasil poderia aumentar, embora nesse caso, no primeiro governo Trump, houve tentativas dos Estados Unidos de afastar o Brasil da China. Se isso se repetir num eventual segundo governo Trump, pode ser mais uma fonte de tensão entre Brasil e China, que tem uma parceria comercial muito forte, com o agronegócio brasileiro tendo uma presença dominante no mercado chinês.

"Lula nesse caso deveria desenvolver uma estratégia para manter boas relações dentro de certos limites com Trump ao mesmo tempo em que preserva a boa relação com a China, num cenário internacional potencialmente mais pressionado", analisa Casarões.

A coluna focou na visão do cientista político sobre o Brasil num possível governo Trump, mas o pesquisador também comentou de forma mais rápida o cenário com Kamala Harris como presidente. Nesse caso, ele aponta, haveria bastante continuidade do que já vem ocorrendo com Biden, e que é uma relação harmoniosa, com convergências em temas como meio ambiente, por exemplo. Com Harris, a convergência possivelmente se estenderia e se reforçaria em relação a temas particularmente caros à candidata democrata, como saúde pública, direitos humanos e combate ao extremismo de direita.

Fernando Dantas é colunista do Broadcast e escreve às terças, quartas e sextas-feiras (fojdantas@gmail.com)

Esta coluna foi publicada pelo Broadcast em 10/9/2024, terça-feira.

Os candidatos a presidente dos Estados Unidos, Kamala Harris, do partido democrata, e Donald Trump, do partido republicano, se enfrentam hoje num debate que está sendo visto pelos analistas como potencialmente decisivo.

Após Joe Biden, o atual presidente, ter ido muito mal num debate por problemas de sua idade avançada, sendo substituído algum tempo depois como candidato por Harris, a atual vice-presidente empolgou e as pesquisas eleitorais colocaram-na na frente de Trump. O republicano, porém, vem reagindo, e vários levantamentos bem recentes apontam-no como favorito. A impressão é que será uma eleição muito apertada. Mas não há dúvida de que a hipótese de Trump ser o próximo presidente dos Estados Unidos voltou com força à mesa.

Lula é um presidente de esquerda e pode ter problemas no caso da eleição do republicano, talvez o principal expoente mundial da onda de populismo de direita.

Guilherme Casarões, cientista política e professor da FGV EAESP, que vem se debruçando sobre o tema, diz que "uma eventual vitória de Trump deve representar um conjunto de problemas para o Brasil, mas também uma oportunidade".

Começando pelos problemas, ele nota que a eventual eleição de Trump fortalece a oposição ao governo Lula, empoderando o bolsonarismo. O pesquisador acrescenta que esse é um cenário no qual o bolsonarismo aposta, com destaque para Eduardo Bolsonaro, deputado federal por São Paulo (PL). O filho do ex-presidente inclusive ventilou a ideia de fazer uma interlocução direta com parlamentares republicanos no Congresso americano. O plano, explica Casarões "é tentar forçar o governo americano a adotar uma postura mais dura com o Brasil [presidido por Lula]".

Um tema importante nessa estratégia, valorizado tanto pelos republicanos como pela direita bolsonarista no Brasil, é a "liberdade de expressão", com um dos principais alvos sendo Alexandre de Moraes. O ministro do STF, "bête noire" do bolsonarismo, se chocou com o empresário Elon Musk (apoiador de Trump) ao proibir a rede social X no Brasil. Outra prioridade bolsonarista é obter apoio americano num eventual governo Trump para tentar reverter a inelegibilidade de Jair Bolsonaro.

Em termos externos, Casarões vê dois problemas imediatos para Lula no caso da vitória de Trump. O primeiro é que o político americano deixou claro em seu primeiro mandato que a sua presidência, ainda mais que ideológica, é fundamentalmente "transacional", algo que emana da própria personalidade de Trump.

"Ele costuma só se relacionar bem com um país ou governante se entender que o interlocutor tem alguma concessão a fazer ou algo a oferecer", aponta o cientista político.

No caso brasileiro, Casarões acha possível que Trump queira concessões principalmente em política comercial envolvendo a indústria, com redução de tarifas, corte de subsídios e incentivos fiscais, e por aí vai. A indústria siderúrgica em particular pode ser objeto dessas demandas. Ele nota que Lula dificilmente cederia nesses pontos, com sua visão de uma política industrial mais ativa. O cientista político acrescenta que o figurino típico de Trump é o de fazer essas exigências sem oferecer nada em troca, como por exemplo redução de subsídios agrícolas, uma tradicional bandeira da política comercial brasileira.

Um segundo problema no cenário internacional, continua o pesquisador da FGV EAESP, é que as agendas multilaterais de Trump e Lula em temas como meio ambiente e direitos humanos são bastante divergentes, com risco de os dois países baterem de frente, ao contrário do que ocorre entre Biden e o atual governo brasileiro - que tendem a convergir nesses tópicos.

Finalmente, o terceiro grande problema externo para o Brasil caso Trump seja eleito é a Venezuela. Quando presidente, Trump chegou ao ponto de sugerir que até uma intervenção militar direta dos Estados Unidos na Venezuela não era uma carta fora do baralho.

O cientista político pondera que, com todas as críticas que se possa fazer à gestão de Lula em relação à crise venezuelana, é fato que um dos feitos recentes da diplomacia brasileira foi justamente o de contribuir para que os Estados Unidos ficassem relativamente distantes desse problema. Biden e Antony Blinken, seu secretário de Estado, deixaram que o protagonismo em relação à crise na Venezuela ficasse com países como Brasil e Colômbia.

Caso Trump seja vitorioso na eleição deste ano, será muito mais difícil manter os Estados Unidos ao largo de ações diretas no conflito interno do país sul-americano. "Nos cenários mais extremos, há o risco para Lula de a Venezuela virar um satélite americano ou um satélite russo, em ambos os casos desfechos ruins para o Brasil", diz Casarões.

A possível oportunidade, ou "lado bom" da eleição de Trump para o Brasil, de acordo com o cientista político, é que o ex-presidente dos Estados Unidos no seu primeiro mandato mostrou uma tendência ao isolacionismo. Em termos de América Latina, com exceção da Venezuela e da questão imigratória para os Estados Unidos, Trump não fez quase nada. Ele também desengajou os Estados Unidos tanto da guerra civil da Síria quanto do conflito com o Irã, e terceirizou em parte a presença militar americana para que países como a Arábia Saudita exercitassem maior protagonismo (no caso, no Oriente Médio), ou Japão e Índia na contenção da China.

Na visão de Casarões, caso esse vácuo se repita num segundo mandato de Trump, é uma oportunidade para o Brasil ser mais assertivo em algumas ambições no cenário internacional, tanto em temas como meio ambiente e direitos humanos, como também na integração da América do Sul a partir do Mercosul. O cientista político lembra que, no passado, ofertas comerciais americanas para países como o Uruguai ou o Peru atuaram para enfraquecer as iniciativas brasileiras de reforçar e ampliar o Mercosul, na direção de uma integração maior da América do Sul.

Mesmo em relação aos Brics, o espaço de manobra do Brasil poderia aumentar, embora nesse caso, no primeiro governo Trump, houve tentativas dos Estados Unidos de afastar o Brasil da China. Se isso se repetir num eventual segundo governo Trump, pode ser mais uma fonte de tensão entre Brasil e China, que tem uma parceria comercial muito forte, com o agronegócio brasileiro tendo uma presença dominante no mercado chinês.

"Lula nesse caso deveria desenvolver uma estratégia para manter boas relações dentro de certos limites com Trump ao mesmo tempo em que preserva a boa relação com a China, num cenário internacional potencialmente mais pressionado", analisa Casarões.

A coluna focou na visão do cientista político sobre o Brasil num possível governo Trump, mas o pesquisador também comentou de forma mais rápida o cenário com Kamala Harris como presidente. Nesse caso, ele aponta, haveria bastante continuidade do que já vem ocorrendo com Biden, e que é uma relação harmoniosa, com convergências em temas como meio ambiente, por exemplo. Com Harris, a convergência possivelmente se estenderia e se reforçaria em relação a temas particularmente caros à candidata democrata, como saúde pública, direitos humanos e combate ao extremismo de direita.

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