Anunciado nesta sexta-feira, 9, como futuro ministro da Fazenda, Fernando Haddad tem como formação na área econômica um mestrado realizado no fim dos anos 1980 na Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo (FEA-USP). Na instituição, ele apresentou uma dissertação em que procurou demonstrar que o regime soviético – que agonizava à época – era “despótico”, não tinha “nenhum traço libertário” e, portanto, “iria se desdobrar em uma economia capitalista tradicional”, diz o petista.
Sob o título “O Debate sobre o Caráter Socioeconômico do Sistema Soviético”, Haddad compara o “despotismo stalinista” com outras “formas anômalas de acumulação primitiva do capital, como o caso da escravidão na América”. Na introdução do trabalho, o então estudante afirmava que o modo de produção capitalista era “progressista em relação ao sistema soviético” – ao contrário do que afirmava grande parte dos teóricos da época, que defendiam que a realidade soviética era “pós-capitalista, pré-socialista ou socialista”.
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A dissertação de mestrado escrita por Haddad tinha o objetivo de ultrapassar os muros da academia. Serviu também como uma forma de contestação da esquerda, que enfrentava uma mudança de rota com a queda do muro de Berlim, em 1989, e via próximo o fim da União Soviética.
“Foi uma dissertação corajosa porque se contrapôs aos dogmas da esquerda”, afirma o jornalista Eugênio Bucci, que antecedeu o petista na presidência do Centro Acadêmico XI de Agosto, em 1984. “Eu lembro dele me falando da motivação em fazer a tese. Ele já tinha uma militância política. Tinha sido presidente do centro acadêmico e tinha uma ligação com o PT”, acrescenta Paulo Picchetti, hoje professor da Fundação Getúlio Vargas, que foi colega do ex-prefeito de São Paulo no mestrado.
Ao Estadão, Haddad afirmou que seu trabalho foi “solenemente ignorado pela esquerda”. Segundo o político, parte da esquerda da época até leu sua dissertação, mas não foi para “o embate defender o que estava terminando (a URSS)”.
“Eu achava difícil defender aquilo que estava terminando. Sempre fui de uma esquerda libertária. Nunca participei de nenhuma organização que tivesse simpatia por regimes despóticos. Considerava que a avaliação sobre a experiência era equivocada, que aquilo era uma repaginação dos traços despóticos (da Rússia) com finalidades industrializantes.”
O então estudante foi formalmente orientado pelo professor Eleutério Prado, que afirmou que, na prática, essa orientação não se deu. “A dissertação foi feita inteiramente pelo sr. Haddad, uma pessoa muito capaz e inteligente. Eu era coordenador de curso e tive de viabilizar a sua conclusão do mestrado, assumindo formalmente a orientação”, disse por e-mail. “Talvez você queira saber se, em minha opinião, (ele) tem competência para ser Ministro da Fazenda. Tenho a certeza que sim”, acrescentou Prado.
Antes de Prado, o economista Paul Singer, um dos fundadores do PT, assumira a orientação de Haddad. O professor acabou deixando esse trabalho quando foi, em 1989, liderar a Secretaria de Planejamento da cidade de São Paulo, comandada à época pela então petista Luiza Erundina.
Após 32 anos da defesa da tese, Haddad está se debruçando sobre ela novamente. Ele conta que a editora Companhia das Letras lhe propôs a publicação de uma segunda edição do trabalho - a dissertação foi publicada em livro em 1992 com o título “O Sistema Soviético - Relato de uma Polêmica”.
Haddad vai atualizar o texto, que considera mais atual hoje do que na época, e acrescentar um capítulo extra sobre a experiência chinesa. “O debate está recolocado em função da China. Tem gente que defende que a China não vai migrar para o capitalismo como a Rússia migrou, que a China tem uma perspectiva diferente”, diz.
O ex-prefeito de São Paulo não quis adiantar qual a visão dele em relação a essa ideia, mas destacou que já leu os textos mais importantes para desenvolver “ao menos um ensaio”. Questionado se terá tempo para conciliar a escrita do capítulo com o trabalho de ministro, caso a indicação se concretizasse - o que acabou mesmo ocorrendo -, afirmou achar que consegue “tirar umas duas ou três horas por semana”.
A decisão pela economia
Formado pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco, da Universidade de São Paulo, em 1985, Haddad escolheu cursar um mestrado em economia porque, diz, se encantou pela economia política. No terceiro ano da graduação, começou a ler obras de Adam Smith, Karl Marx, Celso Furtado e Maria da Conceição Tavares.
Depois de aprovado no exame da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), em 1986, Haddad passou os meses de março a junho viajando por Europa, Estados Unidos e Canadá. Ao retornar para o Brasil, foi atrás do professor Marco Antonio Sandoval com o objetivo de fazer o curso preparatório para a Anpec, que seleciona alunos para os mestrados em economia de todo o País. Uma nova turma, no entanto, só seria aberta em 1987, porque a prova daquele ano estava marcada para outubro. “Mas eu disse que eu iria fazer o exame de qualquer maneira, porque eu queria saber como era a prova.”
Saiu da conversa com a indicação de 15 livros para se preparar para o exame. Estudou na sobreloja de tecidos que pertencia ao seu pai na Rua 25 de março, principal centro de comércio popular de São Paulo. “Eu não tenho dificuldade, eu sempre fui autodidata”, diz, sem modéstia. Naquele ano, dos 45 graduados da FEA, nove foram aprovados para cursar o mestrado na instituição. Os outros 11 vieram de outras escolas. Cria da São Francisco, Haddad estava entre eles.
O político diz que contou com um pouco de sorte também para ser aprovado no exame. Na prova de economia brasileira, a questão - dissertativa - era sobre Celso Furtado, economista de quem gostava muito.
Durante o mestrado, integrou um grupo de estudos com seus colegas de curso. O grupo era composto por Alexandre Schwartsman, que se tornou diretor do Banco Central, Picchetti e Amauri Gremaud, que leciona na USP de Ribeirão Preto e que voltou a encontrar Haddad, nos anos 2000, no Ministério da Educação. Os quatros se reuniam semanalmente na biblioteca da FEA. “A gente combinava de ler livros que interessavam a todo mundo”, diz Picchetti. “Esse grupo contribuiu para a formação dele também.”
A lista de leitura do quarteto englobava o economista austríaco Joseph Schumpeter, que tratou do conceito de destruição criativa, a economista britânica Joan Robinson e clássicos de Keynes. “Havia essa preocupação de entender a economia de uma maneira mais ampla do que só os modelos que fazem parte dos manuais. Os livros eram para preencher essas lacunas”, afirma Picchetti.
Gremaud diz não lembrar de Haddad ter sofrido mais do que os que tinham formação em economia com as disciplinas que envolviam uma carga pesada de cálculo. Ele destaca, porém, que o currículo do mestrado da FEA era mais diverso que o atual. “A gente estudava Keynes e os pós-keynesianos. Em microeconomia, também havia vários autores diferentes, como Georgescu-Roegen, que hoje é usado muito em estudos relacionados ao meio ambiente.”
Seus colegas de curso também destacam a boa formação de Haddad. No Ensino Médio, foi aluno do Colégio Bandeirantes, um dos mais tradicionais da elite paulistana. “O Fernando, primeiro, é bastante inteligente e, segundo, teve uma formação boa no Ensino Médio, porque fez Bandeirantes, uma escola conhecida por ser forte, inclusive nessas áreas”, diz Picchetti.
Piada polêmica
Num debate realizado no Insper em 2017, Haddad brincou com a rápida aprovação no programa de mestrado. Disse que estudou economia por dois meses, apenas para passar na prova da Anpec - famosa pelo nível extremo de dificuldade e por exigir um grande conhecimento em cálculo. “Depois eu não estudei mais. Eu colava um pouco do Alexandre Schwartsman, do Naercio Menezes (professor do Insper) para passar”, disse Haddad no vídeo que viralizou nas redes sociais.
A declaração serviu de munição para opositores. O vídeo voltou a viralizar nas redes sociais, recentemente, quando o nome de Haddad ganhou força para ocupar o cargo de ministro da Fazenda. Schwartsman usou o Twitter para defender o ex-colega de mestrado. “Tenho divergências políticas com o Fernando e – até onde entendo – isto não impediu que continuássemos amigos, ainda que não o veja pessoalmente há anos. Acredito que seja recíproco”, escreveu. “Por favor, desconsiderem a história.” Procurado, o ex-diretor do BC não quis falar sobre o período de convivência entre os dois no mestrado.
“Essa piada transformou um cara que era considerado um prodígio num cara que colou para passar”, diz o próprio Haddad. “Eu sempre fiz piada com essa coisa de em dois meses ter conseguido fazer uma prova melhor do que os alunos da FEA, por isso que eu brinquei aquele dia no Insper. Naquela ocasião, ele (Alexandre) e o Naercio estavam dando aula no Insper, por isso que brinquei com os dois. Eu imaginei que eles estavam assistindo ao debate.”
No doutorado, Haddad deixou a economia e escolheu migrar para o campo da filosofia. “Eu gostava de macroeconomia, e a sensação que eu tive era de que ela iria perder a importância nas ciências econômicas. E perdeu. A microeconomia e a econometria ganharam espaço”, afirma.
“Achava que questões mal resolvidas de macroeconomia iriam impedir o avanço da ciências econômicas, como, por exemplo, o debate sobre moeda.” Com o título de “De Marx a Habermas: o materialismo histórico e seu paradigma adequado”, o ex-prefeito de São Paulo defendeu a sua tese em 1996. “Eu me desinteressei não pela economia, mas pelo estado da arte da economia nos anos 90.”
Mesmo tendo seguido para a filosofia, o petista diz que continuou acompanhando o debate econômico. Entre os economistas que permanecem entre seus favoritos estão os vencedores do Nobel de Economia Paul Krugman e Joseph Stiglitz.