‘Acabar com a fome no Brasil hoje é mais difícil que há 20 anos’, diz criador do Fome Zero


Ex-diretor da FAO e responsável pela implantação do programa Fome Zero no primeiro mandato do governo Lula diz que os obstáculos hoje são maiores ao combate à fome, como a falta de crescimento econômico e de consenso da sociedade sobre a questão

Por Márcia De Chiara
Foto: EPA/ANSA
Entrevista comJosé GrazianoEx-diretor da FAO, ex-ministro extraordinário de Segurança Alimentar do primeiro governo Lula (2003) e diretor-geral do Instituto Fome Zero

Os desafios políticos e econômicos hoje são muito maiores para tirar o Brasil do mapa da fome em relação a 20 anos atrás. A constatação é de José Graziano, ex-diretor da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), ex-ministro extraordinário de Segurança Alimentar e responsável pela implementação do Programa Fome Zero no primeiro governo Lula (2003). Atualmente, ele dirige o Instituto Fome Zero.

Além do aumento do número de famintos e das mudanças na distribuição geográfica – eram 40 milhões de brasileiros em 2003 concentrados em cidades do interior do Nordeste e da Amazônia e hoje são cerca de 65 milhões distribuídos pelas grandes metrópoles –, há, na opinião do especialista, obstáculos cruciais para o enfrentamento do problema que não existiam nos anos 2000.

Um deles é a dificuldade do governo de criar um consenso da sociedade em torno do fim da fome, algo que havia 20 anos. O outro é a estagnação da economia. Graziano considera as políticas de segurança alimentar como coadjuvantes no combate à fome. “A fome no Brasil não é a falta de alimento, é falta de poder aquisitivo”, afirmou.

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O que fez o País sair do mapa da fome no passado, segundo ele, foi o crescimento econômico. “Se elevarmos o valor real do salário mínimo e ao mesmo tempo gerarmos emprego de melhor qualidade, com carteira assinada, esse é o caminho para sairmos da fome”, disse Graziano que, na semana passada, de passagem pelo Brasil rumo ao Chile, onde mora, conversou com o Estadão. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Como o sr. vê o desafio do governo Lula de ter de equacionar novamente o problema da fome?

A volta do Brasil ao mapa da fome e a sua saída, como esperamos, tem muitos elementos novos. Um dos grandes problemas que tivemos lá atrás, era encontrar as pessoas que passavam fome. Hoje isso está infinitamente mais fácil. Se tem novas ferramentas, como o uso da informática, junto com a fome temos uma epidemia de obesidade, que é assustadora. Há um tema que se acentuou muito na pandemia e no pós-pandemia: a mudança de hábito de consumo. O Brasil caminhava para uma alimentação mais saudável. Mas a pandemia interrompeu esse movimento e aumentou a demanda por produtos processados e ultraprocessados. Embutidos de carne, como salsicha substituindo carne, principalmente porque é muito mais barato. O programa Fome Zero original não menciona o tema da obesidade. Tem de aproveitar a reforma tributária para realmente dar um tratamento diferenciado aos alimentos saudáveis.

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Tributar mais os ultraprocessados?

Exato, no mundo inteiro é assim. Aqui não temos impostos sobre a adição de açúcar, por exemplo.

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Então, temos hoje dois problemas: de quem não come e de quem come mal?

Exatamente. As duas questões são urgentes, afetam a saúde. Agora, não comer tem a prioridade absoluta. Mas eu queria agregar mais um elemento. Vinte anos atrás, nossa meta era 40 milhões de pessoas que passavam fome, calculado pela linha de pobreza de US$ 1,90. Não tínhamos nenhum estudo como temos agora sobre a escala brasileira de insegurança alimentar. Não havia informação, era um apagão de números. Então estimamos a partir da renda das Pnads (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE) que eram 40 milhões de pessoas. Hoje esse número é muito maior. Entre situação de insegurança alimentar grave, que é quem não come nada, e insegurança alimentar moderada, que é quem não faz as três refeições diárias, temos 65 milhões de pessoas. Antes, essas pessoas estavam concentradas nas pequenas e médias cidades do interior, principalmente no Nordeste e na Amazônia. Hoje essa população está nas grande metrópoles.

Por quê?

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Porque a pobreza urbanizou-se nesses 20 anos. Um dos efeitos da pujança do nosso agronegócio foi empurrar a miséria para as cidades. Com a mecanização e a grande escala de produção, o agronegócio empurrou as famílias que viviam no nível de subsistência, de um pequeno roçado, para a periferia das grandes cidades. E a fome na periferia é muito mais complicada, porque ela não vem sozinha. É um conjunto mais complexo, incluindo questões de tráfico, banditismo. A miséria urbanizada nas grandes metrópoles é mais complexa do que a miséria rural que tínhamos nos anos 2000.

Está mais difícil resolver o problema da fome comparativamente a 20 anos atrás?

Tem esses novos problemas. Não é apenas fornecer alimentos. A gente consegue identificar as pessoas, mas os programas são mais complexos. No abastecimento, o grande tema é a disparada dos preços dos alimentos e os ultraprocessados estão mais baratos. O varejo passou por uma revolução nos últimos 20 anos, vendendo online, os supermercados reduziram o desperdício. Uma coisa é a disponibilidade de alimento que, no Brasil, é grande. Outra coisa é o acesso. As pessoas não tem acesso aos alimentos e isso é possível fazer de duas formas: aumentando a renda ou por meio de programas públicos, como banco de alimentos, restaurante popular. A minha visão é que todas essas políticas de segurança alimentar são complementares, coadjuvantes.

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Como assim?

O ator principal é a geração de emprego e renda. A fome no Brasil não é a falta de alimento. Esta sobrando alimento. É a falta de poder aquisitivo. O Brasil ao lado do Peru tem o menor salário mínimo em dólar entre os vizinhos da América Latina. Realmente é um salário mínimo de miserável. E eu não estou comparando com a Europa. Se elevarmos o valor real do salário mínimo e ao mesmo tempo gerarmos emprego de melhor qualidade, com carteira assinada, esse é o caminho para sairmos da fome. Foi isso que aconteceu no primeiro mandato do governo Lula em 2003. O que fez o Brasil sair do mapa da fome foi o crescimento.

O que fez o Brasil voltar para o mapa da fome?

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Juntaram-se duas coisas. Os períodos recessivos, de queda no PIB (Produto Interno Bruto), e o corte das políticas sociais mais importantes. Não só as políticas de segurança alimentar e nutricional, mas represou pagamentos de aposentadorias, benefício de prestação continuada. Isso reduziu muito a renda disponível na classe mais baixa, sem falar da informalidade do trabalho que cresceu muito na pandemia e outros agravantes sociais. Esse é o quadro que compõe a dificuldade deste momento. Podemos voltar com todos os programas de alimentação escolar, Bolsa Família, compra de alimentos da agricultura familiar, todo esse coquetel que sabemos administrar muito bem, mas se o Brasil não crescer e o salário mínimo não aumentar, a fome não acaba.

Diante da perspectiva de a taxa básica de juros se manter elevada, inibindo o crescimento, está mais difícil resolver o problema da fome hoje?

Não só está mais complicada a situação em termos quantitativos como qualitativos, mas temos um enfrentamento de uma questão que não é fácil, que é a política. Em 2003 o Brasil se unificou em torno da eleição do Lula. Ele conseguiu unificar rapidamente o País em torno da promessa de erradicar a fome. Houve uma adesão maciça. Lembro do Antoninho Trevisan, que liderou a Associação Fome Zero e dizia nos encontros de empresários: ‘hoje tem 75% do PIB nesta reunião’. Não temos isso agora, essa unanimidade, esse apoio empresarial. No passado, os sindicatos entraram nessa mobilização. Atualmente não se vê isso.

Como a política afeta esse objetivo de acabar com a fome?

Esse quadro de divisão política e social impacta muito o combate à fome, porque não é governo que acaba coma fome. Governo ajuda muito ou atrapalha muito. Acabar com a fome é uma decisão da sociedade. A sociedade precisa decidir acabar com a fome, com a miséria, com o analfabetismo.

Vai demorar mais tempo para sairmos dessa situação comparativamente a 2003?

De um lado tem o fato de que essa situação é muito mais complicada. De outro já temos uma trilha percorrida, embora o pavimento não seja novo, não esteja bem cuidado, mas nós sabemos o caminho. Há um arcabouço jurídico e institucional pronto para operar, precisa colocar lubrificante nisso. Levamos dez anos para sair do mapa da fome. Sou otimista. Nos quatro anos do governo Lula, poderemos acabar com a fome mais urgente, que mata, da população de rua, dos ianomâmis, da merenda escolar. Certamente serão menos de 65 milhões. Vão sobrar temas como os brasileiros que não fazem três refeições por dia, a questão da obesidade, igualmente importantes, que terão de ser tratados..

Como Instituto Fome Zero está contribuindo neste momento para acabar com a fome?

Em dezembro, encaminhamos ao grupo de transição do governo Lula uma síntese das principais ideias do Instituto Fome Zero. Temos sido um interlocutor constante, temos colaborado informalmente. Estamos ajudando a conseguir recursos internacionais, fontes alternativas de financiamento.

Quando e por que o Instituto Fome Zero foi criado?

Voltando ao Brasil, depois do fim do meu mandato na FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), juntei a velha guarda do Programa Fome Zero para recolocar a discussão da questão da fome em meio à crise. A gente se identifica como novo Exército de Brancaleone. São cerca de 50 pessoas voluntárias, boa parte aposentada, provenientes de universidades e outras com experiência no setor público. Em outubro de 2020, criamos essa ONG (Organização Não Governamental) como espaço de discussão de ideias. Já produzimos site, estamos recuperando o acervo sobre contribuições dadas a agricultura familiar, segurança alimentar, combate à fome. Tivemos 167 países visitando o nosso site. Achamos importante dar a nossa contribuição neste momento como organização social, não como governo.

Os desafios políticos e econômicos hoje são muito maiores para tirar o Brasil do mapa da fome em relação a 20 anos atrás. A constatação é de José Graziano, ex-diretor da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), ex-ministro extraordinário de Segurança Alimentar e responsável pela implementação do Programa Fome Zero no primeiro governo Lula (2003). Atualmente, ele dirige o Instituto Fome Zero.

Além do aumento do número de famintos e das mudanças na distribuição geográfica – eram 40 milhões de brasileiros em 2003 concentrados em cidades do interior do Nordeste e da Amazônia e hoje são cerca de 65 milhões distribuídos pelas grandes metrópoles –, há, na opinião do especialista, obstáculos cruciais para o enfrentamento do problema que não existiam nos anos 2000.

Um deles é a dificuldade do governo de criar um consenso da sociedade em torno do fim da fome, algo que havia 20 anos. O outro é a estagnação da economia. Graziano considera as políticas de segurança alimentar como coadjuvantes no combate à fome. “A fome no Brasil não é a falta de alimento, é falta de poder aquisitivo”, afirmou.

O que fez o País sair do mapa da fome no passado, segundo ele, foi o crescimento econômico. “Se elevarmos o valor real do salário mínimo e ao mesmo tempo gerarmos emprego de melhor qualidade, com carteira assinada, esse é o caminho para sairmos da fome”, disse Graziano que, na semana passada, de passagem pelo Brasil rumo ao Chile, onde mora, conversou com o Estadão. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Como o sr. vê o desafio do governo Lula de ter de equacionar novamente o problema da fome?

A volta do Brasil ao mapa da fome e a sua saída, como esperamos, tem muitos elementos novos. Um dos grandes problemas que tivemos lá atrás, era encontrar as pessoas que passavam fome. Hoje isso está infinitamente mais fácil. Se tem novas ferramentas, como o uso da informática, junto com a fome temos uma epidemia de obesidade, que é assustadora. Há um tema que se acentuou muito na pandemia e no pós-pandemia: a mudança de hábito de consumo. O Brasil caminhava para uma alimentação mais saudável. Mas a pandemia interrompeu esse movimento e aumentou a demanda por produtos processados e ultraprocessados. Embutidos de carne, como salsicha substituindo carne, principalmente porque é muito mais barato. O programa Fome Zero original não menciona o tema da obesidade. Tem de aproveitar a reforma tributária para realmente dar um tratamento diferenciado aos alimentos saudáveis.

Tributar mais os ultraprocessados?

Exato, no mundo inteiro é assim. Aqui não temos impostos sobre a adição de açúcar, por exemplo.

Então, temos hoje dois problemas: de quem não come e de quem come mal?

Exatamente. As duas questões são urgentes, afetam a saúde. Agora, não comer tem a prioridade absoluta. Mas eu queria agregar mais um elemento. Vinte anos atrás, nossa meta era 40 milhões de pessoas que passavam fome, calculado pela linha de pobreza de US$ 1,90. Não tínhamos nenhum estudo como temos agora sobre a escala brasileira de insegurança alimentar. Não havia informação, era um apagão de números. Então estimamos a partir da renda das Pnads (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE) que eram 40 milhões de pessoas. Hoje esse número é muito maior. Entre situação de insegurança alimentar grave, que é quem não come nada, e insegurança alimentar moderada, que é quem não faz as três refeições diárias, temos 65 milhões de pessoas. Antes, essas pessoas estavam concentradas nas pequenas e médias cidades do interior, principalmente no Nordeste e na Amazônia. Hoje essa população está nas grande metrópoles.

Por quê?

Porque a pobreza urbanizou-se nesses 20 anos. Um dos efeitos da pujança do nosso agronegócio foi empurrar a miséria para as cidades. Com a mecanização e a grande escala de produção, o agronegócio empurrou as famílias que viviam no nível de subsistência, de um pequeno roçado, para a periferia das grandes cidades. E a fome na periferia é muito mais complicada, porque ela não vem sozinha. É um conjunto mais complexo, incluindo questões de tráfico, banditismo. A miséria urbanizada nas grandes metrópoles é mais complexa do que a miséria rural que tínhamos nos anos 2000.

Está mais difícil resolver o problema da fome comparativamente a 20 anos atrás?

Tem esses novos problemas. Não é apenas fornecer alimentos. A gente consegue identificar as pessoas, mas os programas são mais complexos. No abastecimento, o grande tema é a disparada dos preços dos alimentos e os ultraprocessados estão mais baratos. O varejo passou por uma revolução nos últimos 20 anos, vendendo online, os supermercados reduziram o desperdício. Uma coisa é a disponibilidade de alimento que, no Brasil, é grande. Outra coisa é o acesso. As pessoas não tem acesso aos alimentos e isso é possível fazer de duas formas: aumentando a renda ou por meio de programas públicos, como banco de alimentos, restaurante popular. A minha visão é que todas essas políticas de segurança alimentar são complementares, coadjuvantes.

Como assim?

O ator principal é a geração de emprego e renda. A fome no Brasil não é a falta de alimento. Esta sobrando alimento. É a falta de poder aquisitivo. O Brasil ao lado do Peru tem o menor salário mínimo em dólar entre os vizinhos da América Latina. Realmente é um salário mínimo de miserável. E eu não estou comparando com a Europa. Se elevarmos o valor real do salário mínimo e ao mesmo tempo gerarmos emprego de melhor qualidade, com carteira assinada, esse é o caminho para sairmos da fome. Foi isso que aconteceu no primeiro mandato do governo Lula em 2003. O que fez o Brasil sair do mapa da fome foi o crescimento.

O que fez o Brasil voltar para o mapa da fome?

Juntaram-se duas coisas. Os períodos recessivos, de queda no PIB (Produto Interno Bruto), e o corte das políticas sociais mais importantes. Não só as políticas de segurança alimentar e nutricional, mas represou pagamentos de aposentadorias, benefício de prestação continuada. Isso reduziu muito a renda disponível na classe mais baixa, sem falar da informalidade do trabalho que cresceu muito na pandemia e outros agravantes sociais. Esse é o quadro que compõe a dificuldade deste momento. Podemos voltar com todos os programas de alimentação escolar, Bolsa Família, compra de alimentos da agricultura familiar, todo esse coquetel que sabemos administrar muito bem, mas se o Brasil não crescer e o salário mínimo não aumentar, a fome não acaba.

Diante da perspectiva de a taxa básica de juros se manter elevada, inibindo o crescimento, está mais difícil resolver o problema da fome hoje?

Não só está mais complicada a situação em termos quantitativos como qualitativos, mas temos um enfrentamento de uma questão que não é fácil, que é a política. Em 2003 o Brasil se unificou em torno da eleição do Lula. Ele conseguiu unificar rapidamente o País em torno da promessa de erradicar a fome. Houve uma adesão maciça. Lembro do Antoninho Trevisan, que liderou a Associação Fome Zero e dizia nos encontros de empresários: ‘hoje tem 75% do PIB nesta reunião’. Não temos isso agora, essa unanimidade, esse apoio empresarial. No passado, os sindicatos entraram nessa mobilização. Atualmente não se vê isso.

Como a política afeta esse objetivo de acabar com a fome?

Esse quadro de divisão política e social impacta muito o combate à fome, porque não é governo que acaba coma fome. Governo ajuda muito ou atrapalha muito. Acabar com a fome é uma decisão da sociedade. A sociedade precisa decidir acabar com a fome, com a miséria, com o analfabetismo.

Vai demorar mais tempo para sairmos dessa situação comparativamente a 2003?

De um lado tem o fato de que essa situação é muito mais complicada. De outro já temos uma trilha percorrida, embora o pavimento não seja novo, não esteja bem cuidado, mas nós sabemos o caminho. Há um arcabouço jurídico e institucional pronto para operar, precisa colocar lubrificante nisso. Levamos dez anos para sair do mapa da fome. Sou otimista. Nos quatro anos do governo Lula, poderemos acabar com a fome mais urgente, que mata, da população de rua, dos ianomâmis, da merenda escolar. Certamente serão menos de 65 milhões. Vão sobrar temas como os brasileiros que não fazem três refeições por dia, a questão da obesidade, igualmente importantes, que terão de ser tratados..

Como Instituto Fome Zero está contribuindo neste momento para acabar com a fome?

Em dezembro, encaminhamos ao grupo de transição do governo Lula uma síntese das principais ideias do Instituto Fome Zero. Temos sido um interlocutor constante, temos colaborado informalmente. Estamos ajudando a conseguir recursos internacionais, fontes alternativas de financiamento.

Quando e por que o Instituto Fome Zero foi criado?

Voltando ao Brasil, depois do fim do meu mandato na FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), juntei a velha guarda do Programa Fome Zero para recolocar a discussão da questão da fome em meio à crise. A gente se identifica como novo Exército de Brancaleone. São cerca de 50 pessoas voluntárias, boa parte aposentada, provenientes de universidades e outras com experiência no setor público. Em outubro de 2020, criamos essa ONG (Organização Não Governamental) como espaço de discussão de ideias. Já produzimos site, estamos recuperando o acervo sobre contribuições dadas a agricultura familiar, segurança alimentar, combate à fome. Tivemos 167 países visitando o nosso site. Achamos importante dar a nossa contribuição neste momento como organização social, não como governo.

Os desafios políticos e econômicos hoje são muito maiores para tirar o Brasil do mapa da fome em relação a 20 anos atrás. A constatação é de José Graziano, ex-diretor da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), ex-ministro extraordinário de Segurança Alimentar e responsável pela implementação do Programa Fome Zero no primeiro governo Lula (2003). Atualmente, ele dirige o Instituto Fome Zero.

Além do aumento do número de famintos e das mudanças na distribuição geográfica – eram 40 milhões de brasileiros em 2003 concentrados em cidades do interior do Nordeste e da Amazônia e hoje são cerca de 65 milhões distribuídos pelas grandes metrópoles –, há, na opinião do especialista, obstáculos cruciais para o enfrentamento do problema que não existiam nos anos 2000.

Um deles é a dificuldade do governo de criar um consenso da sociedade em torno do fim da fome, algo que havia 20 anos. O outro é a estagnação da economia. Graziano considera as políticas de segurança alimentar como coadjuvantes no combate à fome. “A fome no Brasil não é a falta de alimento, é falta de poder aquisitivo”, afirmou.

O que fez o País sair do mapa da fome no passado, segundo ele, foi o crescimento econômico. “Se elevarmos o valor real do salário mínimo e ao mesmo tempo gerarmos emprego de melhor qualidade, com carteira assinada, esse é o caminho para sairmos da fome”, disse Graziano que, na semana passada, de passagem pelo Brasil rumo ao Chile, onde mora, conversou com o Estadão. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Como o sr. vê o desafio do governo Lula de ter de equacionar novamente o problema da fome?

A volta do Brasil ao mapa da fome e a sua saída, como esperamos, tem muitos elementos novos. Um dos grandes problemas que tivemos lá atrás, era encontrar as pessoas que passavam fome. Hoje isso está infinitamente mais fácil. Se tem novas ferramentas, como o uso da informática, junto com a fome temos uma epidemia de obesidade, que é assustadora. Há um tema que se acentuou muito na pandemia e no pós-pandemia: a mudança de hábito de consumo. O Brasil caminhava para uma alimentação mais saudável. Mas a pandemia interrompeu esse movimento e aumentou a demanda por produtos processados e ultraprocessados. Embutidos de carne, como salsicha substituindo carne, principalmente porque é muito mais barato. O programa Fome Zero original não menciona o tema da obesidade. Tem de aproveitar a reforma tributária para realmente dar um tratamento diferenciado aos alimentos saudáveis.

Tributar mais os ultraprocessados?

Exato, no mundo inteiro é assim. Aqui não temos impostos sobre a adição de açúcar, por exemplo.

Então, temos hoje dois problemas: de quem não come e de quem come mal?

Exatamente. As duas questões são urgentes, afetam a saúde. Agora, não comer tem a prioridade absoluta. Mas eu queria agregar mais um elemento. Vinte anos atrás, nossa meta era 40 milhões de pessoas que passavam fome, calculado pela linha de pobreza de US$ 1,90. Não tínhamos nenhum estudo como temos agora sobre a escala brasileira de insegurança alimentar. Não havia informação, era um apagão de números. Então estimamos a partir da renda das Pnads (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE) que eram 40 milhões de pessoas. Hoje esse número é muito maior. Entre situação de insegurança alimentar grave, que é quem não come nada, e insegurança alimentar moderada, que é quem não faz as três refeições diárias, temos 65 milhões de pessoas. Antes, essas pessoas estavam concentradas nas pequenas e médias cidades do interior, principalmente no Nordeste e na Amazônia. Hoje essa população está nas grande metrópoles.

Por quê?

Porque a pobreza urbanizou-se nesses 20 anos. Um dos efeitos da pujança do nosso agronegócio foi empurrar a miséria para as cidades. Com a mecanização e a grande escala de produção, o agronegócio empurrou as famílias que viviam no nível de subsistência, de um pequeno roçado, para a periferia das grandes cidades. E a fome na periferia é muito mais complicada, porque ela não vem sozinha. É um conjunto mais complexo, incluindo questões de tráfico, banditismo. A miséria urbanizada nas grandes metrópoles é mais complexa do que a miséria rural que tínhamos nos anos 2000.

Está mais difícil resolver o problema da fome comparativamente a 20 anos atrás?

Tem esses novos problemas. Não é apenas fornecer alimentos. A gente consegue identificar as pessoas, mas os programas são mais complexos. No abastecimento, o grande tema é a disparada dos preços dos alimentos e os ultraprocessados estão mais baratos. O varejo passou por uma revolução nos últimos 20 anos, vendendo online, os supermercados reduziram o desperdício. Uma coisa é a disponibilidade de alimento que, no Brasil, é grande. Outra coisa é o acesso. As pessoas não tem acesso aos alimentos e isso é possível fazer de duas formas: aumentando a renda ou por meio de programas públicos, como banco de alimentos, restaurante popular. A minha visão é que todas essas políticas de segurança alimentar são complementares, coadjuvantes.

Como assim?

O ator principal é a geração de emprego e renda. A fome no Brasil não é a falta de alimento. Esta sobrando alimento. É a falta de poder aquisitivo. O Brasil ao lado do Peru tem o menor salário mínimo em dólar entre os vizinhos da América Latina. Realmente é um salário mínimo de miserável. E eu não estou comparando com a Europa. Se elevarmos o valor real do salário mínimo e ao mesmo tempo gerarmos emprego de melhor qualidade, com carteira assinada, esse é o caminho para sairmos da fome. Foi isso que aconteceu no primeiro mandato do governo Lula em 2003. O que fez o Brasil sair do mapa da fome foi o crescimento.

O que fez o Brasil voltar para o mapa da fome?

Juntaram-se duas coisas. Os períodos recessivos, de queda no PIB (Produto Interno Bruto), e o corte das políticas sociais mais importantes. Não só as políticas de segurança alimentar e nutricional, mas represou pagamentos de aposentadorias, benefício de prestação continuada. Isso reduziu muito a renda disponível na classe mais baixa, sem falar da informalidade do trabalho que cresceu muito na pandemia e outros agravantes sociais. Esse é o quadro que compõe a dificuldade deste momento. Podemos voltar com todos os programas de alimentação escolar, Bolsa Família, compra de alimentos da agricultura familiar, todo esse coquetel que sabemos administrar muito bem, mas se o Brasil não crescer e o salário mínimo não aumentar, a fome não acaba.

Diante da perspectiva de a taxa básica de juros se manter elevada, inibindo o crescimento, está mais difícil resolver o problema da fome hoje?

Não só está mais complicada a situação em termos quantitativos como qualitativos, mas temos um enfrentamento de uma questão que não é fácil, que é a política. Em 2003 o Brasil se unificou em torno da eleição do Lula. Ele conseguiu unificar rapidamente o País em torno da promessa de erradicar a fome. Houve uma adesão maciça. Lembro do Antoninho Trevisan, que liderou a Associação Fome Zero e dizia nos encontros de empresários: ‘hoje tem 75% do PIB nesta reunião’. Não temos isso agora, essa unanimidade, esse apoio empresarial. No passado, os sindicatos entraram nessa mobilização. Atualmente não se vê isso.

Como a política afeta esse objetivo de acabar com a fome?

Esse quadro de divisão política e social impacta muito o combate à fome, porque não é governo que acaba coma fome. Governo ajuda muito ou atrapalha muito. Acabar com a fome é uma decisão da sociedade. A sociedade precisa decidir acabar com a fome, com a miséria, com o analfabetismo.

Vai demorar mais tempo para sairmos dessa situação comparativamente a 2003?

De um lado tem o fato de que essa situação é muito mais complicada. De outro já temos uma trilha percorrida, embora o pavimento não seja novo, não esteja bem cuidado, mas nós sabemos o caminho. Há um arcabouço jurídico e institucional pronto para operar, precisa colocar lubrificante nisso. Levamos dez anos para sair do mapa da fome. Sou otimista. Nos quatro anos do governo Lula, poderemos acabar com a fome mais urgente, que mata, da população de rua, dos ianomâmis, da merenda escolar. Certamente serão menos de 65 milhões. Vão sobrar temas como os brasileiros que não fazem três refeições por dia, a questão da obesidade, igualmente importantes, que terão de ser tratados..

Como Instituto Fome Zero está contribuindo neste momento para acabar com a fome?

Em dezembro, encaminhamos ao grupo de transição do governo Lula uma síntese das principais ideias do Instituto Fome Zero. Temos sido um interlocutor constante, temos colaborado informalmente. Estamos ajudando a conseguir recursos internacionais, fontes alternativas de financiamento.

Quando e por que o Instituto Fome Zero foi criado?

Voltando ao Brasil, depois do fim do meu mandato na FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), juntei a velha guarda do Programa Fome Zero para recolocar a discussão da questão da fome em meio à crise. A gente se identifica como novo Exército de Brancaleone. São cerca de 50 pessoas voluntárias, boa parte aposentada, provenientes de universidades e outras com experiência no setor público. Em outubro de 2020, criamos essa ONG (Organização Não Governamental) como espaço de discussão de ideias. Já produzimos site, estamos recuperando o acervo sobre contribuições dadas a agricultura familiar, segurança alimentar, combate à fome. Tivemos 167 países visitando o nosso site. Achamos importante dar a nossa contribuição neste momento como organização social, não como governo.

Os desafios políticos e econômicos hoje são muito maiores para tirar o Brasil do mapa da fome em relação a 20 anos atrás. A constatação é de José Graziano, ex-diretor da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), ex-ministro extraordinário de Segurança Alimentar e responsável pela implementação do Programa Fome Zero no primeiro governo Lula (2003). Atualmente, ele dirige o Instituto Fome Zero.

Além do aumento do número de famintos e das mudanças na distribuição geográfica – eram 40 milhões de brasileiros em 2003 concentrados em cidades do interior do Nordeste e da Amazônia e hoje são cerca de 65 milhões distribuídos pelas grandes metrópoles –, há, na opinião do especialista, obstáculos cruciais para o enfrentamento do problema que não existiam nos anos 2000.

Um deles é a dificuldade do governo de criar um consenso da sociedade em torno do fim da fome, algo que havia 20 anos. O outro é a estagnação da economia. Graziano considera as políticas de segurança alimentar como coadjuvantes no combate à fome. “A fome no Brasil não é a falta de alimento, é falta de poder aquisitivo”, afirmou.

O que fez o País sair do mapa da fome no passado, segundo ele, foi o crescimento econômico. “Se elevarmos o valor real do salário mínimo e ao mesmo tempo gerarmos emprego de melhor qualidade, com carteira assinada, esse é o caminho para sairmos da fome”, disse Graziano que, na semana passada, de passagem pelo Brasil rumo ao Chile, onde mora, conversou com o Estadão. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Como o sr. vê o desafio do governo Lula de ter de equacionar novamente o problema da fome?

A volta do Brasil ao mapa da fome e a sua saída, como esperamos, tem muitos elementos novos. Um dos grandes problemas que tivemos lá atrás, era encontrar as pessoas que passavam fome. Hoje isso está infinitamente mais fácil. Se tem novas ferramentas, como o uso da informática, junto com a fome temos uma epidemia de obesidade, que é assustadora. Há um tema que se acentuou muito na pandemia e no pós-pandemia: a mudança de hábito de consumo. O Brasil caminhava para uma alimentação mais saudável. Mas a pandemia interrompeu esse movimento e aumentou a demanda por produtos processados e ultraprocessados. Embutidos de carne, como salsicha substituindo carne, principalmente porque é muito mais barato. O programa Fome Zero original não menciona o tema da obesidade. Tem de aproveitar a reforma tributária para realmente dar um tratamento diferenciado aos alimentos saudáveis.

Tributar mais os ultraprocessados?

Exato, no mundo inteiro é assim. Aqui não temos impostos sobre a adição de açúcar, por exemplo.

Então, temos hoje dois problemas: de quem não come e de quem come mal?

Exatamente. As duas questões são urgentes, afetam a saúde. Agora, não comer tem a prioridade absoluta. Mas eu queria agregar mais um elemento. Vinte anos atrás, nossa meta era 40 milhões de pessoas que passavam fome, calculado pela linha de pobreza de US$ 1,90. Não tínhamos nenhum estudo como temos agora sobre a escala brasileira de insegurança alimentar. Não havia informação, era um apagão de números. Então estimamos a partir da renda das Pnads (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE) que eram 40 milhões de pessoas. Hoje esse número é muito maior. Entre situação de insegurança alimentar grave, que é quem não come nada, e insegurança alimentar moderada, que é quem não faz as três refeições diárias, temos 65 milhões de pessoas. Antes, essas pessoas estavam concentradas nas pequenas e médias cidades do interior, principalmente no Nordeste e na Amazônia. Hoje essa população está nas grande metrópoles.

Por quê?

Porque a pobreza urbanizou-se nesses 20 anos. Um dos efeitos da pujança do nosso agronegócio foi empurrar a miséria para as cidades. Com a mecanização e a grande escala de produção, o agronegócio empurrou as famílias que viviam no nível de subsistência, de um pequeno roçado, para a periferia das grandes cidades. E a fome na periferia é muito mais complicada, porque ela não vem sozinha. É um conjunto mais complexo, incluindo questões de tráfico, banditismo. A miséria urbanizada nas grandes metrópoles é mais complexa do que a miséria rural que tínhamos nos anos 2000.

Está mais difícil resolver o problema da fome comparativamente a 20 anos atrás?

Tem esses novos problemas. Não é apenas fornecer alimentos. A gente consegue identificar as pessoas, mas os programas são mais complexos. No abastecimento, o grande tema é a disparada dos preços dos alimentos e os ultraprocessados estão mais baratos. O varejo passou por uma revolução nos últimos 20 anos, vendendo online, os supermercados reduziram o desperdício. Uma coisa é a disponibilidade de alimento que, no Brasil, é grande. Outra coisa é o acesso. As pessoas não tem acesso aos alimentos e isso é possível fazer de duas formas: aumentando a renda ou por meio de programas públicos, como banco de alimentos, restaurante popular. A minha visão é que todas essas políticas de segurança alimentar são complementares, coadjuvantes.

Como assim?

O ator principal é a geração de emprego e renda. A fome no Brasil não é a falta de alimento. Esta sobrando alimento. É a falta de poder aquisitivo. O Brasil ao lado do Peru tem o menor salário mínimo em dólar entre os vizinhos da América Latina. Realmente é um salário mínimo de miserável. E eu não estou comparando com a Europa. Se elevarmos o valor real do salário mínimo e ao mesmo tempo gerarmos emprego de melhor qualidade, com carteira assinada, esse é o caminho para sairmos da fome. Foi isso que aconteceu no primeiro mandato do governo Lula em 2003. O que fez o Brasil sair do mapa da fome foi o crescimento.

O que fez o Brasil voltar para o mapa da fome?

Juntaram-se duas coisas. Os períodos recessivos, de queda no PIB (Produto Interno Bruto), e o corte das políticas sociais mais importantes. Não só as políticas de segurança alimentar e nutricional, mas represou pagamentos de aposentadorias, benefício de prestação continuada. Isso reduziu muito a renda disponível na classe mais baixa, sem falar da informalidade do trabalho que cresceu muito na pandemia e outros agravantes sociais. Esse é o quadro que compõe a dificuldade deste momento. Podemos voltar com todos os programas de alimentação escolar, Bolsa Família, compra de alimentos da agricultura familiar, todo esse coquetel que sabemos administrar muito bem, mas se o Brasil não crescer e o salário mínimo não aumentar, a fome não acaba.

Diante da perspectiva de a taxa básica de juros se manter elevada, inibindo o crescimento, está mais difícil resolver o problema da fome hoje?

Não só está mais complicada a situação em termos quantitativos como qualitativos, mas temos um enfrentamento de uma questão que não é fácil, que é a política. Em 2003 o Brasil se unificou em torno da eleição do Lula. Ele conseguiu unificar rapidamente o País em torno da promessa de erradicar a fome. Houve uma adesão maciça. Lembro do Antoninho Trevisan, que liderou a Associação Fome Zero e dizia nos encontros de empresários: ‘hoje tem 75% do PIB nesta reunião’. Não temos isso agora, essa unanimidade, esse apoio empresarial. No passado, os sindicatos entraram nessa mobilização. Atualmente não se vê isso.

Como a política afeta esse objetivo de acabar com a fome?

Esse quadro de divisão política e social impacta muito o combate à fome, porque não é governo que acaba coma fome. Governo ajuda muito ou atrapalha muito. Acabar com a fome é uma decisão da sociedade. A sociedade precisa decidir acabar com a fome, com a miséria, com o analfabetismo.

Vai demorar mais tempo para sairmos dessa situação comparativamente a 2003?

De um lado tem o fato de que essa situação é muito mais complicada. De outro já temos uma trilha percorrida, embora o pavimento não seja novo, não esteja bem cuidado, mas nós sabemos o caminho. Há um arcabouço jurídico e institucional pronto para operar, precisa colocar lubrificante nisso. Levamos dez anos para sair do mapa da fome. Sou otimista. Nos quatro anos do governo Lula, poderemos acabar com a fome mais urgente, que mata, da população de rua, dos ianomâmis, da merenda escolar. Certamente serão menos de 65 milhões. Vão sobrar temas como os brasileiros que não fazem três refeições por dia, a questão da obesidade, igualmente importantes, que terão de ser tratados..

Como Instituto Fome Zero está contribuindo neste momento para acabar com a fome?

Em dezembro, encaminhamos ao grupo de transição do governo Lula uma síntese das principais ideias do Instituto Fome Zero. Temos sido um interlocutor constante, temos colaborado informalmente. Estamos ajudando a conseguir recursos internacionais, fontes alternativas de financiamento.

Quando e por que o Instituto Fome Zero foi criado?

Voltando ao Brasil, depois do fim do meu mandato na FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), juntei a velha guarda do Programa Fome Zero para recolocar a discussão da questão da fome em meio à crise. A gente se identifica como novo Exército de Brancaleone. São cerca de 50 pessoas voluntárias, boa parte aposentada, provenientes de universidades e outras com experiência no setor público. Em outubro de 2020, criamos essa ONG (Organização Não Governamental) como espaço de discussão de ideias. Já produzimos site, estamos recuperando o acervo sobre contribuições dadas a agricultura familiar, segurança alimentar, combate à fome. Tivemos 167 países visitando o nosso site. Achamos importante dar a nossa contribuição neste momento como organização social, não como governo.

Os desafios políticos e econômicos hoje são muito maiores para tirar o Brasil do mapa da fome em relação a 20 anos atrás. A constatação é de José Graziano, ex-diretor da Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO), ex-ministro extraordinário de Segurança Alimentar e responsável pela implementação do Programa Fome Zero no primeiro governo Lula (2003). Atualmente, ele dirige o Instituto Fome Zero.

Além do aumento do número de famintos e das mudanças na distribuição geográfica – eram 40 milhões de brasileiros em 2003 concentrados em cidades do interior do Nordeste e da Amazônia e hoje são cerca de 65 milhões distribuídos pelas grandes metrópoles –, há, na opinião do especialista, obstáculos cruciais para o enfrentamento do problema que não existiam nos anos 2000.

Um deles é a dificuldade do governo de criar um consenso da sociedade em torno do fim da fome, algo que havia 20 anos. O outro é a estagnação da economia. Graziano considera as políticas de segurança alimentar como coadjuvantes no combate à fome. “A fome no Brasil não é a falta de alimento, é falta de poder aquisitivo”, afirmou.

O que fez o País sair do mapa da fome no passado, segundo ele, foi o crescimento econômico. “Se elevarmos o valor real do salário mínimo e ao mesmo tempo gerarmos emprego de melhor qualidade, com carteira assinada, esse é o caminho para sairmos da fome”, disse Graziano que, na semana passada, de passagem pelo Brasil rumo ao Chile, onde mora, conversou com o Estadão. A seguir, os principais trechos da entrevista.

Como o sr. vê o desafio do governo Lula de ter de equacionar novamente o problema da fome?

A volta do Brasil ao mapa da fome e a sua saída, como esperamos, tem muitos elementos novos. Um dos grandes problemas que tivemos lá atrás, era encontrar as pessoas que passavam fome. Hoje isso está infinitamente mais fácil. Se tem novas ferramentas, como o uso da informática, junto com a fome temos uma epidemia de obesidade, que é assustadora. Há um tema que se acentuou muito na pandemia e no pós-pandemia: a mudança de hábito de consumo. O Brasil caminhava para uma alimentação mais saudável. Mas a pandemia interrompeu esse movimento e aumentou a demanda por produtos processados e ultraprocessados. Embutidos de carne, como salsicha substituindo carne, principalmente porque é muito mais barato. O programa Fome Zero original não menciona o tema da obesidade. Tem de aproveitar a reforma tributária para realmente dar um tratamento diferenciado aos alimentos saudáveis.

Tributar mais os ultraprocessados?

Exato, no mundo inteiro é assim. Aqui não temos impostos sobre a adição de açúcar, por exemplo.

Então, temos hoje dois problemas: de quem não come e de quem come mal?

Exatamente. As duas questões são urgentes, afetam a saúde. Agora, não comer tem a prioridade absoluta. Mas eu queria agregar mais um elemento. Vinte anos atrás, nossa meta era 40 milhões de pessoas que passavam fome, calculado pela linha de pobreza de US$ 1,90. Não tínhamos nenhum estudo como temos agora sobre a escala brasileira de insegurança alimentar. Não havia informação, era um apagão de números. Então estimamos a partir da renda das Pnads (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios do IBGE) que eram 40 milhões de pessoas. Hoje esse número é muito maior. Entre situação de insegurança alimentar grave, que é quem não come nada, e insegurança alimentar moderada, que é quem não faz as três refeições diárias, temos 65 milhões de pessoas. Antes, essas pessoas estavam concentradas nas pequenas e médias cidades do interior, principalmente no Nordeste e na Amazônia. Hoje essa população está nas grande metrópoles.

Por quê?

Porque a pobreza urbanizou-se nesses 20 anos. Um dos efeitos da pujança do nosso agronegócio foi empurrar a miséria para as cidades. Com a mecanização e a grande escala de produção, o agronegócio empurrou as famílias que viviam no nível de subsistência, de um pequeno roçado, para a periferia das grandes cidades. E a fome na periferia é muito mais complicada, porque ela não vem sozinha. É um conjunto mais complexo, incluindo questões de tráfico, banditismo. A miséria urbanizada nas grandes metrópoles é mais complexa do que a miséria rural que tínhamos nos anos 2000.

Está mais difícil resolver o problema da fome comparativamente a 20 anos atrás?

Tem esses novos problemas. Não é apenas fornecer alimentos. A gente consegue identificar as pessoas, mas os programas são mais complexos. No abastecimento, o grande tema é a disparada dos preços dos alimentos e os ultraprocessados estão mais baratos. O varejo passou por uma revolução nos últimos 20 anos, vendendo online, os supermercados reduziram o desperdício. Uma coisa é a disponibilidade de alimento que, no Brasil, é grande. Outra coisa é o acesso. As pessoas não tem acesso aos alimentos e isso é possível fazer de duas formas: aumentando a renda ou por meio de programas públicos, como banco de alimentos, restaurante popular. A minha visão é que todas essas políticas de segurança alimentar são complementares, coadjuvantes.

Como assim?

O ator principal é a geração de emprego e renda. A fome no Brasil não é a falta de alimento. Esta sobrando alimento. É a falta de poder aquisitivo. O Brasil ao lado do Peru tem o menor salário mínimo em dólar entre os vizinhos da América Latina. Realmente é um salário mínimo de miserável. E eu não estou comparando com a Europa. Se elevarmos o valor real do salário mínimo e ao mesmo tempo gerarmos emprego de melhor qualidade, com carteira assinada, esse é o caminho para sairmos da fome. Foi isso que aconteceu no primeiro mandato do governo Lula em 2003. O que fez o Brasil sair do mapa da fome foi o crescimento.

O que fez o Brasil voltar para o mapa da fome?

Juntaram-se duas coisas. Os períodos recessivos, de queda no PIB (Produto Interno Bruto), e o corte das políticas sociais mais importantes. Não só as políticas de segurança alimentar e nutricional, mas represou pagamentos de aposentadorias, benefício de prestação continuada. Isso reduziu muito a renda disponível na classe mais baixa, sem falar da informalidade do trabalho que cresceu muito na pandemia e outros agravantes sociais. Esse é o quadro que compõe a dificuldade deste momento. Podemos voltar com todos os programas de alimentação escolar, Bolsa Família, compra de alimentos da agricultura familiar, todo esse coquetel que sabemos administrar muito bem, mas se o Brasil não crescer e o salário mínimo não aumentar, a fome não acaba.

Diante da perspectiva de a taxa básica de juros se manter elevada, inibindo o crescimento, está mais difícil resolver o problema da fome hoje?

Não só está mais complicada a situação em termos quantitativos como qualitativos, mas temos um enfrentamento de uma questão que não é fácil, que é a política. Em 2003 o Brasil se unificou em torno da eleição do Lula. Ele conseguiu unificar rapidamente o País em torno da promessa de erradicar a fome. Houve uma adesão maciça. Lembro do Antoninho Trevisan, que liderou a Associação Fome Zero e dizia nos encontros de empresários: ‘hoje tem 75% do PIB nesta reunião’. Não temos isso agora, essa unanimidade, esse apoio empresarial. No passado, os sindicatos entraram nessa mobilização. Atualmente não se vê isso.

Como a política afeta esse objetivo de acabar com a fome?

Esse quadro de divisão política e social impacta muito o combate à fome, porque não é governo que acaba coma fome. Governo ajuda muito ou atrapalha muito. Acabar com a fome é uma decisão da sociedade. A sociedade precisa decidir acabar com a fome, com a miséria, com o analfabetismo.

Vai demorar mais tempo para sairmos dessa situação comparativamente a 2003?

De um lado tem o fato de que essa situação é muito mais complicada. De outro já temos uma trilha percorrida, embora o pavimento não seja novo, não esteja bem cuidado, mas nós sabemos o caminho. Há um arcabouço jurídico e institucional pronto para operar, precisa colocar lubrificante nisso. Levamos dez anos para sair do mapa da fome. Sou otimista. Nos quatro anos do governo Lula, poderemos acabar com a fome mais urgente, que mata, da população de rua, dos ianomâmis, da merenda escolar. Certamente serão menos de 65 milhões. Vão sobrar temas como os brasileiros que não fazem três refeições por dia, a questão da obesidade, igualmente importantes, que terão de ser tratados..

Como Instituto Fome Zero está contribuindo neste momento para acabar com a fome?

Em dezembro, encaminhamos ao grupo de transição do governo Lula uma síntese das principais ideias do Instituto Fome Zero. Temos sido um interlocutor constante, temos colaborado informalmente. Estamos ajudando a conseguir recursos internacionais, fontes alternativas de financiamento.

Quando e por que o Instituto Fome Zero foi criado?

Voltando ao Brasil, depois do fim do meu mandato na FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura), juntei a velha guarda do Programa Fome Zero para recolocar a discussão da questão da fome em meio à crise. A gente se identifica como novo Exército de Brancaleone. São cerca de 50 pessoas voluntárias, boa parte aposentada, provenientes de universidades e outras com experiência no setor público. Em outubro de 2020, criamos essa ONG (Organização Não Governamental) como espaço de discussão de ideias. Já produzimos site, estamos recuperando o acervo sobre contribuições dadas a agricultura familiar, segurança alimentar, combate à fome. Tivemos 167 países visitando o nosso site. Achamos importante dar a nossa contribuição neste momento como organização social, não como governo.

Entrevista por Márcia De Chiara

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