BRASÍLIA - O diretor de Planejamento e Relações Institucionais do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), Nelson Barbosa, avalia que o uso mais intenso de fundos públicos e privados pelo governo é pertinente em um cenário em que é necessário investir em mitigação de mudanças climáticas e infraestrutura social e ampliar a garantia à concessão de crédito, sobretudo aos pequenos negócios.
“O fato de os fundos garantidores terem voltado a ser permanentes (com desembolsos mais intensos e regulares), mostra que uma grande parte da política pública de crédito é prover garantia, não necessariamente o financiamento”, afirmou Barbosa ao Estadão. “A previsão de volta eu acho que foi uma correção, feita pelo governo atual, de um erro do governo anterior, que achava que a garantia só devia ser temporária.”
Barbosa, que foi ministro da Fazenda e do Planejamento no governo Dilma Rousseff (PT), refuta as críticas de especialistas em contas públicas sobre uma eventual perda de potência das regras fiscais e possíveis efeitos na inflação devido aos aportes bilionários nos fundos.
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“O volume hoje alocado nesses instrumentos administrados pelo BNDES, seja no Fundo Clima, que já existe, seja no Fiis (Fundo de Investimento em Infraestrutura Social), que ainda será estruturado, é relativamente pequeno e não compromete a eficiência da política monetária no curto prazo”, afirma o diretor.
Segundo ele, no médio e longo prazos, as medidas serão, inclusive, anti-inflacionárias. “Porque aumentam o investimento em infraestrutura social e ambiental, aumentam o PIB potencial e reduzem a volatilidade da economia brasileira, contribuindo para a redução do prêmio de risco e para o controle da inflação.”
O diretor prevê R$ 60 bilhões em potencial de aprovação do Fiis e do Fundo Clima até 2026, destaca o pagamento de dividendos volumosos do BNDES ao Tesouro Nacional em 2024 e diz que o melhor indicador para se acompanhar o impacto da política fiscal, pela ótica financeira, é a variação da dívida líquida.
Esse indicador, no entanto, foi alvo de críticas no final do governo Lula 2 e ao longo da gestão Dilma devido a algumas “manobras fiscais”, sobretudo a emissão de títulos públicos pelo Tesouro para capitalizar o BNDES e outros bancos públicos ― o que não ocorre atualmente. Esse tipo de operação gerava aumento da dívida bruta, mas tinha impacto nulo sobre a dívida líquida, ao menos em um primeiro momento.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista concedida ao Estadão.
O governo, com aval do Congresso, tem feito uso cada vez mais intenso de fundos garantidores. A crítica é de que os recursos aportados nesses fundos, muitas vezes fora das regras fiscais, acabam não retornando aos cofres do Tesouro. Como avalia esse cenário?
Os fundos garantidores, FGI (administrado pelo BNDES) e FGO (atrelado ao Banco do Brasil), foram criados no governo Lula, por ocasião da crise de 2008. Naquele momento, se detectou que, além da questão de financiamento, de liquidez, havia um problema de garantia. Não adiantava você só dar o crédito, se você não pudesse também dar uma garantia. Em momentos de crise, principalmente pequenas e médias empresas têm muita dificuldade de acessar o crédito, já que elas estão com receitas em queda e uma situação patrimonial temporariamente desfavorável. Esses fundos foram criados para serem permanentes. O governo anterior decidiu encerrar, e o governo anterior perdeu a eleição. (O governo do ex-presidente Jair Bolsonaro propôs uma PEC para extinguir 248 fundos infraconstitucionais. A proposta atingia apenas os fundos públicos, e não os privados, como é o caso dos garantidores. A PEC não avançou no Congresso).
Na pandemia de Covid-19, esses fundos garantidores foram amplamente usados…
A pertinência desses fundos foi evidenciada pela crise de covid-19. No auge da crise, o governo anterior, percebendo que um dos grandes problemas era a garantia (para o crédito), aportou R$ 20 bilhões no FGI. E, se não me engano, R$ 50 bilhões no FGO. Aquilo ajudou as pequenas e médias empresas a ter acesso ao crédito para poder atravessar a pior fase da pandemia. Não só no Brasil, no mundo inteiro fundos garantidores foram usados. O fato de os fundos garantidores terem voltado a ser permanentes (com desembolsos mais intensos e regulares), mostra que uma grande parte da política pública de crédito é prover garantia, não necessariamente o financiamento. Esses fundos têm previsão de receber receita pela prestação de garantia, de modo que eles sejam sustentáveis. Isso não é uma novidade. É uma coisa que se faz no Brasil na área de exportação há décadas com o FGE (Fundo de Garantia à Exportação). E, recentemente, tem sido feito para capital de giro via FGI e FGO. Em momentos de crise, como a gente viu na pandemia e como a gente vê agora no Rio Grande do Sul, é muito importante ter fundos de garantidores. Então, a previsão de volta eu acho que foi uma correção, feita pelo governo atual, de um erro do governo anterior, que achava que a garantia só devia ser temporária.
E no caso dos fundos públicos, cujos desembolsos ao BNDES são contabilizados como despesa financeira, sem impacto no limite de gastos e no resultado da meta fiscal? O Fundo Clima, que recebeu aporte de R$ 10 bilhões via títulos verdes do Tesouro, é um exemplo.
O Fundo Clima é uma nova fonte de financiamento, ele não gera gasto primário nem substitui gasto primário. Ele é um financiamento. Quem tomar recurso com o Fundo Clima terá que pagá-los. Gasto primário é gasto a fundo perdido, é um gasto não reembolsável. O Fundo Clima, você toma um empréstimo e você retorna o valor ao governo.
E qual o custo para o Tesouro?
O Tesouro está tomando emprestado em dólar e repassando em real, então ele fica com a variação cambial. Mas essa variação é parcialmente amortecida pelo ganho que o governo tem com as reservas internacionais. Então, é uma maneira de o governo absorver as variações do câmbio, repassando a taxa internacional para os tomadores internos para projetos específicos. É um fundo para coisas que precisam de um apoio maior, com uma taxa de juros mais favorecida. As últimas semanas mostram que a crise climática chegou, ela é urgente e precisa ser enfrentada. E os subsídios que existem nessas linhas serão mais do que pagos pelos benefícios que esses investimentos proporcionarão à economia brasileira, não só na geração de emprego e renda, mas também na preservação do meio ambiente e na diminuição de emissões.
Qual a expectativa do BNDES em relação ao tamanho do Fundo Clima?
Apesar de o Fundo Clima estar crescendo, ele não é a principal fonte de financiamento do BNDES. Ele é muito pequeno, nós estamos falando de R$ 10,6 bilhões, aportados em 2023, com um potencial, hoje previsto no PLOA (Projeto de Lei Orçamentária), de se chegar a 30 bilhões (na apresentação de resultados, o BNDES projetou R$ 32,9 bilhões em desembolsos, via Fundo Clima, entre 2023 e 2026). Para se ter uma ideia, as fontes de recursos do BNDES somam R$ 778 bilhões. O Fundo Clima é uma coisa localizada, para iniciativas localizadas, urgentes e meritórias, feito com transparência para que a sociedade saiba qual o tamanho do subsídio, que, nesse caso, é assumir a variação cambial. Se você considerar o BNDES como um todo, 80% dos desembolsos são realizados a taxas de mercado, porque a maior parte do nosso funding vem do FAT (Fundo de Amparo ao Trabalhador), que é preponderantemente remunerado pela TLP (Taxa de Longo Prazo), que nada mais é do que a taxa de 5 anos do Tesouro.
Mas o funding (financiamento) do banco via fundos deve crescer nos próximos anos, certo?
O Fundo Clima tem uma expectativa de crescimento. A gente já mapeou, em termos de demanda, só de demandas que são apresentadas ao BNDES, um potencial de aprovação, até 2026, de R$ 40 bilhões. Tem um outro fundo, que foi criado recentemente pelo Congresso, que reproduz o Fundo Clima, mas para a infraestrutura social, que é o Fiis (Fundo de Investimento em Infraestrutura Social). Estão previstos R$ 10 bilhões no PLOA, se não me engano, para financiar investimento em educação, saúde e segurança pública, também pode ser para quem ganhar PPPs (parcerias público-privada) e para estados e municípios fazerem investimentos social. Estamos falando em até R$ 40 bilhões de contratação no Fundo Clima, até 2026, e no Fiis R$ 10 bilhões no ano que vem e, se colocar mais R$ 10 bilhões (em 2026), estaremos falando de até R$ 60 bilhões. É um volume considerável, em relação ao que tinha no passado, mas um volume pequeno em relação ao total da dívida pública e do total de financiamento do BNDES. E mais importante: esses dois fundos são investimentos com altas externalidades.
Como assim?
Eles geram efeito além do seu próprio retorno. No Fiis, um dos focos é ampliar a cobertura de creches no Brasil. Se aumentar o volume de creche no Brasil, eu possibilito que as mulheres possam participar do mercado de trabalho e isso aumenta o crescimento da força de trabalho, aumenta o produto potencial e reduz a inflação no médio e longo prazos. O Fundo Clima, ao investir em adaptação e mitigação (das mudanças climáticas), vai diminuir a frequência e os danos das crises ambientais, o que, por sua vez, contribui para um crescimento maior, aumentando a produtividade e a arrecadação e contribuindo para o equilíbrio fiscal e monetário do País. É muito fácil calcular o custo desses fundos, qualquer aluno de graduação de economia sabe fazer isso. O mais difícil é você calcular o benefício, porque estamos falando de benefício em termos de PIB, emprego e redução de riscos. E isso está sendo feito de modo transparente, com avaliação de custo-benefício, que será relatado ao Congresso.
Como avalia a mudança de escopo do Fundo Nacional da Aviação Civil (Fnac), também atrelado ao BNDES, que agora será usado para socorrer empresas aéreas?
O Fnac já existe, recebe receitas das outorgas de aeroportos e ele era destinado a financiar investimentos. Então era um fundo que bancava basicamente despesas primárias. Depois de uma reavaliação, o governo decidiu que o melhor uso, na verdade, era transformá-lo em um fundo financeiro. Então, em vez de usar o recurso para pagar a despesa primária, você vai oferecer esse recurso como financiamento, e o principal volta com uma taxa de juros.
Com uma quantidade maior de recursos sendo gasta pela via financeira, que não tem impacto na meta e no limite de despesas, economistas alertam para uma perda de relevância do resultado primário como indicador da saúde das contas públicas. E afirmam que, com isso, o endividamento passa a ser o sinalizador da real situação fiscal do País. Como o sr. avalia essa crítica?
Todos os especialistas em finanças públicas, todo mundo que acompanha macroeconomia, sabe que, do ponto de vista financeiro, você mede o impacto da política fiscal pela variação da dívida líquida. Já é assim há muito tempo. A dívida líquida combina não só impacto primário, mas um eventual custo de carregamento da dívida, se tiver subsídio implícito, ganhos e perdas patrimoniais de capital por variação de reserva ou por operação de concessão ou privatização. O que eu quero dizer é o seguinte: não é novidade, o primário sempre foi uma das variáveis, não a única.
Por fim, os economistas citam um segundo ponto de atenção: o risco de perda de potência da política monetária no combate à inflação. Isso porque, com o dinheiro mais barato circulando em maior quantidade, o Banco Central pode precisar colocar a taxa básica de juros num patamar mais elevado para “compensar” esse juro subsidiado dos bancos de fomento.
O volume hoje alocado nesses instrumentos administrados pelo BNDES, seja o Fundo Clima, que já existe, seja o Fiis, que ainda será estruturado, é relativamente pequeno e não compromete a eficiência da política monetária no curto prazo. E, no médio e longo prazos, eles são medidas anti-inflacionárias, porque aumentam o investimento em infraestrutura social e ambiental, aumentam o PIB potencial e reduzem a volatilidade da economia brasileira, contribuindo para a redução do prêmio de risco e para o controle da inflação. Lembrando que a maioria dos empréstimos do BNDES é feita a taxas de mercado. Além disso, não há relação mecânica entre o crédito direcionado e a taxa de juros no Brasil. E outra coisa: o BNDES ajuda no resultado fiscal. No relatório bimestral de julho, estava previsto que o BNDES pagaria R$ 15 bilhões de dividendos ao Tesouro. No relatório que sairá hoje (a entrevista foi concedida na sexta-feira, dia 20), haverá um aumento de dividendos, com aumento da contribuição do BNDES para o resultado primário (o relatório divulgado na sexta elevou em R$ 10,1 bilhões as receitas projetadas com dividendos neste ano, mas não detalhou qual parcela se refere ao BNDES). Ou seja, o resultado do BNDES também contribui para o atingimento das metas fiscais do governo.