Caso Americanas pode levar à revisão de controles de governança, avaliam especialistas


Cultura de integridade é vista como principal fator para evitar problemas; importância da pauta ESG é reforçada

Por Luis Filipe Santos
Atualização:

O rombo bilionário nas contas das Lojas Americanas, revelado pelo então presidente da companhia Sérgio Rial em 11 de janeiro, levantou diversos questionamentos sobre os controles de governança. A empresa conta com comitê de auditoria interno, tinha os relatórios financeiros auditados também pela PwC Brasil, uma das quatro grandes firmas especializadas na área, e integrava o Novo Mercado, segmento da B3 (a Bolsa de Valores de São Paulo) com regras mais rígidas de governança. Diante das “inconsistências” contábeis, a discussão sobre esses controles se intensificou.

Rial revelou que os relatórios financeiros contabilizavam o chamado risco sacado de forma errada. Essa operação ocorre da seguinte forma: uma varejista compra produtos com seus fornecedores e, para adiantar o pagamento, pega um empréstimo bancário. O fornecedor recebe automaticamente, e o varejista preserva seu fluxo de caixa, enquanto o banco recebe o empréstimo com juros em um prazo mais longo. A prática é legalizada e comum no mercado, desde que seja contabilizada corretamente nos balanços financeiros - o que não era o caso, já que os relatórios indicavam endividamento menor do que o real.

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Com o rombo revelado, a situação da Americanas se complicou rapidamente: a empresa entrou em recuperação judicial, a dívida total chegou a R$ 43 bilhões com cerca de 16 mil credores, a B3 a excluiu de todos os índices e as ações da companhia caíram para o valor de menos R$ 1 real cada - antes, rodavam pelo patamar de R$ 10. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM), órgão governamental que regula o mercado de capitais, abriu oito procedimentos para investigar as práticas até o momento.

Procuradas, as Lojas Americanas e a B3 não responderam aos questionamentos da reportagem. A PwC Brasil informou apenas que “não comenta casos de clientes”.

Debate

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Além das questões sobre quem são os responsáveis e se foi erro ou fraude, a discussão sobre governança deve avançar. É comum que regras e regulamentações sejam aperfeiçoadas após escândalos corporativos - um dos casos mais conhecidos é da lei Sarbanes-Oxley, aprovada nos Estados Unidos em 2002, depois do caso de fraude contábil que levou a gigante do setor elétrico Enron à falência.

Contudo, ainda não se sabe quais são exatamente os pontos a serem melhorados. “Houve falhas de controle e de supervisão, mas a gente precisa entender quais foram elas e quem são os culpados para serem responsabilizados”, destaca o professor Fernando Murcia, da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA/USP). “É natural que depois de efetivamente entender tudo que aconteceu, todos os problemas, a gente busque controles e regulações para evitar que isso não ocorra novamente, que ocorra uma modernização das legislações.”

Americanas foi excluída de todos os índices da B3 após entrar em recuperação judicial Foto: WERTHER SANTANA/ESTADÃO
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“Pode ser que se comece a pedir mais informações do que se pedia antes, em busca de mais transparência para os investidores”, comenta Lígia Maura Costa, professora da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (EAESP/FGV). Uma melhora indicada por ela seria relativa ao Novo Mercado. “Talvez mudar a metodologia do índice, para excluir empresas em crise. Atualmente, não há previsão de exclusão em casos de fraude. Essa regra deve mudar”, avalia.

Contudo, mais do que apenas criar regras, é importante garantir que elas sejam cumpridas. Em teoria, as regras e instâncias já existentes hoje, como a auditoria externa, deveriam evitar problemas nos relatórios contábeis. “A questão é mais a do enforcement, o quanto essas punições podem acontecer de forma efetiva, porque o que a gente tem hoje em termos de regras cobre muitas questões”, afirma Valéria Café, diretora de vocalização do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC).

“Talvez não precise de mais regras, e sim garantir a efetividade das que já existem. Será que a transparência está sendo exercida de fato, e como pode ser garantida? Como melhorar a diligência para os investidores entenderem a empresa que estão investindo e garantir que não há nada de errado? As mudanças podem vir mais no sentido de efetividade da aplicação do que de mais regulação”, acrescenta Luiz Martha, gerente de pesquisa e conteúdo do IBGC.

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Ponto de partida

Contudo, nenhum controle será efetivo se a cultura da empresa não tiver a integridade como base. A ética é o ponto de partida para estruturar a governança e, a seguir, os controles internos que garantem que os problemas sejam detectados, informados ao comando e corrigidos. “Não tem como colocar a integridade na lei para que seja cumprida. Deve aparecer no dia a dia, na cultura”, afirma Costa.

“A Americanas precisa reforçar controles internos, reforçar o compliance. Se tivesse um compliance forte, alguém já teria informado sobre o problema antes. Agora, o que vai salvar a Americanas é ter liderança que acredita na integridade e faça valer”, recomenda a professora da FGV.

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A cobrança deve atingir também outras companhias, principalmente as do setor de varejo. “Vamos passar por uma discussão para reforçar os controles, tentar entender onde é que eles falharam para evoluir, o próprio papel da auditoria, os órgãos de supervisão, como o conselho fiscal, comitê de auditoria, conselho de administração, me parece natural que a gente tenha aprimoramentos”, projeta Murcia.

A oportunidade também existe para levar adiante uma discussão sobre o propósito da companhia. “Se é só o lucro, pode se tornar condutor de comportamentos inadequados. Como gerar valor para a sociedade e não só para acionistas e diretores?”, questiona Valéria Café.

ESG

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A pauta ESG (sigla em inglês para questões ambientais, sociais e de governança) também sofreu questionamentos após a revelação do rombo. Nas redes sociais, houve reclamações sobre a pauta ser “apenas uma sigla”. Contudo, segundo os especialistas ouvidos pelo Estadão, o caso mais reforça a importância da pauta do que a contradiz - e, assim, pode levá-la a avançar.

“Quando existe um caso desse de fraude contábil, a gente percebe ainda mais a importância da governança. O G, que estava um pouco esquecido, volta a ganhar relevância” acredita Murcia.

“O problema não é o ESG, é a cultura de falta de integridade. Precisa mudar a forma de fazer negócio das empresas, caso contrário, nada adianta dizer que é ESG quando não é. Precisa de fato aplicar as práticas de governança, ter uma diretoria que seja presente, um programa de compliance robusto e eficiente, um conselho fiscal que examine, uma auditoria que não apenas assine um balanço”, diz Costa.

“A crítica é se o discurso funciona, se está aplicado ou não. A pauta ganha mais importância e mostra como é relevante para garantir o sucesso de longo prazo. A liderança precisa tomar atitude pensando nas consequências”, corrobora Martha, gerente do IBGC.

O rombo bilionário nas contas das Lojas Americanas, revelado pelo então presidente da companhia Sérgio Rial em 11 de janeiro, levantou diversos questionamentos sobre os controles de governança. A empresa conta com comitê de auditoria interno, tinha os relatórios financeiros auditados também pela PwC Brasil, uma das quatro grandes firmas especializadas na área, e integrava o Novo Mercado, segmento da B3 (a Bolsa de Valores de São Paulo) com regras mais rígidas de governança. Diante das “inconsistências” contábeis, a discussão sobre esses controles se intensificou.

Rial revelou que os relatórios financeiros contabilizavam o chamado risco sacado de forma errada. Essa operação ocorre da seguinte forma: uma varejista compra produtos com seus fornecedores e, para adiantar o pagamento, pega um empréstimo bancário. O fornecedor recebe automaticamente, e o varejista preserva seu fluxo de caixa, enquanto o banco recebe o empréstimo com juros em um prazo mais longo. A prática é legalizada e comum no mercado, desde que seja contabilizada corretamente nos balanços financeiros - o que não era o caso, já que os relatórios indicavam endividamento menor do que o real.

Com o rombo revelado, a situação da Americanas se complicou rapidamente: a empresa entrou em recuperação judicial, a dívida total chegou a R$ 43 bilhões com cerca de 16 mil credores, a B3 a excluiu de todos os índices e as ações da companhia caíram para o valor de menos R$ 1 real cada - antes, rodavam pelo patamar de R$ 10. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM), órgão governamental que regula o mercado de capitais, abriu oito procedimentos para investigar as práticas até o momento.

Procuradas, as Lojas Americanas e a B3 não responderam aos questionamentos da reportagem. A PwC Brasil informou apenas que “não comenta casos de clientes”.

Debate

Além das questões sobre quem são os responsáveis e se foi erro ou fraude, a discussão sobre governança deve avançar. É comum que regras e regulamentações sejam aperfeiçoadas após escândalos corporativos - um dos casos mais conhecidos é da lei Sarbanes-Oxley, aprovada nos Estados Unidos em 2002, depois do caso de fraude contábil que levou a gigante do setor elétrico Enron à falência.

Contudo, ainda não se sabe quais são exatamente os pontos a serem melhorados. “Houve falhas de controle e de supervisão, mas a gente precisa entender quais foram elas e quem são os culpados para serem responsabilizados”, destaca o professor Fernando Murcia, da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA/USP). “É natural que depois de efetivamente entender tudo que aconteceu, todos os problemas, a gente busque controles e regulações para evitar que isso não ocorra novamente, que ocorra uma modernização das legislações.”

Americanas foi excluída de todos os índices da B3 após entrar em recuperação judicial Foto: WERTHER SANTANA/ESTADÃO

“Pode ser que se comece a pedir mais informações do que se pedia antes, em busca de mais transparência para os investidores”, comenta Lígia Maura Costa, professora da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (EAESP/FGV). Uma melhora indicada por ela seria relativa ao Novo Mercado. “Talvez mudar a metodologia do índice, para excluir empresas em crise. Atualmente, não há previsão de exclusão em casos de fraude. Essa regra deve mudar”, avalia.

Contudo, mais do que apenas criar regras, é importante garantir que elas sejam cumpridas. Em teoria, as regras e instâncias já existentes hoje, como a auditoria externa, deveriam evitar problemas nos relatórios contábeis. “A questão é mais a do enforcement, o quanto essas punições podem acontecer de forma efetiva, porque o que a gente tem hoje em termos de regras cobre muitas questões”, afirma Valéria Café, diretora de vocalização do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC).

“Talvez não precise de mais regras, e sim garantir a efetividade das que já existem. Será que a transparência está sendo exercida de fato, e como pode ser garantida? Como melhorar a diligência para os investidores entenderem a empresa que estão investindo e garantir que não há nada de errado? As mudanças podem vir mais no sentido de efetividade da aplicação do que de mais regulação”, acrescenta Luiz Martha, gerente de pesquisa e conteúdo do IBGC.

Ponto de partida

Contudo, nenhum controle será efetivo se a cultura da empresa não tiver a integridade como base. A ética é o ponto de partida para estruturar a governança e, a seguir, os controles internos que garantem que os problemas sejam detectados, informados ao comando e corrigidos. “Não tem como colocar a integridade na lei para que seja cumprida. Deve aparecer no dia a dia, na cultura”, afirma Costa.

“A Americanas precisa reforçar controles internos, reforçar o compliance. Se tivesse um compliance forte, alguém já teria informado sobre o problema antes. Agora, o que vai salvar a Americanas é ter liderança que acredita na integridade e faça valer”, recomenda a professora da FGV.

A cobrança deve atingir também outras companhias, principalmente as do setor de varejo. “Vamos passar por uma discussão para reforçar os controles, tentar entender onde é que eles falharam para evoluir, o próprio papel da auditoria, os órgãos de supervisão, como o conselho fiscal, comitê de auditoria, conselho de administração, me parece natural que a gente tenha aprimoramentos”, projeta Murcia.

A oportunidade também existe para levar adiante uma discussão sobre o propósito da companhia. “Se é só o lucro, pode se tornar condutor de comportamentos inadequados. Como gerar valor para a sociedade e não só para acionistas e diretores?”, questiona Valéria Café.

ESG

A pauta ESG (sigla em inglês para questões ambientais, sociais e de governança) também sofreu questionamentos após a revelação do rombo. Nas redes sociais, houve reclamações sobre a pauta ser “apenas uma sigla”. Contudo, segundo os especialistas ouvidos pelo Estadão, o caso mais reforça a importância da pauta do que a contradiz - e, assim, pode levá-la a avançar.

“Quando existe um caso desse de fraude contábil, a gente percebe ainda mais a importância da governança. O G, que estava um pouco esquecido, volta a ganhar relevância” acredita Murcia.

“O problema não é o ESG, é a cultura de falta de integridade. Precisa mudar a forma de fazer negócio das empresas, caso contrário, nada adianta dizer que é ESG quando não é. Precisa de fato aplicar as práticas de governança, ter uma diretoria que seja presente, um programa de compliance robusto e eficiente, um conselho fiscal que examine, uma auditoria que não apenas assine um balanço”, diz Costa.

“A crítica é se o discurso funciona, se está aplicado ou não. A pauta ganha mais importância e mostra como é relevante para garantir o sucesso de longo prazo. A liderança precisa tomar atitude pensando nas consequências”, corrobora Martha, gerente do IBGC.

O rombo bilionário nas contas das Lojas Americanas, revelado pelo então presidente da companhia Sérgio Rial em 11 de janeiro, levantou diversos questionamentos sobre os controles de governança. A empresa conta com comitê de auditoria interno, tinha os relatórios financeiros auditados também pela PwC Brasil, uma das quatro grandes firmas especializadas na área, e integrava o Novo Mercado, segmento da B3 (a Bolsa de Valores de São Paulo) com regras mais rígidas de governança. Diante das “inconsistências” contábeis, a discussão sobre esses controles se intensificou.

Rial revelou que os relatórios financeiros contabilizavam o chamado risco sacado de forma errada. Essa operação ocorre da seguinte forma: uma varejista compra produtos com seus fornecedores e, para adiantar o pagamento, pega um empréstimo bancário. O fornecedor recebe automaticamente, e o varejista preserva seu fluxo de caixa, enquanto o banco recebe o empréstimo com juros em um prazo mais longo. A prática é legalizada e comum no mercado, desde que seja contabilizada corretamente nos balanços financeiros - o que não era o caso, já que os relatórios indicavam endividamento menor do que o real.

Com o rombo revelado, a situação da Americanas se complicou rapidamente: a empresa entrou em recuperação judicial, a dívida total chegou a R$ 43 bilhões com cerca de 16 mil credores, a B3 a excluiu de todos os índices e as ações da companhia caíram para o valor de menos R$ 1 real cada - antes, rodavam pelo patamar de R$ 10. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM), órgão governamental que regula o mercado de capitais, abriu oito procedimentos para investigar as práticas até o momento.

Procuradas, as Lojas Americanas e a B3 não responderam aos questionamentos da reportagem. A PwC Brasil informou apenas que “não comenta casos de clientes”.

Debate

Além das questões sobre quem são os responsáveis e se foi erro ou fraude, a discussão sobre governança deve avançar. É comum que regras e regulamentações sejam aperfeiçoadas após escândalos corporativos - um dos casos mais conhecidos é da lei Sarbanes-Oxley, aprovada nos Estados Unidos em 2002, depois do caso de fraude contábil que levou a gigante do setor elétrico Enron à falência.

Contudo, ainda não se sabe quais são exatamente os pontos a serem melhorados. “Houve falhas de controle e de supervisão, mas a gente precisa entender quais foram elas e quem são os culpados para serem responsabilizados”, destaca o professor Fernando Murcia, da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA/USP). “É natural que depois de efetivamente entender tudo que aconteceu, todos os problemas, a gente busque controles e regulações para evitar que isso não ocorra novamente, que ocorra uma modernização das legislações.”

Americanas foi excluída de todos os índices da B3 após entrar em recuperação judicial Foto: WERTHER SANTANA/ESTADÃO

“Pode ser que se comece a pedir mais informações do que se pedia antes, em busca de mais transparência para os investidores”, comenta Lígia Maura Costa, professora da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (EAESP/FGV). Uma melhora indicada por ela seria relativa ao Novo Mercado. “Talvez mudar a metodologia do índice, para excluir empresas em crise. Atualmente, não há previsão de exclusão em casos de fraude. Essa regra deve mudar”, avalia.

Contudo, mais do que apenas criar regras, é importante garantir que elas sejam cumpridas. Em teoria, as regras e instâncias já existentes hoje, como a auditoria externa, deveriam evitar problemas nos relatórios contábeis. “A questão é mais a do enforcement, o quanto essas punições podem acontecer de forma efetiva, porque o que a gente tem hoje em termos de regras cobre muitas questões”, afirma Valéria Café, diretora de vocalização do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC).

“Talvez não precise de mais regras, e sim garantir a efetividade das que já existem. Será que a transparência está sendo exercida de fato, e como pode ser garantida? Como melhorar a diligência para os investidores entenderem a empresa que estão investindo e garantir que não há nada de errado? As mudanças podem vir mais no sentido de efetividade da aplicação do que de mais regulação”, acrescenta Luiz Martha, gerente de pesquisa e conteúdo do IBGC.

Ponto de partida

Contudo, nenhum controle será efetivo se a cultura da empresa não tiver a integridade como base. A ética é o ponto de partida para estruturar a governança e, a seguir, os controles internos que garantem que os problemas sejam detectados, informados ao comando e corrigidos. “Não tem como colocar a integridade na lei para que seja cumprida. Deve aparecer no dia a dia, na cultura”, afirma Costa.

“A Americanas precisa reforçar controles internos, reforçar o compliance. Se tivesse um compliance forte, alguém já teria informado sobre o problema antes. Agora, o que vai salvar a Americanas é ter liderança que acredita na integridade e faça valer”, recomenda a professora da FGV.

A cobrança deve atingir também outras companhias, principalmente as do setor de varejo. “Vamos passar por uma discussão para reforçar os controles, tentar entender onde é que eles falharam para evoluir, o próprio papel da auditoria, os órgãos de supervisão, como o conselho fiscal, comitê de auditoria, conselho de administração, me parece natural que a gente tenha aprimoramentos”, projeta Murcia.

A oportunidade também existe para levar adiante uma discussão sobre o propósito da companhia. “Se é só o lucro, pode se tornar condutor de comportamentos inadequados. Como gerar valor para a sociedade e não só para acionistas e diretores?”, questiona Valéria Café.

ESG

A pauta ESG (sigla em inglês para questões ambientais, sociais e de governança) também sofreu questionamentos após a revelação do rombo. Nas redes sociais, houve reclamações sobre a pauta ser “apenas uma sigla”. Contudo, segundo os especialistas ouvidos pelo Estadão, o caso mais reforça a importância da pauta do que a contradiz - e, assim, pode levá-la a avançar.

“Quando existe um caso desse de fraude contábil, a gente percebe ainda mais a importância da governança. O G, que estava um pouco esquecido, volta a ganhar relevância” acredita Murcia.

“O problema não é o ESG, é a cultura de falta de integridade. Precisa mudar a forma de fazer negócio das empresas, caso contrário, nada adianta dizer que é ESG quando não é. Precisa de fato aplicar as práticas de governança, ter uma diretoria que seja presente, um programa de compliance robusto e eficiente, um conselho fiscal que examine, uma auditoria que não apenas assine um balanço”, diz Costa.

“A crítica é se o discurso funciona, se está aplicado ou não. A pauta ganha mais importância e mostra como é relevante para garantir o sucesso de longo prazo. A liderança precisa tomar atitude pensando nas consequências”, corrobora Martha, gerente do IBGC.

O rombo bilionário nas contas das Lojas Americanas, revelado pelo então presidente da companhia Sérgio Rial em 11 de janeiro, levantou diversos questionamentos sobre os controles de governança. A empresa conta com comitê de auditoria interno, tinha os relatórios financeiros auditados também pela PwC Brasil, uma das quatro grandes firmas especializadas na área, e integrava o Novo Mercado, segmento da B3 (a Bolsa de Valores de São Paulo) com regras mais rígidas de governança. Diante das “inconsistências” contábeis, a discussão sobre esses controles se intensificou.

Rial revelou que os relatórios financeiros contabilizavam o chamado risco sacado de forma errada. Essa operação ocorre da seguinte forma: uma varejista compra produtos com seus fornecedores e, para adiantar o pagamento, pega um empréstimo bancário. O fornecedor recebe automaticamente, e o varejista preserva seu fluxo de caixa, enquanto o banco recebe o empréstimo com juros em um prazo mais longo. A prática é legalizada e comum no mercado, desde que seja contabilizada corretamente nos balanços financeiros - o que não era o caso, já que os relatórios indicavam endividamento menor do que o real.

Com o rombo revelado, a situação da Americanas se complicou rapidamente: a empresa entrou em recuperação judicial, a dívida total chegou a R$ 43 bilhões com cerca de 16 mil credores, a B3 a excluiu de todos os índices e as ações da companhia caíram para o valor de menos R$ 1 real cada - antes, rodavam pelo patamar de R$ 10. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM), órgão governamental que regula o mercado de capitais, abriu oito procedimentos para investigar as práticas até o momento.

Procuradas, as Lojas Americanas e a B3 não responderam aos questionamentos da reportagem. A PwC Brasil informou apenas que “não comenta casos de clientes”.

Debate

Além das questões sobre quem são os responsáveis e se foi erro ou fraude, a discussão sobre governança deve avançar. É comum que regras e regulamentações sejam aperfeiçoadas após escândalos corporativos - um dos casos mais conhecidos é da lei Sarbanes-Oxley, aprovada nos Estados Unidos em 2002, depois do caso de fraude contábil que levou a gigante do setor elétrico Enron à falência.

Contudo, ainda não se sabe quais são exatamente os pontos a serem melhorados. “Houve falhas de controle e de supervisão, mas a gente precisa entender quais foram elas e quem são os culpados para serem responsabilizados”, destaca o professor Fernando Murcia, da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA/USP). “É natural que depois de efetivamente entender tudo que aconteceu, todos os problemas, a gente busque controles e regulações para evitar que isso não ocorra novamente, que ocorra uma modernização das legislações.”

Americanas foi excluída de todos os índices da B3 após entrar em recuperação judicial Foto: WERTHER SANTANA/ESTADÃO

“Pode ser que se comece a pedir mais informações do que se pedia antes, em busca de mais transparência para os investidores”, comenta Lígia Maura Costa, professora da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (EAESP/FGV). Uma melhora indicada por ela seria relativa ao Novo Mercado. “Talvez mudar a metodologia do índice, para excluir empresas em crise. Atualmente, não há previsão de exclusão em casos de fraude. Essa regra deve mudar”, avalia.

Contudo, mais do que apenas criar regras, é importante garantir que elas sejam cumpridas. Em teoria, as regras e instâncias já existentes hoje, como a auditoria externa, deveriam evitar problemas nos relatórios contábeis. “A questão é mais a do enforcement, o quanto essas punições podem acontecer de forma efetiva, porque o que a gente tem hoje em termos de regras cobre muitas questões”, afirma Valéria Café, diretora de vocalização do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC).

“Talvez não precise de mais regras, e sim garantir a efetividade das que já existem. Será que a transparência está sendo exercida de fato, e como pode ser garantida? Como melhorar a diligência para os investidores entenderem a empresa que estão investindo e garantir que não há nada de errado? As mudanças podem vir mais no sentido de efetividade da aplicação do que de mais regulação”, acrescenta Luiz Martha, gerente de pesquisa e conteúdo do IBGC.

Ponto de partida

Contudo, nenhum controle será efetivo se a cultura da empresa não tiver a integridade como base. A ética é o ponto de partida para estruturar a governança e, a seguir, os controles internos que garantem que os problemas sejam detectados, informados ao comando e corrigidos. “Não tem como colocar a integridade na lei para que seja cumprida. Deve aparecer no dia a dia, na cultura”, afirma Costa.

“A Americanas precisa reforçar controles internos, reforçar o compliance. Se tivesse um compliance forte, alguém já teria informado sobre o problema antes. Agora, o que vai salvar a Americanas é ter liderança que acredita na integridade e faça valer”, recomenda a professora da FGV.

A cobrança deve atingir também outras companhias, principalmente as do setor de varejo. “Vamos passar por uma discussão para reforçar os controles, tentar entender onde é que eles falharam para evoluir, o próprio papel da auditoria, os órgãos de supervisão, como o conselho fiscal, comitê de auditoria, conselho de administração, me parece natural que a gente tenha aprimoramentos”, projeta Murcia.

A oportunidade também existe para levar adiante uma discussão sobre o propósito da companhia. “Se é só o lucro, pode se tornar condutor de comportamentos inadequados. Como gerar valor para a sociedade e não só para acionistas e diretores?”, questiona Valéria Café.

ESG

A pauta ESG (sigla em inglês para questões ambientais, sociais e de governança) também sofreu questionamentos após a revelação do rombo. Nas redes sociais, houve reclamações sobre a pauta ser “apenas uma sigla”. Contudo, segundo os especialistas ouvidos pelo Estadão, o caso mais reforça a importância da pauta do que a contradiz - e, assim, pode levá-la a avançar.

“Quando existe um caso desse de fraude contábil, a gente percebe ainda mais a importância da governança. O G, que estava um pouco esquecido, volta a ganhar relevância” acredita Murcia.

“O problema não é o ESG, é a cultura de falta de integridade. Precisa mudar a forma de fazer negócio das empresas, caso contrário, nada adianta dizer que é ESG quando não é. Precisa de fato aplicar as práticas de governança, ter uma diretoria que seja presente, um programa de compliance robusto e eficiente, um conselho fiscal que examine, uma auditoria que não apenas assine um balanço”, diz Costa.

“A crítica é se o discurso funciona, se está aplicado ou não. A pauta ganha mais importância e mostra como é relevante para garantir o sucesso de longo prazo. A liderança precisa tomar atitude pensando nas consequências”, corrobora Martha, gerente do IBGC.

O rombo bilionário nas contas das Lojas Americanas, revelado pelo então presidente da companhia Sérgio Rial em 11 de janeiro, levantou diversos questionamentos sobre os controles de governança. A empresa conta com comitê de auditoria interno, tinha os relatórios financeiros auditados também pela PwC Brasil, uma das quatro grandes firmas especializadas na área, e integrava o Novo Mercado, segmento da B3 (a Bolsa de Valores de São Paulo) com regras mais rígidas de governança. Diante das “inconsistências” contábeis, a discussão sobre esses controles se intensificou.

Rial revelou que os relatórios financeiros contabilizavam o chamado risco sacado de forma errada. Essa operação ocorre da seguinte forma: uma varejista compra produtos com seus fornecedores e, para adiantar o pagamento, pega um empréstimo bancário. O fornecedor recebe automaticamente, e o varejista preserva seu fluxo de caixa, enquanto o banco recebe o empréstimo com juros em um prazo mais longo. A prática é legalizada e comum no mercado, desde que seja contabilizada corretamente nos balanços financeiros - o que não era o caso, já que os relatórios indicavam endividamento menor do que o real.

Com o rombo revelado, a situação da Americanas se complicou rapidamente: a empresa entrou em recuperação judicial, a dívida total chegou a R$ 43 bilhões com cerca de 16 mil credores, a B3 a excluiu de todos os índices e as ações da companhia caíram para o valor de menos R$ 1 real cada - antes, rodavam pelo patamar de R$ 10. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM), órgão governamental que regula o mercado de capitais, abriu oito procedimentos para investigar as práticas até o momento.

Procuradas, as Lojas Americanas e a B3 não responderam aos questionamentos da reportagem. A PwC Brasil informou apenas que “não comenta casos de clientes”.

Debate

Além das questões sobre quem são os responsáveis e se foi erro ou fraude, a discussão sobre governança deve avançar. É comum que regras e regulamentações sejam aperfeiçoadas após escândalos corporativos - um dos casos mais conhecidos é da lei Sarbanes-Oxley, aprovada nos Estados Unidos em 2002, depois do caso de fraude contábil que levou a gigante do setor elétrico Enron à falência.

Contudo, ainda não se sabe quais são exatamente os pontos a serem melhorados. “Houve falhas de controle e de supervisão, mas a gente precisa entender quais foram elas e quem são os culpados para serem responsabilizados”, destaca o professor Fernando Murcia, da Faculdade de Economia e Administração da Universidade de São Paulo (FEA/USP). “É natural que depois de efetivamente entender tudo que aconteceu, todos os problemas, a gente busque controles e regulações para evitar que isso não ocorra novamente, que ocorra uma modernização das legislações.”

Americanas foi excluída de todos os índices da B3 após entrar em recuperação judicial Foto: WERTHER SANTANA/ESTADÃO

“Pode ser que se comece a pedir mais informações do que se pedia antes, em busca de mais transparência para os investidores”, comenta Lígia Maura Costa, professora da Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (EAESP/FGV). Uma melhora indicada por ela seria relativa ao Novo Mercado. “Talvez mudar a metodologia do índice, para excluir empresas em crise. Atualmente, não há previsão de exclusão em casos de fraude. Essa regra deve mudar”, avalia.

Contudo, mais do que apenas criar regras, é importante garantir que elas sejam cumpridas. Em teoria, as regras e instâncias já existentes hoje, como a auditoria externa, deveriam evitar problemas nos relatórios contábeis. “A questão é mais a do enforcement, o quanto essas punições podem acontecer de forma efetiva, porque o que a gente tem hoje em termos de regras cobre muitas questões”, afirma Valéria Café, diretora de vocalização do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC).

“Talvez não precise de mais regras, e sim garantir a efetividade das que já existem. Será que a transparência está sendo exercida de fato, e como pode ser garantida? Como melhorar a diligência para os investidores entenderem a empresa que estão investindo e garantir que não há nada de errado? As mudanças podem vir mais no sentido de efetividade da aplicação do que de mais regulação”, acrescenta Luiz Martha, gerente de pesquisa e conteúdo do IBGC.

Ponto de partida

Contudo, nenhum controle será efetivo se a cultura da empresa não tiver a integridade como base. A ética é o ponto de partida para estruturar a governança e, a seguir, os controles internos que garantem que os problemas sejam detectados, informados ao comando e corrigidos. “Não tem como colocar a integridade na lei para que seja cumprida. Deve aparecer no dia a dia, na cultura”, afirma Costa.

“A Americanas precisa reforçar controles internos, reforçar o compliance. Se tivesse um compliance forte, alguém já teria informado sobre o problema antes. Agora, o que vai salvar a Americanas é ter liderança que acredita na integridade e faça valer”, recomenda a professora da FGV.

A cobrança deve atingir também outras companhias, principalmente as do setor de varejo. “Vamos passar por uma discussão para reforçar os controles, tentar entender onde é que eles falharam para evoluir, o próprio papel da auditoria, os órgãos de supervisão, como o conselho fiscal, comitê de auditoria, conselho de administração, me parece natural que a gente tenha aprimoramentos”, projeta Murcia.

A oportunidade também existe para levar adiante uma discussão sobre o propósito da companhia. “Se é só o lucro, pode se tornar condutor de comportamentos inadequados. Como gerar valor para a sociedade e não só para acionistas e diretores?”, questiona Valéria Café.

ESG

A pauta ESG (sigla em inglês para questões ambientais, sociais e de governança) também sofreu questionamentos após a revelação do rombo. Nas redes sociais, houve reclamações sobre a pauta ser “apenas uma sigla”. Contudo, segundo os especialistas ouvidos pelo Estadão, o caso mais reforça a importância da pauta do que a contradiz - e, assim, pode levá-la a avançar.

“Quando existe um caso desse de fraude contábil, a gente percebe ainda mais a importância da governança. O G, que estava um pouco esquecido, volta a ganhar relevância” acredita Murcia.

“O problema não é o ESG, é a cultura de falta de integridade. Precisa mudar a forma de fazer negócio das empresas, caso contrário, nada adianta dizer que é ESG quando não é. Precisa de fato aplicar as práticas de governança, ter uma diretoria que seja presente, um programa de compliance robusto e eficiente, um conselho fiscal que examine, uma auditoria que não apenas assine um balanço”, diz Costa.

“A crítica é se o discurso funciona, se está aplicado ou não. A pauta ganha mais importância e mostra como é relevante para garantir o sucesso de longo prazo. A liderança precisa tomar atitude pensando nas consequências”, corrobora Martha, gerente do IBGC.

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