RIO - O Tribunal de Contas da União (TCU) concluiu um trabalho inédito de auditoria sobre a atuação da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), deixando 14 recomendações ao órgão regulador do mercado de capitais brasileiro. Como antecipou o Broadcast, o relatório, de 263 páginas, conclui que a autarquia deve supervisionar mais de perto as estatais federais e a BNDESPar, braço de participações do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), coibir de forma mais efetiva a prática de insider trading (uso de informação privilegiada) e aperfeiçoar a supervisão de fundos de investimento, entre outros pontos.
No acórdão, do dia 2 de dezembro, o TCU dá um prazo de 120 dias para a CVM informar sobre as providências adotadas e os resultados alcançados. Procurada, a CVM afirmou que tem ciência das recomendações e que, "dentro de sua esfera de competência, analisará os pontos indicados e avaliará providências cabíveis". Os órgãos mantêm relacionamento institucional, com acordo de cooperação técnica para intercâmbio de informações, conhecimentos e bases de dados de interesse comum.
Realizada no período de agosto de 2018 a novembro de 2019, a auditoria foi motivada por sinais de ineficiência de intervenção da CVM em companhias como a BNDESPar, a Eletrobrás e a Petrobrás, diz o relatório. O TCU menciona prejuízos a acionistas, à BNDESPar e à União, além das condenações de executivos a partir das denúncias de corrupção feitas pela Operação Lava Jato nas estatais de energia e petróleo.
"Prejuízos aos minoritários em decorrência de fraudes enfraquecem a confiança no mercado de capitais e afugentam os investidores", diz a introdução do relatório. O TCU sugere a assinatura de um convênio de cooperação com a CVM para a implementação de ações de controle conjunto sobre as sociedades de economia mista de capital aberto.
O tribunal recomenda ainda que sejam realizadas ações de supervisão específicas pela CVM às operações de reorganização societária que tenham o BNDESPar como sócio com participação relevante, assim como emissões privadas, aumentos de capital por subscrição privada e transações com partes relacionadas com participação da empresa. A corte de contas frisa o papel de grande destaque do BNDESPar no mercado de capitais entre 2008 e 2015, período da chamada política de campeões nacionais.
O relatório menciona a atuação da CVM em operações "com possíveis prejuízos aos minoritários", como a fusão entre JBS e Bertin e a reestruturação da operadora de telefonia Oi. Para o TCU, a supervisão da CVM tem tido foco excessivo na prestação de informações pelas empresas e pouca efetividade no enfrentamento de questões relacionadas à transferência de valor econômico entre integrantes do bloco de controle.
A proposta final é que a CVM se debruce mais sobre operações capazes de afetar os direitos dos minoritários do ponto de vista das relações de troca - como fusão, incorporação, reorganização societária, transações com partes relacionadas e conversões de ações.
Sobre a negociação de ativos com uso de informação privilegiada (insider trading), prática que também é crime, o TCU diz que a atuação da CVM pode ser mais efetiva na supervisão, fiscalização e sanção. "Um número excessivo (...) de absolvições face às condenações em casos de 'insider trading' pode passar ao mercado a impressão de que a relação custo/benefício na utilização de informações privilegiadas compensa o relativamente baixo risco de ser pego", aponta a auditoria.
O documento fala em "omissão ou insuficiência" do regulador por haver fiscalizações dispersas, com pouco resultado prático. O TCU avalia que as supervisões deveriam ter como critérios o porte dos agentes e a materialidade das operações e critica o fato de parte da fiscalização ficar a cargo do autorregulador - a BSM Supervisão de Mercados, da bolsa - que, segundo o texto, "padece de conflito de interesse".
Recomendações também para a Economia
O órgão de controle também faz duas recomendações ao Ministério da Economia, ao qual a CVM é vinculada. A primeira é que, como supervisor da autarquia e do Banco Central, coordene ações para mitigar riscos de supervisão sobre a indústria de fundos de investimento. O relatório aponta que três quartos dos ativos que formavam as carteiras dos 19.165 fundos de investimento ao fim de 2019 - equivalentes a R$ 3,6 trilhões - não eram valores mobiliários sob supervisão da CVM. É o caso dos títulos públicos federais e operações compromissadas com lastro nesses títulos. Para o TCU, a única forma de resolver o problema é fazer a coordenação regulatória entre o BC e a CVM.
A segunda menção ao Ministério da Economia é que a pasta avalie indicar para a diretoria da CVM servidores das superintendências do órgão regulador. A ideia é ter uma composição mais equilibrada do colegiado sob os aspectos da formação técnica e político-estratégica. Hoje ele é constituído por cinco advogados, em sua maioria vindos de bancas privadas.
"Entende-se pertinente recomendar que parte da diretoria seja proveniente das superintendências, de modo a mitigar o viés pró-regulado que pode ocorrer caso todos os diretores sejam provenientes de instituições reguladas pela CVM, e aumentar participação de pessoas com foco na proteção dos investidores minoritários", recomenda o relatório.
Conflito de interesses
O documento afirma que há "indícios de potencial conflito de interesse dos diretores e ex-diretores da CVM", uma vez que é substancial o número de processos administrativos na autarquia em que eles atuam "antes, durante e depois" dos seus mandatos. E indica que seria recomendável avaliar a possibilidade de fiscalizar a existência de conflitos que possam comprometer a independência e imparcialidade dos julgamentos da CVM.
O ministro relator do caso no TCU, Raimundo Carreiro, destaca em seu voto que a CVM tem "empenhado esforços no constante aprimoramento de seus instrumentos e metodologias de controle do mercado de capitais" e que as recomendações do órgão de controle pretendem colaborar com o aperfeiçoamento da gestão pública.
Para especialistas em governança ouvidos pelo Estadão/Broadcast, os alertas do TCU podem atuar como um catalisador de melhorias na gestão da autarquia num momento em que milhares de novos investidores chegam a bolsa brasileira. “Estamos falando de um órgão regulador que mexe com a economia popular. Hoje há mais brasileiros correndo esse risco de mercado, o que torna ainda mais importante a tutela por parte do regulador”, diz o ex-diretor da Previ, Renato Chaves, para quem a ineficiência no combate ao insider trading é um tiro no pé da credibilidade do mercado.
O diretor do Instituto Brasileiro de Relações com Investidores (IBRI), André Vasconcellos, avalia que ao listar eventuais fragilidades relacionadas à capacidade da CVM de punir a realização de transações com insider e averiguar se os fatos relevantes são divulgados satisfatoriamente pelas companhias abertas, o TCU contribui para o aprimoramento do papel da autarquia e para o fortalecimento do mercado de capitais brasileiro.