BRASÍLIA - O governo Bolsonaro cortou em 59% o orçamento de 2023 da gratuidade do programa Farmácia Popular, que atende mais de 21 milhões de brasileiros, para garantir mais recursos para o orçamento secreto – esquema revelado pelo Estadão de transferência de verbas a parlamentares sem critérios de transparência.
As despesas previstas para o custeio do atendimento de saúde da população indígena também sofreram uma “tesourada” de 59%.
Na contramão do corte desses programas, as emendas de relator incluídas no orçamento da saúde cresceram 22%. As emendas parlamentares individuais e de bancada impositivas (aquelas que o governo é obrigado a executar) aumentam 13%.
O levantamento foi feito pelo assessor legislativo do Senado, Bruno Moretti, especialista em orçamento da saúde. Os dados completos serão publicados em Nota de Política Econômica do Grupo de Economia do Setor Público da Universidade Federal do Rio de Janeiro (URFJ).
A parcela gratuita da Farmácia Popular é voltada para medicamentos do tratamento da asma, hipertensão e diabetes. Em 2022, as despesas com a gratuidade do programa Farmácia Popular prevista no Orçamento aprovado pelo Congresso foi de R$ 2,04 bilhões. No projeto de Orçamento de 2023, o governo Bolsonaro previu R$ R$ 842 milhões, um corte de R$ 1,2 bilhão.
Os gastos para a saúde indígena foram cortados em R$ 870 milhões, sendo previstos em R$ 610 milhões em 2023 ante R$ 1,48 bilhão em 2022. No ano que vem, a previsão de gasto com o custeio da saúde da população indígena de todo o País estimada no projeto é de R$ 610 milhões.
Também sofreram cortes programas de educação e formação em saúde (56%), que financia residência médica e multiprofissional em saúde, e de formação e profissionais para atenção primária (51%). São aqueles médicos e profissionais dos programas Mais Médicos e Médicos pelo Brasil, que atendem nas unidades de saúde.
Como antecipou o Estadão na semana passada, o orçamento da saúde em 2023 foi capturado pelo orçamento secreto. O projeto de orçamento foi enviado com a previsão de R$ 10,4 bilhões de emendas de relator – desse total, R$ 9,92 bilhões sendo usado para compor o piso de saúde, o limite mínimo que o governo é obrigado a gastar em ações públicas na área.
“Não há dúvida: o que a equipe econômica fez foi reduzir todas essas despesas para incorporar as emendas. Para caber as emendas RP-9 (de relator), estão tirando medicamentos da Farmácia Popular”, diz Moretti.
Segundo ele, os gastos com gratuidade dos medicamentos da Farmácia Popular contam no cálculo do piso de saúde, mas não recebem interesse dos parlamentares nas emendas do orçamento secreto.
“O parlamentar não consegue chegar lá na ponta e dizer que o remédio que o paciente pegou de graça é fruto da emenda dele”, ressalta Moretti. A maior parte das emendas vai para incremento de custeio de unidades básicas e hospitais das suas bases eleitorais sem que haja uma visão estratégica das reais necessidades do sistema. “O dinheiro vai parar na mão do parlamentar que decide”, diz.
‘Economia burra’
Especialistas questionam o corte nas despesas com medicamentos gratuitos previsto no Orçamento de 2023. Professor da Escola de Administração de Empresas da Fundação Getúlio Vargas (FGV), Adriano Massuda avalia que trata-se de uma economia “burra”, pois o governo acaba sendo obrigado a gastar mais com as consequências do agravamento dessas doenças.
Segundo Massuda, que é membro da FGV-Saúde, uma pesquisa demonstrou que o investimento no programa Farmácia Popular teve impacto na melhoria da situação de saúde das pessoas e diminuição de internações, ou seja: as pessoas começaram a tratar os problemas e não precisaram mais internar. “É um gasto inteligente do sistema de saúde”, diz o pesquisador da FGV.
Na avaliação dele, a piora do financiamento do sistema de saúde tem acontecido junto com a desorganização de políticas nacionais muito bem-sucedidas, como o programa da Farmácia Popular. O resultado é que as pessoas estão tendo mais dificuldade de acessar serviços antes oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS).
“Publicamos uma pesquisa que demonstrou que os brasileiros estão gastando mais dinheiro do próprio bolso para a compra de medicamentos que antes eram acessados nas unidades de saúde do SUS ou pela farmácia popular”, destaca Massuda.
Para ele, o corte de 59% da gratuidade dos medicamentos agrava ainda mais esse problema. Massuda diz que esse quadro atrapalha o desenvolvimento da economia. O dinheiro que a pessoa poderia estar usando para se alimentar, para lazer e outros gastos está sendo direcionado para medicamentos.
Alcance
O programa Farmácia Popular atende mais de 21 milhões de brasileiros em quase 3,5 mil municípios, por meio de mais de 28 mil farmácias conveniadas, segundo dados do Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos (Sindusfarma) referentes a 2021.
Para o Sindusfarma, o impacto de um eventual corte de verbas seria “muito negativo”, pois, segundo a entidade, estudos demonstram que o programa tem ajudado uma grande parcela da população, especialmente famílias de baixa renda, a seguir corretamente tratamentos de saúde, principalmente de doenças crônicas e de larga incidência.
“Ao limitar o agravamento dessas doenças, o programa tem contribuído para diminuir de forma consistente o número de internações hospitalares no SUS e na rede privada, com ganhos sanitários e financeiros para a população e o governo”, disse o sindicato em nota.
Em nota, o Ministério da Economia afirmou que os cortes são resultado da “enorme rigidez alocativa a que a União está subordinada, agravada pela necessidade de alocação de recursos para reserva de emendas de relator”, afirma, em referência ao orçamento secreto, esquema revelado pelo Estadão de transferência de verbas a parlamentares sem critérios transparentes.
O ministério disse ainda que “embora a situação gere uma alocação de recurso inicialmente aquém da vontade do governo federal, a discussão em torno do valor final a ser destinado no próximo ano se dará no Congresso Nacional, o ambiente legítimo e, com certeza, sensível aos anseios e às escolhas da sociedade em torno das políticas públicas consideradas mais relevantes”, diz a nota.
Procurado, o Ministério da Saúde não se manifestou.