Governo recorre a fundos para turbinar gastos e crédito barato sem esbarrar em travas do arcabouço


Prática tem aval do Congresso e é vista com ressalvas por economistas, que apontam perda de potência das regras fiscais e possíveis efeitos na inflação; Fazenda e Planejamento não responderam e BNDES defendeu o uso dos fundos, ressaltando que aportes são focalizados em áreas essenciais

Por Bianca Lima e Luiz Guilherme Gerbelli
Atualização:

BRASÍLIA e SÃO PAULO - O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem ampliado o uso de fundos públicos e privados para turbinar a concessão de crédito barato e elevar os gastos sem esbarrar nas limitações impostas pelo arcabouço fiscal. A prática geralmente é viabilizada por meio da alteração ou aprovação de leis e, portanto, conta com o aval do Congresso.

“Como há um limite para a despesa primária (aquela que banca gastos correntes do Executivo), o governo está bombando a despesa financeira por meio do uso de fundos”, afirma o pesquisador do Insper Marcos Mendes. “A consequência é que o resultado primário vai perdendo significado. Eu até posso fazer um resultado significativo, mas a dívida pública seguirá crescendo, por conta dos gastos que estão ‘vazando’ nesta via financeira”, diz o economista.

Com ampliação do uso de fundos, economistas alertam para perda de transparência orçamentária. Foto: Fábio Motta/Estadão
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Na última semana, três iniciativas engrossaram essa lista. Uma delas foi a aprovação, pela Câmara dos Deputados, de projeto de lei que autoriza a União a aumentar em até R$ 4,5 bilhões a sua participação no Fundo de Garantia de Operações (FGO). Trata-se de fundo privado, atrelado ao Banco do Brasil, que garante eventuais inadimplências em crédito concedido a setores específicos, como pequenos negócios. A legislação aprovada pelos deputados foi motivada pela calamidade no Rio Grande do Sul.

Com essa garantia, o risco dos bancos fica menor e a taxa de juros, consequentemente, cai. Foi um mecanismo usado com sucesso durante a pandemia de covid-19, mas que, via de regra, acaba se prolongando indefinidamente.

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No período da pandemia, os aportes no FGO foram feitos fora das regras fiscais, com o compromisso de que os valores retornariam aos cofres do Tesouro Nacional após determinado período ― exatamente como está acontecendo agora com as enchentes no Sul do País. Mas os prazos foram sendo renovados pelo Congresso e o dinheiro, no fim, jamais retornou.

Em vez disso, passou a ser usado para garantir outras operações de crédito sem relação com situações emergenciais ou imprevisíveis. Dessa forma, apontam os economistas, essas cifras acabam tendo um único impacto no limite de gastos e na meta de resultado primário e, depois, ficam “circulando” fora do Orçamento, com menos transparência (leia mais abaixo e veja gráfico explicativo).

O texto aprovado pelos deputados também autoriza o governo federal a usar até R$ 20 bilhões do superávit financeiro do Fundo Social como fonte de recurso para crédito direcionado à mitigação das mudanças climáticas. É o mesmo fundo que foi utilizado pelo governo para propor uma triangulação de recursos e, assim, conseguir bancar a ampliação do programa Vale Gás por fora do Orçamento.

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Ainda na semana passada, houve a sanção, pelo presidente Lula, do projeto que altera a Lei Geral do Turismo e permite que o Fundo Nacional da Aviação Civil (Fnac) seja usado para conceder crédito às companhias aéreas. O governo planeja usar R$ 5 bilhões para socorrer as empresas do setor, que amargam prejuízos e acumulam dívidas desde a covid-19.

Fundo dará garantia a crédito de R$ 5 bilhões às companhias aéreas, que amargam dívidas e prejuízos.  Foto: Werther Santana/Estadao

O texto permite, ainda, que o Ministério dos Portos e Aeroportos utilize o fundo para subsidiar a compra de querosene de aviação (QAV) para rotas de aéreas na Amazônia Legal.

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Já no Senado Federal, os parlamentares chancelaram projeto que institui o Programa Acredita, o qual prevê microcrédito a empreendedores do Cadastro Único ― também com garantia do FGO ― e institui o chamado Eco Invest Brasil no âmbito do Fundo Clima. Isso abrirá caminho para que o Fundo Clima viabilize instrumentos de proteção cambial a investidores estrangeiros que queiram aportar recursos em projetos de transformação ecológica.

“Uma das principais máximas, quando falamos de Orçamento público, é o princípio de unicidade e da universalidade. Tudo no Orçamento, nada fora do Orçamento”, alerta João Pedro Leme, analista da consultoria Tendências. “Todas as ações do governo, fontes de financiamentos, receitas e despesas precisam ser efetivamente colocadas e contabilizadas, até por uma questão de transparência”, reforça Leme.

Procurados, os ministérios da Fazenda e do Planejamento e Orçamento não se manifestaram. A Finep também não enviou resposta à demanda da reportagem. O Banco do Brasil afirmou que não comenta o assunto.

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Entenda o caminho do dinheiro

No caso dos fundos públicos, que integram o Orçamento, há três formas principais de o governo aportar dinheiro: receita primária (valor arrecadado por meio de tributos, por exemplo), remuneração do próprio fundo (uma vez que os valores parados rendem juros) e endividamento (como a emissão de títulos por parte do Tesouro Nacional).

Uma vez no fundo, esse dinheiro muitas vezes é gasto como uma despesa financeira, sem ser contabilizada no resultado primário - saldo entre receitas e despesas (sem contar os juros da dívida), que é usado para verificar se o governo cumpriu ou não a meta fiscal. Isso ocorre quando os valores são transferidos para bancos ou agências públicas, como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep).

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Há, no entanto, impacto na dívida pública. No caso da dívida bruta do setor público, o indicador saltou de 71,38% do Produto Interno Bruto (PIB), em janeiro de 2023, para 78,48% do PIB em julho deste ano.

Já no caso dos fundos privados, que executam as despesas fora do Orçamento e incluem os fundos garantidores de crédito, os mecanismos de aporte mais usados são despesa primária, remuneração própria e transferências de outros fundos privados. Neste caso, quando os valores saem dos cofres do Tesouro, isso é contabilizado como despesa primária, ou seja, com impacto na meta.

O alerta dos economistas, no entanto, é de que esses aportes sensibilizam o resultado primário apenas na transferência inicial, e depois parte do dinheiro acaba sendo usada para garantir outros empréstimos, atrelados a outros programas do governo, sem esbarrar nas travas do arcabouço fiscal.

Desembolsos do BNDES e da Finep

O uso mais intenso dos fundos públicos se reflete no volume de recursos desembolsados pelo BNDES e pela Finep. Em 2023, as liberações do BNDES voltaram a crescer e chegaram a 1,1% do PIB. Neste ano, há uma nova previsão de alta: o banco estima que deve alcançar o patamar de 1,3% do PIB. Na Finep, os recursos somaram quase R$ 13,4 bilhões em 2023, quase o dobro dos R$ 7,5 bilhões computados em 2022.

Em administrações anteriores do PT, o BNDES foi amplamente usado para turbinar o desempenho da economia brasileira. Numa política batizada de “campeãs nacionais”, o banco dava crédito subsidiado a grandes companhias. Em 2010, último ano do segundo mandato de Lula, os desembolsos da instituição atingiram o pico de 4% do PIB.

O mecanismo usado na ocasião, porém, era diferente e envolvia aportes diretos do Tesouro Nacional no banco de fomento, o que não tem ocorrido atualmente. Além disso, os montantes desembolsados hoje estão em patamar bem mais reduzido e com uma parcela consideravelmente menor de subsídios. Ainda assim, as sinalizações acendem uma luz amarela, na avaliação de especialistas.

“A direção é ruim. Tem um debate sobre a velocidade com que essa deterioração (fiscal da União) vai continuar; mas, claramente, a direção se assemelha à que a gente viu lá atrás, e que acabou desembocando na crise de 2015 e 2016″, afirma Gabriel Leal de Barros, economista-chefe da gestora ARX Investimentos.

Em entrevista ao Estadão, o diretor de Planejamento e Relações Institucionais do BNDES, Nelson Barbosa, avaliou que o uso mais intenso de fundos públicos e privados pelo governo é pertinente em um cenário em que é necessário investir em mitigação de mudanças climáticas e infraestrutura social e ampliar a garantia à concessão de crédito, sobretudo aos pequenos negócios (leia a entrevista completa).

Barbosa também afirmou que os valores são pequenos comparativamente aos desembolsos totais do banco e que todas as operações são feitas com avaliação de custo-benefício e prestação de contas.

Em nota enviada após a publicação da reportagem, a Associação Brasileira de Desenvolvimento (ABDE) afirmou que os fundos garantidores configuram uma despesa suis generis , “pois o recurso aplicado pelo governo permanece no fundo, rendendo a taxas de mercado, e só é efetivamente gasto em caso de inadimplência do tomador final”.

Para a entidade, a extensão da aplicação dos recursos públicos nos fundos garantidores não caracteriza ampliação de gasto público, “mas sim possibilita a alavancagem do gasto privado”.

Sobre a devolução dos recursos aos cofres do Tesouro em maior ou menor prazo, a ABDE avalia que a decisão “deve ser tomada com base em critérios de efetividade para o cumprimento do principal mandato de um governo, que é o de melhorar a vida de sua população e ampará-la em momentos de crise”.

A injeção de bilhões de reais na economia via fundos contrasta com a política desempenhada no governo anterior, do ex-presidente Jair Bolsonaro, que se situava no outro extremo. À época, os valores disponíveis nos fundos costumavam ficar “parados” e serviam de colchão de segurança em caso de necessidade de bloqueio do Orçamento.

Em 2019, a equipe do então ministro da Economia, Paulo Guedes, chegou a desenhar uma proposta de emenda à Constituição (PEC) prevendo a extinção de 248 fundos infraconstitucionais. Na ocasião, eles somavam R$ 220 bilhões, montante que seria utilizado para abater os juros da dívida pública.

Selic menos potente

O impulso ao crédito barato leva a um segundo ponto de atenção: o risco de perda de potência da política monetária no combate à inflação. Com o dinheiro mais barato circulando em maior quantidade, o Banco Central pode precisar colocar a taxa básica de juros (Selic) num patamar mais elevado para “compensar” esse juro mais baixo.

“À medida que se aumenta o crédito subsidiado e vinculado a determinadas operações, você diminui a potência da política monetária”, afirma Mendes, do Insper. “Para uma redução da inflação, você precisa de um aumento maior da taxa.”

Na quarta-feira, 18, o Comitê de Política Monetária (Copom) elevou a Selic em 0,25 ponto percentual, para 10,75% ao ano. A alta ocorreu porque o BC tem visto uma desancoragem das expectativas de inflação, que se afastaram da meta de 3%.

BRASÍLIA e SÃO PAULO - O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem ampliado o uso de fundos públicos e privados para turbinar a concessão de crédito barato e elevar os gastos sem esbarrar nas limitações impostas pelo arcabouço fiscal. A prática geralmente é viabilizada por meio da alteração ou aprovação de leis e, portanto, conta com o aval do Congresso.

“Como há um limite para a despesa primária (aquela que banca gastos correntes do Executivo), o governo está bombando a despesa financeira por meio do uso de fundos”, afirma o pesquisador do Insper Marcos Mendes. “A consequência é que o resultado primário vai perdendo significado. Eu até posso fazer um resultado significativo, mas a dívida pública seguirá crescendo, por conta dos gastos que estão ‘vazando’ nesta via financeira”, diz o economista.

Com ampliação do uso de fundos, economistas alertam para perda de transparência orçamentária. Foto: Fábio Motta/Estadão

Na última semana, três iniciativas engrossaram essa lista. Uma delas foi a aprovação, pela Câmara dos Deputados, de projeto de lei que autoriza a União a aumentar em até R$ 4,5 bilhões a sua participação no Fundo de Garantia de Operações (FGO). Trata-se de fundo privado, atrelado ao Banco do Brasil, que garante eventuais inadimplências em crédito concedido a setores específicos, como pequenos negócios. A legislação aprovada pelos deputados foi motivada pela calamidade no Rio Grande do Sul.

Com essa garantia, o risco dos bancos fica menor e a taxa de juros, consequentemente, cai. Foi um mecanismo usado com sucesso durante a pandemia de covid-19, mas que, via de regra, acaba se prolongando indefinidamente.

No período da pandemia, os aportes no FGO foram feitos fora das regras fiscais, com o compromisso de que os valores retornariam aos cofres do Tesouro Nacional após determinado período ― exatamente como está acontecendo agora com as enchentes no Sul do País. Mas os prazos foram sendo renovados pelo Congresso e o dinheiro, no fim, jamais retornou.

Em vez disso, passou a ser usado para garantir outras operações de crédito sem relação com situações emergenciais ou imprevisíveis. Dessa forma, apontam os economistas, essas cifras acabam tendo um único impacto no limite de gastos e na meta de resultado primário e, depois, ficam “circulando” fora do Orçamento, com menos transparência (leia mais abaixo e veja gráfico explicativo).

O texto aprovado pelos deputados também autoriza o governo federal a usar até R$ 20 bilhões do superávit financeiro do Fundo Social como fonte de recurso para crédito direcionado à mitigação das mudanças climáticas. É o mesmo fundo que foi utilizado pelo governo para propor uma triangulação de recursos e, assim, conseguir bancar a ampliação do programa Vale Gás por fora do Orçamento.

Ainda na semana passada, houve a sanção, pelo presidente Lula, do projeto que altera a Lei Geral do Turismo e permite que o Fundo Nacional da Aviação Civil (Fnac) seja usado para conceder crédito às companhias aéreas. O governo planeja usar R$ 5 bilhões para socorrer as empresas do setor, que amargam prejuízos e acumulam dívidas desde a covid-19.

Fundo dará garantia a crédito de R$ 5 bilhões às companhias aéreas, que amargam dívidas e prejuízos.  Foto: Werther Santana/Estadao

O texto permite, ainda, que o Ministério dos Portos e Aeroportos utilize o fundo para subsidiar a compra de querosene de aviação (QAV) para rotas de aéreas na Amazônia Legal.

Já no Senado Federal, os parlamentares chancelaram projeto que institui o Programa Acredita, o qual prevê microcrédito a empreendedores do Cadastro Único ― também com garantia do FGO ― e institui o chamado Eco Invest Brasil no âmbito do Fundo Clima. Isso abrirá caminho para que o Fundo Clima viabilize instrumentos de proteção cambial a investidores estrangeiros que queiram aportar recursos em projetos de transformação ecológica.

“Uma das principais máximas, quando falamos de Orçamento público, é o princípio de unicidade e da universalidade. Tudo no Orçamento, nada fora do Orçamento”, alerta João Pedro Leme, analista da consultoria Tendências. “Todas as ações do governo, fontes de financiamentos, receitas e despesas precisam ser efetivamente colocadas e contabilizadas, até por uma questão de transparência”, reforça Leme.

Procurados, os ministérios da Fazenda e do Planejamento e Orçamento não se manifestaram. A Finep também não enviou resposta à demanda da reportagem. O Banco do Brasil afirmou que não comenta o assunto.

Entenda o caminho do dinheiro

No caso dos fundos públicos, que integram o Orçamento, há três formas principais de o governo aportar dinheiro: receita primária (valor arrecadado por meio de tributos, por exemplo), remuneração do próprio fundo (uma vez que os valores parados rendem juros) e endividamento (como a emissão de títulos por parte do Tesouro Nacional).

Uma vez no fundo, esse dinheiro muitas vezes é gasto como uma despesa financeira, sem ser contabilizada no resultado primário - saldo entre receitas e despesas (sem contar os juros da dívida), que é usado para verificar se o governo cumpriu ou não a meta fiscal. Isso ocorre quando os valores são transferidos para bancos ou agências públicas, como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep).

Há, no entanto, impacto na dívida pública. No caso da dívida bruta do setor público, o indicador saltou de 71,38% do Produto Interno Bruto (PIB), em janeiro de 2023, para 78,48% do PIB em julho deste ano.

Já no caso dos fundos privados, que executam as despesas fora do Orçamento e incluem os fundos garantidores de crédito, os mecanismos de aporte mais usados são despesa primária, remuneração própria e transferências de outros fundos privados. Neste caso, quando os valores saem dos cofres do Tesouro, isso é contabilizado como despesa primária, ou seja, com impacto na meta.

O alerta dos economistas, no entanto, é de que esses aportes sensibilizam o resultado primário apenas na transferência inicial, e depois parte do dinheiro acaba sendo usada para garantir outros empréstimos, atrelados a outros programas do governo, sem esbarrar nas travas do arcabouço fiscal.

Desembolsos do BNDES e da Finep

O uso mais intenso dos fundos públicos se reflete no volume de recursos desembolsados pelo BNDES e pela Finep. Em 2023, as liberações do BNDES voltaram a crescer e chegaram a 1,1% do PIB. Neste ano, há uma nova previsão de alta: o banco estima que deve alcançar o patamar de 1,3% do PIB. Na Finep, os recursos somaram quase R$ 13,4 bilhões em 2023, quase o dobro dos R$ 7,5 bilhões computados em 2022.

Em administrações anteriores do PT, o BNDES foi amplamente usado para turbinar o desempenho da economia brasileira. Numa política batizada de “campeãs nacionais”, o banco dava crédito subsidiado a grandes companhias. Em 2010, último ano do segundo mandato de Lula, os desembolsos da instituição atingiram o pico de 4% do PIB.

O mecanismo usado na ocasião, porém, era diferente e envolvia aportes diretos do Tesouro Nacional no banco de fomento, o que não tem ocorrido atualmente. Além disso, os montantes desembolsados hoje estão em patamar bem mais reduzido e com uma parcela consideravelmente menor de subsídios. Ainda assim, as sinalizações acendem uma luz amarela, na avaliação de especialistas.

“A direção é ruim. Tem um debate sobre a velocidade com que essa deterioração (fiscal da União) vai continuar; mas, claramente, a direção se assemelha à que a gente viu lá atrás, e que acabou desembocando na crise de 2015 e 2016″, afirma Gabriel Leal de Barros, economista-chefe da gestora ARX Investimentos.

Em entrevista ao Estadão, o diretor de Planejamento e Relações Institucionais do BNDES, Nelson Barbosa, avaliou que o uso mais intenso de fundos públicos e privados pelo governo é pertinente em um cenário em que é necessário investir em mitigação de mudanças climáticas e infraestrutura social e ampliar a garantia à concessão de crédito, sobretudo aos pequenos negócios (leia a entrevista completa).

Barbosa também afirmou que os valores são pequenos comparativamente aos desembolsos totais do banco e que todas as operações são feitas com avaliação de custo-benefício e prestação de contas.

Em nota enviada após a publicação da reportagem, a Associação Brasileira de Desenvolvimento (ABDE) afirmou que os fundos garantidores configuram uma despesa suis generis , “pois o recurso aplicado pelo governo permanece no fundo, rendendo a taxas de mercado, e só é efetivamente gasto em caso de inadimplência do tomador final”.

Para a entidade, a extensão da aplicação dos recursos públicos nos fundos garantidores não caracteriza ampliação de gasto público, “mas sim possibilita a alavancagem do gasto privado”.

Sobre a devolução dos recursos aos cofres do Tesouro em maior ou menor prazo, a ABDE avalia que a decisão “deve ser tomada com base em critérios de efetividade para o cumprimento do principal mandato de um governo, que é o de melhorar a vida de sua população e ampará-la em momentos de crise”.

A injeção de bilhões de reais na economia via fundos contrasta com a política desempenhada no governo anterior, do ex-presidente Jair Bolsonaro, que se situava no outro extremo. À época, os valores disponíveis nos fundos costumavam ficar “parados” e serviam de colchão de segurança em caso de necessidade de bloqueio do Orçamento.

Em 2019, a equipe do então ministro da Economia, Paulo Guedes, chegou a desenhar uma proposta de emenda à Constituição (PEC) prevendo a extinção de 248 fundos infraconstitucionais. Na ocasião, eles somavam R$ 220 bilhões, montante que seria utilizado para abater os juros da dívida pública.

Selic menos potente

O impulso ao crédito barato leva a um segundo ponto de atenção: o risco de perda de potência da política monetária no combate à inflação. Com o dinheiro mais barato circulando em maior quantidade, o Banco Central pode precisar colocar a taxa básica de juros (Selic) num patamar mais elevado para “compensar” esse juro mais baixo.

“À medida que se aumenta o crédito subsidiado e vinculado a determinadas operações, você diminui a potência da política monetária”, afirma Mendes, do Insper. “Para uma redução da inflação, você precisa de um aumento maior da taxa.”

Na quarta-feira, 18, o Comitê de Política Monetária (Copom) elevou a Selic em 0,25 ponto percentual, para 10,75% ao ano. A alta ocorreu porque o BC tem visto uma desancoragem das expectativas de inflação, que se afastaram da meta de 3%.

BRASÍLIA e SÃO PAULO - O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem ampliado o uso de fundos públicos e privados para turbinar a concessão de crédito barato e elevar os gastos sem esbarrar nas limitações impostas pelo arcabouço fiscal. A prática geralmente é viabilizada por meio da alteração ou aprovação de leis e, portanto, conta com o aval do Congresso.

“Como há um limite para a despesa primária (aquela que banca gastos correntes do Executivo), o governo está bombando a despesa financeira por meio do uso de fundos”, afirma o pesquisador do Insper Marcos Mendes. “A consequência é que o resultado primário vai perdendo significado. Eu até posso fazer um resultado significativo, mas a dívida pública seguirá crescendo, por conta dos gastos que estão ‘vazando’ nesta via financeira”, diz o economista.

Com ampliação do uso de fundos, economistas alertam para perda de transparência orçamentária. Foto: Fábio Motta/Estadão

Na última semana, três iniciativas engrossaram essa lista. Uma delas foi a aprovação, pela Câmara dos Deputados, de projeto de lei que autoriza a União a aumentar em até R$ 4,5 bilhões a sua participação no Fundo de Garantia de Operações (FGO). Trata-se de fundo privado, atrelado ao Banco do Brasil, que garante eventuais inadimplências em crédito concedido a setores específicos, como pequenos negócios. A legislação aprovada pelos deputados foi motivada pela calamidade no Rio Grande do Sul.

Com essa garantia, o risco dos bancos fica menor e a taxa de juros, consequentemente, cai. Foi um mecanismo usado com sucesso durante a pandemia de covid-19, mas que, via de regra, acaba se prolongando indefinidamente.

No período da pandemia, os aportes no FGO foram feitos fora das regras fiscais, com o compromisso de que os valores retornariam aos cofres do Tesouro Nacional após determinado período ― exatamente como está acontecendo agora com as enchentes no Sul do País. Mas os prazos foram sendo renovados pelo Congresso e o dinheiro, no fim, jamais retornou.

Em vez disso, passou a ser usado para garantir outras operações de crédito sem relação com situações emergenciais ou imprevisíveis. Dessa forma, apontam os economistas, essas cifras acabam tendo um único impacto no limite de gastos e na meta de resultado primário e, depois, ficam “circulando” fora do Orçamento, com menos transparência (leia mais abaixo e veja gráfico explicativo).

O texto aprovado pelos deputados também autoriza o governo federal a usar até R$ 20 bilhões do superávit financeiro do Fundo Social como fonte de recurso para crédito direcionado à mitigação das mudanças climáticas. É o mesmo fundo que foi utilizado pelo governo para propor uma triangulação de recursos e, assim, conseguir bancar a ampliação do programa Vale Gás por fora do Orçamento.

Ainda na semana passada, houve a sanção, pelo presidente Lula, do projeto que altera a Lei Geral do Turismo e permite que o Fundo Nacional da Aviação Civil (Fnac) seja usado para conceder crédito às companhias aéreas. O governo planeja usar R$ 5 bilhões para socorrer as empresas do setor, que amargam prejuízos e acumulam dívidas desde a covid-19.

Fundo dará garantia a crédito de R$ 5 bilhões às companhias aéreas, que amargam dívidas e prejuízos.  Foto: Werther Santana/Estadao

O texto permite, ainda, que o Ministério dos Portos e Aeroportos utilize o fundo para subsidiar a compra de querosene de aviação (QAV) para rotas de aéreas na Amazônia Legal.

Já no Senado Federal, os parlamentares chancelaram projeto que institui o Programa Acredita, o qual prevê microcrédito a empreendedores do Cadastro Único ― também com garantia do FGO ― e institui o chamado Eco Invest Brasil no âmbito do Fundo Clima. Isso abrirá caminho para que o Fundo Clima viabilize instrumentos de proteção cambial a investidores estrangeiros que queiram aportar recursos em projetos de transformação ecológica.

“Uma das principais máximas, quando falamos de Orçamento público, é o princípio de unicidade e da universalidade. Tudo no Orçamento, nada fora do Orçamento”, alerta João Pedro Leme, analista da consultoria Tendências. “Todas as ações do governo, fontes de financiamentos, receitas e despesas precisam ser efetivamente colocadas e contabilizadas, até por uma questão de transparência”, reforça Leme.

Procurados, os ministérios da Fazenda e do Planejamento e Orçamento não se manifestaram. A Finep também não enviou resposta à demanda da reportagem. O Banco do Brasil afirmou que não comenta o assunto.

Entenda o caminho do dinheiro

No caso dos fundos públicos, que integram o Orçamento, há três formas principais de o governo aportar dinheiro: receita primária (valor arrecadado por meio de tributos, por exemplo), remuneração do próprio fundo (uma vez que os valores parados rendem juros) e endividamento (como a emissão de títulos por parte do Tesouro Nacional).

Uma vez no fundo, esse dinheiro muitas vezes é gasto como uma despesa financeira, sem ser contabilizada no resultado primário - saldo entre receitas e despesas (sem contar os juros da dívida), que é usado para verificar se o governo cumpriu ou não a meta fiscal. Isso ocorre quando os valores são transferidos para bancos ou agências públicas, como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep).

Há, no entanto, impacto na dívida pública. No caso da dívida bruta do setor público, o indicador saltou de 71,38% do Produto Interno Bruto (PIB), em janeiro de 2023, para 78,48% do PIB em julho deste ano.

Já no caso dos fundos privados, que executam as despesas fora do Orçamento e incluem os fundos garantidores de crédito, os mecanismos de aporte mais usados são despesa primária, remuneração própria e transferências de outros fundos privados. Neste caso, quando os valores saem dos cofres do Tesouro, isso é contabilizado como despesa primária, ou seja, com impacto na meta.

O alerta dos economistas, no entanto, é de que esses aportes sensibilizam o resultado primário apenas na transferência inicial, e depois parte do dinheiro acaba sendo usada para garantir outros empréstimos, atrelados a outros programas do governo, sem esbarrar nas travas do arcabouço fiscal.

Desembolsos do BNDES e da Finep

O uso mais intenso dos fundos públicos se reflete no volume de recursos desembolsados pelo BNDES e pela Finep. Em 2023, as liberações do BNDES voltaram a crescer e chegaram a 1,1% do PIB. Neste ano, há uma nova previsão de alta: o banco estima que deve alcançar o patamar de 1,3% do PIB. Na Finep, os recursos somaram quase R$ 13,4 bilhões em 2023, quase o dobro dos R$ 7,5 bilhões computados em 2022.

Em administrações anteriores do PT, o BNDES foi amplamente usado para turbinar o desempenho da economia brasileira. Numa política batizada de “campeãs nacionais”, o banco dava crédito subsidiado a grandes companhias. Em 2010, último ano do segundo mandato de Lula, os desembolsos da instituição atingiram o pico de 4% do PIB.

O mecanismo usado na ocasião, porém, era diferente e envolvia aportes diretos do Tesouro Nacional no banco de fomento, o que não tem ocorrido atualmente. Além disso, os montantes desembolsados hoje estão em patamar bem mais reduzido e com uma parcela consideravelmente menor de subsídios. Ainda assim, as sinalizações acendem uma luz amarela, na avaliação de especialistas.

“A direção é ruim. Tem um debate sobre a velocidade com que essa deterioração (fiscal da União) vai continuar; mas, claramente, a direção se assemelha à que a gente viu lá atrás, e que acabou desembocando na crise de 2015 e 2016″, afirma Gabriel Leal de Barros, economista-chefe da gestora ARX Investimentos.

Em entrevista ao Estadão, o diretor de Planejamento e Relações Institucionais do BNDES, Nelson Barbosa, avaliou que o uso mais intenso de fundos públicos e privados pelo governo é pertinente em um cenário em que é necessário investir em mitigação de mudanças climáticas e infraestrutura social e ampliar a garantia à concessão de crédito, sobretudo aos pequenos negócios (leia a entrevista completa).

Barbosa também afirmou que os valores são pequenos comparativamente aos desembolsos totais do banco e que todas as operações são feitas com avaliação de custo-benefício e prestação de contas.

Em nota enviada após a publicação da reportagem, a Associação Brasileira de Desenvolvimento (ABDE) afirmou que os fundos garantidores configuram uma despesa suis generis , “pois o recurso aplicado pelo governo permanece no fundo, rendendo a taxas de mercado, e só é efetivamente gasto em caso de inadimplência do tomador final”.

Para a entidade, a extensão da aplicação dos recursos públicos nos fundos garantidores não caracteriza ampliação de gasto público, “mas sim possibilita a alavancagem do gasto privado”.

Sobre a devolução dos recursos aos cofres do Tesouro em maior ou menor prazo, a ABDE avalia que a decisão “deve ser tomada com base em critérios de efetividade para o cumprimento do principal mandato de um governo, que é o de melhorar a vida de sua população e ampará-la em momentos de crise”.

A injeção de bilhões de reais na economia via fundos contrasta com a política desempenhada no governo anterior, do ex-presidente Jair Bolsonaro, que se situava no outro extremo. À época, os valores disponíveis nos fundos costumavam ficar “parados” e serviam de colchão de segurança em caso de necessidade de bloqueio do Orçamento.

Em 2019, a equipe do então ministro da Economia, Paulo Guedes, chegou a desenhar uma proposta de emenda à Constituição (PEC) prevendo a extinção de 248 fundos infraconstitucionais. Na ocasião, eles somavam R$ 220 bilhões, montante que seria utilizado para abater os juros da dívida pública.

Selic menos potente

O impulso ao crédito barato leva a um segundo ponto de atenção: o risco de perda de potência da política monetária no combate à inflação. Com o dinheiro mais barato circulando em maior quantidade, o Banco Central pode precisar colocar a taxa básica de juros (Selic) num patamar mais elevado para “compensar” esse juro mais baixo.

“À medida que se aumenta o crédito subsidiado e vinculado a determinadas operações, você diminui a potência da política monetária”, afirma Mendes, do Insper. “Para uma redução da inflação, você precisa de um aumento maior da taxa.”

Na quarta-feira, 18, o Comitê de Política Monetária (Copom) elevou a Selic em 0,25 ponto percentual, para 10,75% ao ano. A alta ocorreu porque o BC tem visto uma desancoragem das expectativas de inflação, que se afastaram da meta de 3%.

BRASÍLIA e SÃO PAULO - O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem ampliado o uso de fundos públicos e privados para turbinar a concessão de crédito barato e elevar os gastos sem esbarrar nas limitações impostas pelo arcabouço fiscal. A prática geralmente é viabilizada por meio da alteração ou aprovação de leis e, portanto, conta com o aval do Congresso.

“Como há um limite para a despesa primária (aquela que banca gastos correntes do Executivo), o governo está bombando a despesa financeira por meio do uso de fundos”, afirma o pesquisador do Insper Marcos Mendes. “A consequência é que o resultado primário vai perdendo significado. Eu até posso fazer um resultado significativo, mas a dívida pública seguirá crescendo, por conta dos gastos que estão ‘vazando’ nesta via financeira”, diz o economista.

Com ampliação do uso de fundos, economistas alertam para perda de transparência orçamentária. Foto: Fábio Motta/Estadão

Na última semana, três iniciativas engrossaram essa lista. Uma delas foi a aprovação, pela Câmara dos Deputados, de projeto de lei que autoriza a União a aumentar em até R$ 4,5 bilhões a sua participação no Fundo de Garantia de Operações (FGO). Trata-se de fundo privado, atrelado ao Banco do Brasil, que garante eventuais inadimplências em crédito concedido a setores específicos, como pequenos negócios. A legislação aprovada pelos deputados foi motivada pela calamidade no Rio Grande do Sul.

Com essa garantia, o risco dos bancos fica menor e a taxa de juros, consequentemente, cai. Foi um mecanismo usado com sucesso durante a pandemia de covid-19, mas que, via de regra, acaba se prolongando indefinidamente.

No período da pandemia, os aportes no FGO foram feitos fora das regras fiscais, com o compromisso de que os valores retornariam aos cofres do Tesouro Nacional após determinado período ― exatamente como está acontecendo agora com as enchentes no Sul do País. Mas os prazos foram sendo renovados pelo Congresso e o dinheiro, no fim, jamais retornou.

Em vez disso, passou a ser usado para garantir outras operações de crédito sem relação com situações emergenciais ou imprevisíveis. Dessa forma, apontam os economistas, essas cifras acabam tendo um único impacto no limite de gastos e na meta de resultado primário e, depois, ficam “circulando” fora do Orçamento, com menos transparência (leia mais abaixo e veja gráfico explicativo).

O texto aprovado pelos deputados também autoriza o governo federal a usar até R$ 20 bilhões do superávit financeiro do Fundo Social como fonte de recurso para crédito direcionado à mitigação das mudanças climáticas. É o mesmo fundo que foi utilizado pelo governo para propor uma triangulação de recursos e, assim, conseguir bancar a ampliação do programa Vale Gás por fora do Orçamento.

Ainda na semana passada, houve a sanção, pelo presidente Lula, do projeto que altera a Lei Geral do Turismo e permite que o Fundo Nacional da Aviação Civil (Fnac) seja usado para conceder crédito às companhias aéreas. O governo planeja usar R$ 5 bilhões para socorrer as empresas do setor, que amargam prejuízos e acumulam dívidas desde a covid-19.

Fundo dará garantia a crédito de R$ 5 bilhões às companhias aéreas, que amargam dívidas e prejuízos.  Foto: Werther Santana/Estadao

O texto permite, ainda, que o Ministério dos Portos e Aeroportos utilize o fundo para subsidiar a compra de querosene de aviação (QAV) para rotas de aéreas na Amazônia Legal.

Já no Senado Federal, os parlamentares chancelaram projeto que institui o Programa Acredita, o qual prevê microcrédito a empreendedores do Cadastro Único ― também com garantia do FGO ― e institui o chamado Eco Invest Brasil no âmbito do Fundo Clima. Isso abrirá caminho para que o Fundo Clima viabilize instrumentos de proteção cambial a investidores estrangeiros que queiram aportar recursos em projetos de transformação ecológica.

“Uma das principais máximas, quando falamos de Orçamento público, é o princípio de unicidade e da universalidade. Tudo no Orçamento, nada fora do Orçamento”, alerta João Pedro Leme, analista da consultoria Tendências. “Todas as ações do governo, fontes de financiamentos, receitas e despesas precisam ser efetivamente colocadas e contabilizadas, até por uma questão de transparência”, reforça Leme.

Procurados, os ministérios da Fazenda e do Planejamento e Orçamento não se manifestaram. A Finep também não enviou resposta à demanda da reportagem. O Banco do Brasil afirmou que não comenta o assunto.

Entenda o caminho do dinheiro

No caso dos fundos públicos, que integram o Orçamento, há três formas principais de o governo aportar dinheiro: receita primária (valor arrecadado por meio de tributos, por exemplo), remuneração do próprio fundo (uma vez que os valores parados rendem juros) e endividamento (como a emissão de títulos por parte do Tesouro Nacional).

Uma vez no fundo, esse dinheiro muitas vezes é gasto como uma despesa financeira, sem ser contabilizada no resultado primário - saldo entre receitas e despesas (sem contar os juros da dívida), que é usado para verificar se o governo cumpriu ou não a meta fiscal. Isso ocorre quando os valores são transferidos para bancos ou agências públicas, como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep).

Há, no entanto, impacto na dívida pública. No caso da dívida bruta do setor público, o indicador saltou de 71,38% do Produto Interno Bruto (PIB), em janeiro de 2023, para 78,48% do PIB em julho deste ano.

Já no caso dos fundos privados, que executam as despesas fora do Orçamento e incluem os fundos garantidores de crédito, os mecanismos de aporte mais usados são despesa primária, remuneração própria e transferências de outros fundos privados. Neste caso, quando os valores saem dos cofres do Tesouro, isso é contabilizado como despesa primária, ou seja, com impacto na meta.

O alerta dos economistas, no entanto, é de que esses aportes sensibilizam o resultado primário apenas na transferência inicial, e depois parte do dinheiro acaba sendo usada para garantir outros empréstimos, atrelados a outros programas do governo, sem esbarrar nas travas do arcabouço fiscal.

Desembolsos do BNDES e da Finep

O uso mais intenso dos fundos públicos se reflete no volume de recursos desembolsados pelo BNDES e pela Finep. Em 2023, as liberações do BNDES voltaram a crescer e chegaram a 1,1% do PIB. Neste ano, há uma nova previsão de alta: o banco estima que deve alcançar o patamar de 1,3% do PIB. Na Finep, os recursos somaram quase R$ 13,4 bilhões em 2023, quase o dobro dos R$ 7,5 bilhões computados em 2022.

Em administrações anteriores do PT, o BNDES foi amplamente usado para turbinar o desempenho da economia brasileira. Numa política batizada de “campeãs nacionais”, o banco dava crédito subsidiado a grandes companhias. Em 2010, último ano do segundo mandato de Lula, os desembolsos da instituição atingiram o pico de 4% do PIB.

O mecanismo usado na ocasião, porém, era diferente e envolvia aportes diretos do Tesouro Nacional no banco de fomento, o que não tem ocorrido atualmente. Além disso, os montantes desembolsados hoje estão em patamar bem mais reduzido e com uma parcela consideravelmente menor de subsídios. Ainda assim, as sinalizações acendem uma luz amarela, na avaliação de especialistas.

“A direção é ruim. Tem um debate sobre a velocidade com que essa deterioração (fiscal da União) vai continuar; mas, claramente, a direção se assemelha à que a gente viu lá atrás, e que acabou desembocando na crise de 2015 e 2016″, afirma Gabriel Leal de Barros, economista-chefe da gestora ARX Investimentos.

Em entrevista ao Estadão, o diretor de Planejamento e Relações Institucionais do BNDES, Nelson Barbosa, avaliou que o uso mais intenso de fundos públicos e privados pelo governo é pertinente em um cenário em que é necessário investir em mitigação de mudanças climáticas e infraestrutura social e ampliar a garantia à concessão de crédito, sobretudo aos pequenos negócios (leia a entrevista completa).

Barbosa também afirmou que os valores são pequenos comparativamente aos desembolsos totais do banco e que todas as operações são feitas com avaliação de custo-benefício e prestação de contas.

Em nota enviada após a publicação da reportagem, a Associação Brasileira de Desenvolvimento (ABDE) afirmou que os fundos garantidores configuram uma despesa suis generis , “pois o recurso aplicado pelo governo permanece no fundo, rendendo a taxas de mercado, e só é efetivamente gasto em caso de inadimplência do tomador final”.

Para a entidade, a extensão da aplicação dos recursos públicos nos fundos garantidores não caracteriza ampliação de gasto público, “mas sim possibilita a alavancagem do gasto privado”.

Sobre a devolução dos recursos aos cofres do Tesouro em maior ou menor prazo, a ABDE avalia que a decisão “deve ser tomada com base em critérios de efetividade para o cumprimento do principal mandato de um governo, que é o de melhorar a vida de sua população e ampará-la em momentos de crise”.

A injeção de bilhões de reais na economia via fundos contrasta com a política desempenhada no governo anterior, do ex-presidente Jair Bolsonaro, que se situava no outro extremo. À época, os valores disponíveis nos fundos costumavam ficar “parados” e serviam de colchão de segurança em caso de necessidade de bloqueio do Orçamento.

Em 2019, a equipe do então ministro da Economia, Paulo Guedes, chegou a desenhar uma proposta de emenda à Constituição (PEC) prevendo a extinção de 248 fundos infraconstitucionais. Na ocasião, eles somavam R$ 220 bilhões, montante que seria utilizado para abater os juros da dívida pública.

Selic menos potente

O impulso ao crédito barato leva a um segundo ponto de atenção: o risco de perda de potência da política monetária no combate à inflação. Com o dinheiro mais barato circulando em maior quantidade, o Banco Central pode precisar colocar a taxa básica de juros (Selic) num patamar mais elevado para “compensar” esse juro mais baixo.

“À medida que se aumenta o crédito subsidiado e vinculado a determinadas operações, você diminui a potência da política monetária”, afirma Mendes, do Insper. “Para uma redução da inflação, você precisa de um aumento maior da taxa.”

Na quarta-feira, 18, o Comitê de Política Monetária (Copom) elevou a Selic em 0,25 ponto percentual, para 10,75% ao ano. A alta ocorreu porque o BC tem visto uma desancoragem das expectativas de inflação, que se afastaram da meta de 3%.

BRASÍLIA e SÃO PAULO - O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tem ampliado o uso de fundos públicos e privados para turbinar a concessão de crédito barato e elevar os gastos sem esbarrar nas limitações impostas pelo arcabouço fiscal. A prática geralmente é viabilizada por meio da alteração ou aprovação de leis e, portanto, conta com o aval do Congresso.

“Como há um limite para a despesa primária (aquela que banca gastos correntes do Executivo), o governo está bombando a despesa financeira por meio do uso de fundos”, afirma o pesquisador do Insper Marcos Mendes. “A consequência é que o resultado primário vai perdendo significado. Eu até posso fazer um resultado significativo, mas a dívida pública seguirá crescendo, por conta dos gastos que estão ‘vazando’ nesta via financeira”, diz o economista.

Com ampliação do uso de fundos, economistas alertam para perda de transparência orçamentária. Foto: Fábio Motta/Estadão

Na última semana, três iniciativas engrossaram essa lista. Uma delas foi a aprovação, pela Câmara dos Deputados, de projeto de lei que autoriza a União a aumentar em até R$ 4,5 bilhões a sua participação no Fundo de Garantia de Operações (FGO). Trata-se de fundo privado, atrelado ao Banco do Brasil, que garante eventuais inadimplências em crédito concedido a setores específicos, como pequenos negócios. A legislação aprovada pelos deputados foi motivada pela calamidade no Rio Grande do Sul.

Com essa garantia, o risco dos bancos fica menor e a taxa de juros, consequentemente, cai. Foi um mecanismo usado com sucesso durante a pandemia de covid-19, mas que, via de regra, acaba se prolongando indefinidamente.

No período da pandemia, os aportes no FGO foram feitos fora das regras fiscais, com o compromisso de que os valores retornariam aos cofres do Tesouro Nacional após determinado período ― exatamente como está acontecendo agora com as enchentes no Sul do País. Mas os prazos foram sendo renovados pelo Congresso e o dinheiro, no fim, jamais retornou.

Em vez disso, passou a ser usado para garantir outras operações de crédito sem relação com situações emergenciais ou imprevisíveis. Dessa forma, apontam os economistas, essas cifras acabam tendo um único impacto no limite de gastos e na meta de resultado primário e, depois, ficam “circulando” fora do Orçamento, com menos transparência (leia mais abaixo e veja gráfico explicativo).

O texto aprovado pelos deputados também autoriza o governo federal a usar até R$ 20 bilhões do superávit financeiro do Fundo Social como fonte de recurso para crédito direcionado à mitigação das mudanças climáticas. É o mesmo fundo que foi utilizado pelo governo para propor uma triangulação de recursos e, assim, conseguir bancar a ampliação do programa Vale Gás por fora do Orçamento.

Ainda na semana passada, houve a sanção, pelo presidente Lula, do projeto que altera a Lei Geral do Turismo e permite que o Fundo Nacional da Aviação Civil (Fnac) seja usado para conceder crédito às companhias aéreas. O governo planeja usar R$ 5 bilhões para socorrer as empresas do setor, que amargam prejuízos e acumulam dívidas desde a covid-19.

Fundo dará garantia a crédito de R$ 5 bilhões às companhias aéreas, que amargam dívidas e prejuízos.  Foto: Werther Santana/Estadao

O texto permite, ainda, que o Ministério dos Portos e Aeroportos utilize o fundo para subsidiar a compra de querosene de aviação (QAV) para rotas de aéreas na Amazônia Legal.

Já no Senado Federal, os parlamentares chancelaram projeto que institui o Programa Acredita, o qual prevê microcrédito a empreendedores do Cadastro Único ― também com garantia do FGO ― e institui o chamado Eco Invest Brasil no âmbito do Fundo Clima. Isso abrirá caminho para que o Fundo Clima viabilize instrumentos de proteção cambial a investidores estrangeiros que queiram aportar recursos em projetos de transformação ecológica.

“Uma das principais máximas, quando falamos de Orçamento público, é o princípio de unicidade e da universalidade. Tudo no Orçamento, nada fora do Orçamento”, alerta João Pedro Leme, analista da consultoria Tendências. “Todas as ações do governo, fontes de financiamentos, receitas e despesas precisam ser efetivamente colocadas e contabilizadas, até por uma questão de transparência”, reforça Leme.

Procurados, os ministérios da Fazenda e do Planejamento e Orçamento não se manifestaram. A Finep também não enviou resposta à demanda da reportagem. O Banco do Brasil afirmou que não comenta o assunto.

Entenda o caminho do dinheiro

No caso dos fundos públicos, que integram o Orçamento, há três formas principais de o governo aportar dinheiro: receita primária (valor arrecadado por meio de tributos, por exemplo), remuneração do próprio fundo (uma vez que os valores parados rendem juros) e endividamento (como a emissão de títulos por parte do Tesouro Nacional).

Uma vez no fundo, esse dinheiro muitas vezes é gasto como uma despesa financeira, sem ser contabilizada no resultado primário - saldo entre receitas e despesas (sem contar os juros da dívida), que é usado para verificar se o governo cumpriu ou não a meta fiscal. Isso ocorre quando os valores são transferidos para bancos ou agências públicas, como o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep).

Há, no entanto, impacto na dívida pública. No caso da dívida bruta do setor público, o indicador saltou de 71,38% do Produto Interno Bruto (PIB), em janeiro de 2023, para 78,48% do PIB em julho deste ano.

Já no caso dos fundos privados, que executam as despesas fora do Orçamento e incluem os fundos garantidores de crédito, os mecanismos de aporte mais usados são despesa primária, remuneração própria e transferências de outros fundos privados. Neste caso, quando os valores saem dos cofres do Tesouro, isso é contabilizado como despesa primária, ou seja, com impacto na meta.

O alerta dos economistas, no entanto, é de que esses aportes sensibilizam o resultado primário apenas na transferência inicial, e depois parte do dinheiro acaba sendo usada para garantir outros empréstimos, atrelados a outros programas do governo, sem esbarrar nas travas do arcabouço fiscal.

Desembolsos do BNDES e da Finep

O uso mais intenso dos fundos públicos se reflete no volume de recursos desembolsados pelo BNDES e pela Finep. Em 2023, as liberações do BNDES voltaram a crescer e chegaram a 1,1% do PIB. Neste ano, há uma nova previsão de alta: o banco estima que deve alcançar o patamar de 1,3% do PIB. Na Finep, os recursos somaram quase R$ 13,4 bilhões em 2023, quase o dobro dos R$ 7,5 bilhões computados em 2022.

Em administrações anteriores do PT, o BNDES foi amplamente usado para turbinar o desempenho da economia brasileira. Numa política batizada de “campeãs nacionais”, o banco dava crédito subsidiado a grandes companhias. Em 2010, último ano do segundo mandato de Lula, os desembolsos da instituição atingiram o pico de 4% do PIB.

O mecanismo usado na ocasião, porém, era diferente e envolvia aportes diretos do Tesouro Nacional no banco de fomento, o que não tem ocorrido atualmente. Além disso, os montantes desembolsados hoje estão em patamar bem mais reduzido e com uma parcela consideravelmente menor de subsídios. Ainda assim, as sinalizações acendem uma luz amarela, na avaliação de especialistas.

“A direção é ruim. Tem um debate sobre a velocidade com que essa deterioração (fiscal da União) vai continuar; mas, claramente, a direção se assemelha à que a gente viu lá atrás, e que acabou desembocando na crise de 2015 e 2016″, afirma Gabriel Leal de Barros, economista-chefe da gestora ARX Investimentos.

Em entrevista ao Estadão, o diretor de Planejamento e Relações Institucionais do BNDES, Nelson Barbosa, avaliou que o uso mais intenso de fundos públicos e privados pelo governo é pertinente em um cenário em que é necessário investir em mitigação de mudanças climáticas e infraestrutura social e ampliar a garantia à concessão de crédito, sobretudo aos pequenos negócios (leia a entrevista completa).

Barbosa também afirmou que os valores são pequenos comparativamente aos desembolsos totais do banco e que todas as operações são feitas com avaliação de custo-benefício e prestação de contas.

Em nota enviada após a publicação da reportagem, a Associação Brasileira de Desenvolvimento (ABDE) afirmou que os fundos garantidores configuram uma despesa suis generis , “pois o recurso aplicado pelo governo permanece no fundo, rendendo a taxas de mercado, e só é efetivamente gasto em caso de inadimplência do tomador final”.

Para a entidade, a extensão da aplicação dos recursos públicos nos fundos garantidores não caracteriza ampliação de gasto público, “mas sim possibilita a alavancagem do gasto privado”.

Sobre a devolução dos recursos aos cofres do Tesouro em maior ou menor prazo, a ABDE avalia que a decisão “deve ser tomada com base em critérios de efetividade para o cumprimento do principal mandato de um governo, que é o de melhorar a vida de sua população e ampará-la em momentos de crise”.

A injeção de bilhões de reais na economia via fundos contrasta com a política desempenhada no governo anterior, do ex-presidente Jair Bolsonaro, que se situava no outro extremo. À época, os valores disponíveis nos fundos costumavam ficar “parados” e serviam de colchão de segurança em caso de necessidade de bloqueio do Orçamento.

Em 2019, a equipe do então ministro da Economia, Paulo Guedes, chegou a desenhar uma proposta de emenda à Constituição (PEC) prevendo a extinção de 248 fundos infraconstitucionais. Na ocasião, eles somavam R$ 220 bilhões, montante que seria utilizado para abater os juros da dívida pública.

Selic menos potente

O impulso ao crédito barato leva a um segundo ponto de atenção: o risco de perda de potência da política monetária no combate à inflação. Com o dinheiro mais barato circulando em maior quantidade, o Banco Central pode precisar colocar a taxa básica de juros (Selic) num patamar mais elevado para “compensar” esse juro mais baixo.

“À medida que se aumenta o crédito subsidiado e vinculado a determinadas operações, você diminui a potência da política monetária”, afirma Mendes, do Insper. “Para uma redução da inflação, você precisa de um aumento maior da taxa.”

Na quarta-feira, 18, o Comitê de Política Monetária (Copom) elevou a Selic em 0,25 ponto percentual, para 10,75% ao ano. A alta ocorreu porque o BC tem visto uma desancoragem das expectativas de inflação, que se afastaram da meta de 3%.

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