BRASÍLIA – O governo tem exatamente 15 dias para resolver o conflito com a Câmara dos Deputados – agravado pela fala do ministro da Fazenda, Fernando Haddad, considerada desastrada pelos parlamentares, e aprovar o novo arcabouço fiscal – evitando, assim, um “corte” de cerca de R$ 200 bilhões no Orçamento de 2024, o primeiro elaborado pelo atual governo Lula. A cifra foi calculada por economistas do mercado e técnicos do Congresso Nacional a pedido do Estadão.
Se a nova regra fiscal não for sancionada até 31 de agosto, o Orçamento do próximo ano terá de ser baseado no atual teto de gastos, que restringe o crescimento das despesas apenas à variação da inflação. Isso levaria, portanto, a uma redução bilionária na previsão de verbas públicas, as quais só poderiam constar do Orçamento de forma condicionada, contando com uma futura aprovação do arcabouço.
A hipótese é considerada remota, mas leva apreensão à equipe econômica, que está debruçada sobre a peça orçamentária com um duplo desafio: cumprir as promessas de campanha do presidente Lula, o que implica acomodar novos gastos, e tentar viabilizar a meta de zerar o rombo das contas públicas em 2024, considerada pouco factível pelo mercado.
A ministra do Planejamento, Simone Tebet, destacou nesta terça-feira que o grande desafio para a elaboração do Orçamento “é o tempo”, mas disse confiar no trabalho do Congresso. As lideranças partidárias – insatisfeitas com a demora na reforma ministerial e na liberação de emendas, e agora também irritadas com a fala de Haddad – saberão usar esse fator a seu favor, aumentando o preço cobrado do governo pela aprovação de propostas que são de interesse da atual gestão.
A equipe econômica considera, porém, que o risco de um Orçamento enxuto também é dos próprios parlamentares – que, na versão sem o arcabouço, não teriam espaço para as emendas que vêm pleiteando.
Nos bastidores, parlamentares dizem que o aumento de poder da Câmara, criticado por Haddad em entrevista ao jornalista Reinaldo Azevedo, é um caminho sem volta e que o governo terá de se acostumar.
Nos últimos meses, o ministro da Fazenda vinha conseguindo blindar a pauta econômica dos atritos entre Lula e o presidente da Câmara, Arthur Lira, e era tido como o queridinho dos parlamentares – algo raro para políticos que comandam o cofre do governo. Neste início de segundo semestre, porém, Haddad começou a sentir a resistência da Câmara em aprovar o pacote de medidas arrecadatórias, principalmente as que miram os mais ricos, como a taxação de fundos exclusivos e offshore (fora do País), e isso trouxe desgaste.
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Em condição de anonimato, uma liderança partidária afirmou que o timing da fala de Haddad foi péssimo. Segundo ele, o ministro da Fazenda “não pode sair desabafando em entrevistas”, uma vez que sua fala tem consequências.
Para o parlamentar, o governo precisa pagar o que deve à Câmara pela aprovação da reforma tributária, da primeira etapa do arcabouço e das mudanças no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) – um texto que, como o Estadão revelou, pode render R$ 30 bilhões ao governo por meio de um acordo com a Petrobras. Ele afirma que Lira “é bom para aprovar, mas também para cobrar”.
Questionado sobre o calendário de votação do arcabouço, Lira disse nesta terça-feira que “a Câmara nunca foi e não será irresponsável com os assuntos que são essenciais para o Brasil”, mas destacou que na segunda-feira, dia da entrevista de Haddad, “não houve clima” para tratar do tema.
O presidente da Câmara afirmou que a fala surpreendeu, foi “inapropriada” e refletiu “um relaxamento excessivo do ministro durante uma entrevista”. E deixou um recado: vota o arcabouço na semana que vem, desde que não haja “nenhuma outra sofreguidão do lado de lá”.
O texto do arcabouço já foi aprovado pela Câmara no primeiro semestre, mas sofreu mudanças no Senado e, por isso, terá de passar por uma segunda análise dos deputados.
Arcabouço X teto de gastos
A diferença de R$ 200 bilhões em despesas leva em consideração um Orçamento mais flexível, elaborado com base no novo arcabouço, e outro mais restritivo, que seria feito levando em consideração o atual teto de gastos.
O primeiro, logo de largada, já tem um ponto de partida mais expansionista, pois “incorpora” o espaço aberto pela Proposta de Emenda à Constituição (PEC) da Transição. Além disso, considera despesas condicionadas, um artifício que foi incluído pela liderança do governo no Senado (leia mais abaixo). E, por fim, permite expansão dos gastos acima da inflação. Já o segundo autoriza que as despesas cresçam apenas com base na variação do Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA).
Na hipótese, ainda remota, de o governo ter de enviar ao Congresso um Orçamento com base no teto de gastos, o ministério do Planejamento poderia usar estratégia semelhante à utilizada na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO), que é o projeto que estabelece os parâmetros das despesas e receitas do próximo ano. Na ocasião, o governo condicionou R$ 172 bilhões em verbas públicas à aprovação do arcabouço.
O artigo 23 da LDO afirma que, na hipótese de a nova regra fiscal não ter sido sancionada até 31 de agosto, o Orçamento de 2024 poderá conter despesas primárias cuja inclusão “ficará condicionada à aprovação da referida lei complementar”. Os dois cenários, porém, teriam de ser explicitados. A votação da LDO também depende do avanço do arcabouço e, por isso, está pendente na Câmara.
Despesas condicionadas
Além de garantir que o texto do arcabouço seja pautado para votação no plenário da Câmara, a equipe econômica também busca garantir que ele seja aprovado com a previsão das chamadas despesas condicionadas – que dependem de aprovação de crédito adicional pelo Legislativo para serem executadas.
Trata-se de um artifício, que foi incluído no Senado pelo líder do governo, Randolfe Rodrigues (sem partido-AP), que permite um crescimento maior dos gastos com base na estimativa de avanço da inflação no segundo semestre.
Como o IPCA registrado ao final de 2023 deve ficar em um patamar maior do que o apurado nos 12 meses até junho, a expectativa é de que o governo possa ampliar em cerca de R$ 32 bilhões o espaço para despesas no ano que vem.
O tema, porém, ainda não está pacificado, como evidenciou o presidente da Câmara nesta terça-feira. Segundo Lira, o ponto “mais polêmico” do arcabouço é exatamente essa modificação no cálculo do IPCA. “Se houver acordo sobre isso, vota na terça-feira que vem”, afirmou. Ou seja, os próximos dias serão de intensa negociação.