Comentários do presidente Luiz Inácio Lula da Silva em recente viagem à China sobre a hegemonia mundial do dólar reacenderam um debate internacional sobre o domínio da moeda dos EUA nas transações comerciais e financeiras globais. Apesar de o renminbi ter apresentado um pequeno avanço no comércio exterior no último ano, devido basicamente à grande dependência de Moscou a Pequim depois da invasão militar na Ucrânia, ele ainda está longe de superar a importância do euro e do iene, que estão distantes de ameaçar a liderança da divisa americana.
Acadêmicos internacionais entrevistados pelo Estadão/Broadcast nos EUA, China e Inglaterra acreditam que a supremacia do dólar será mantida ao menos nos próximos cinco anos. Esta posição será mantida não apenas porque os Estados Unidos são a maior economia do planeta, mas também pelo tamanho e flexibilidade dos seus mercados financeiros, da credibilidade do seu sistema judiciário e por ter uma longa tradição de defesa e prática de valores democráticos.
De acordo com o Banco de Compensações Internacionais (BIS, na sigla em inglês), o dólar responde em termos mundiais por cerca de 90% das transações de câmbio e perto de 50% das faturas do comércio global. Segundo o Fundo Monetário Internacional, a divisa dos EUA representa 58,36% das reservas cambiais em todo o planeta, à frente do euro com 20,47%, seguido do iene com 5,51% e da libra esterlina com 4,95%. O renminbi tem 2,69%, o dólar do Canadá 2,38%, e o dólar da Austrália, 1,96%.
Países emergentes, como o Brasil e a Arábia Saudita, firmaram há poucas semanas acordos com a China para facilitar as transações comerciais entre suas moedas, a fim de reduzir a dependência da divisa dos EUA. Mas tais medidas pouco mudarão o atual quadro de preponderância mundial do dólar americano.
“Se a Arábia Saudita tiver mais recebíveis em renminbi obtidos com a venda de petróleo, poderá apenas depositá-los em bancos chineses ou comprar títulos públicos da China, que não são muitos, ou adquirir imóveis, uma espécie de mercado em depressão”, comentou Barry Eichengreen, professor de economia da Universidade da Califórnia, em Berkeley. “O mesmo se aplica ao Brasil, pois o que fará com os renminbis que vai obter com as suas exportações para aquele país?”
Outros fatores que explicam a força internacional do dólar são a estabilidade e instituições sólidas dos EUA, como o Federal Reserve, que existem há muitos anos. “É por isso que quando ocorrem crises internacionais, a moeda americana se fortalece, porque ela inspira elevada confiança e é considerada um porto seguro para investidores de todo o mundo”, afirmou Oleg Itskhoki, professor da Universidade da Califórnia, em Los Angeles (UCLA).
Além de o dólar ser um ativo responsável por grande reserva de valor, ele é o ponto central do arcabouço financeiro e comercial mundial que levou várias décadas para ser formado e que deverá levar muito tempo para, eventualmente, ser alterado de forma substancial.
Problemas de outras moedas
Há dificuldades estruturais para que outras moedas, como as da zona do euro, do Japão e da China, tenham uma maior participação internacional e reduzam a supremacia financeira e comercial do dólar.
“A China ainda tem muitos controles de capitais, e os habitantes lá não têm liberdade para enviar recursos ao exterior, bem como para recebê-los de outros países. É errada a ideia de que o renminbi tomará o papel do dólar nos próximos anos”, comentou Charles Goodhart, professor emérito do centro de pesquisas do Grupo de Mercados Financeiros da London School of Economics.
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No caso do euro, o fato de representar um grupo de 20 países que não possui uma união fiscal gera incertezas sobre a força da moeda no longo prazo, especialmente com preocupações sobre a boa gestão das contas públicas, que é determinada em termos nacionais. E isto é representado de certa forma nos spreads dos títulos públicos com o mesmo vencimento de várias nações, como o registrado entre Alemanha e Itália.
Em relação ao iene, é uma moeda bem importante, mas tem um apelo ainda bastante regional. Embora o Japão seja uma economia avançada, sua propensão marginal à desinflação gera dúvidas a investidores, devido ao consumo moderado e por fatores demográficos, como a redução da população e da força de trabalho que está ocorrendo nos últimos anos.
Privilégio exorbitante
A primazia global do dólar é avaliada também por muitos especialistas como um “privilégio exorbitante”, expressão cunhada nos anos 1960 por Valéry Giscard d’Estaing quando era ministro das Finanças da França.
Devido à imensa demanda que a moeda americana tem nos universos empresarial e financeiro, a gestão da política monetária nos EUA tem efeitos práticos sobre a condução das economias pelo mundo, sobretudo em nações em desenvolvimento. “Muitos estudos apontam que quando o Federal Reserve sobe os juros, muitas vezes anula os efeitos de desvalorizações de moedas adotadas por países emergentes para fortalecer suas exportações e reanimar o nível de atividade doméstico”, comentou Ricardo Reis, professor da London School of Economics.
Mas a hegemonia do dólar não é positiva para os EUA como um todo, mas sim para alguns segmentos da economia americana, sobretudo os grandes bancos e o “establishment” nas áreas militar e de relações internacionais, “pois viabilizam sanções a outras nações, que são uma arma poderosa”, afirma Michael Pettis, pesquisador sênior do Carnegie Endowment for International Peace.
Para Pettis, o dólar é a moeda reserva preferida por muitos países que têm um modelo econômico fortemente baseado em exportações, como a China, Alemanha e Arábia Saudita. Como grande parte destes recursos não volta para tais nações na forma de investimentos, eles acabam se tornando uma poupança externa em diversos ativos denominados na moeda americana.
“Porém, grande parte destes capitais não são investidos nos EUA na construção de fábricas e geração de milhares de empregos, mas sim em ativos financeiros com alta liquidez e geralmente com um vencimento de curto prazo”, afirmou Michael Pettis. “Esta situação é negativa aos trabalhadores americanos, pois não cria postos de trabalho e pressiona os salários para baixo.”
Segundo o acadêmico, é necessário reduzir de forma paulatina tal liderança global do dólar, o que para ele precisa começar logo com uma de duas alternativas: os EUA devem adotar de forma unilateral impostos sobre investimentos financeiros de curto prazo ou em conjunto com outros países que registram problemas semelhantes, embora em menor magnitude, como a Inglaterra, Canadá e Austrália.
“Há um aumento muito grande da consciência nos EUA, na Inglaterra, Canadá e Austrália de que tais impostos são fundamentais para reduzir sérios problemas que estes capitais externos não produtivos geram, sobretudo em relação à distribuição de renda”, disse Pettis. “Esta globalização econômica ruim precisa ser substituída por uma globalização boa, na qual as empresas competem pelo aumento da produtividade e da demanda por mão de obra, o que vai elevar os salários e o consumo dos seus cidadãos.”