BRASÍLIA – A Receita Federal divulgou pela primeira vez em detalhes os números de um benefício criado na pandemia de covid-19 para socorrer o setor de turismo e eventos. De janeiro a agosto de 2024, foram concedidos R$ 9,7 bilhões em benefícios fiscais por meio do Programa Emergencial de Retomada do Setor de Eventos (Perse) a 15,2 mil empresas no Brasil. Entre os maiores beneficiados estão o iFood, a companhia aérea Azul e hotéis de luxo.
O programa permite às companhias deixar de pagar quatro tributos federais (Imposto de Renda, Pis/Pasep, Cofins e CSLL) e também alcançou os negócios de artistas famosos e influenciadores digitais, como Felipe Neto, Virgínia Fonseca e Gusttavo Lima. Eles usufruíram do benefício porque declaram à Receita Federal exercer atividades que foram enquadradas no programa.
O benefício foi criado no governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, em 2021, a fim de socorrer as empresas das áreas de turismo e eventos prejudicadas pelo isolamento social causado pela pandemia. Na época, Bolsonaro vetou a isenção, mas o veto foi derrubado pelo Congresso. O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) tentou acabar com o Perse, mas o benefício foi preservado pelo Legislativo e acabou sendo sancionado pelo Executivo em maio deste ano após acordo.
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, fechou uma negociação com parlamentares e limitou o benefício a um custo de R$ 15 bilhões até 2026, além de reduzir o rol de atividades autorizadas a receber a isenção fiscal.
Procuradas, as empresas beneficiadas alegam que usaram o benefício dentro da lei e que foram impactadas pela pandemia de covid-19, o que justificou o pedido para deixarem de pagar tributos federais. A Receita Federal afirmou que não comenta casos específicos e se limitou a encaminhar informações gerais sobre o Perse.
A lista veio à tona com a divulgação, pelo Ministério da Fazenda, das empresas que fizeram a Declaração de Incentivos, Renúncias, Benefícios e Imunidades de Natureza Tributária (Dirbi), uma obrigação do governo criada neste ano para companhias que deixam de pagar impostos federais com incentivos da União.
“Todos os dados disponibilizados na planilha foram declarados pelos próprios contribuintes por meio da Dirbi”, disse a Receita.
A prorrogação do benefício levou empresas que cresceram na pandemia, como o setor de entregas por aplicativo, a deixar de pagar impostos, beneficiou grandes companhias, artistas famosos e influenciadores digitais dois anos depois de o Brasil ter decretado o fim da emergência sanitária da pandemia de covid-19. Além disso, essas personalidades foram favorecidas neste ano enquanto puderam exercer normalmente suas atividades trabalhando na TV, recebendo patrocínios, fazendo shows pelo Brasil e ganhando dinheiro com vídeos, posts e publicidade na internet.
Para receber o benefício, a empresa não precisa ter registrado perda de receita na pandemia, nem é exigida uma contrapartida como a manutenção de empregos durante o período. Quando o programa surgiu, em 2021, bastava se encaixar em alguma atividade relacionada e o empresário já poderia deixar de pagar imposto.
“A lei tinha um objetivo nobre que era socorrer os mais afetados pela pandemia; mas, na abrangência e no enquadramento, claramente faltou um olhar mais técnico e rigoroso para que beneficio fosse dado a quem de fato sofreu os impactos mais severos da pandemia”, diz o advogado tributarista Fernando Franco. “É um contrassenso que influenciador digital, youtuber e empresas que cresceram muito na pandemia sejam beneficiados.”
“O Congresso derrubou o veto sem se preocupar de onde ia sair o dinheiro e criou um programa que foi pensado pela metade”, comenta a tributarista Maria Carolina Gontijo, conhecida como Duquesa de Tax nas redes sociais. “O mais correto na época seria se concentrar em políticas públicas melhores, como crédito subsidiado que poderia ser dado pontualmente e parcelamento de tributos.”
As dez empresas mais beneficiadas pelo Perse em 2024
As dez empresas que mais deixaram de pagar impostos com o Perse entre janeiro e agosto deste ano conseguiram uma renúncia total de R$ 1,35 bilhão. Quem lidera a lista é a empresa iFood, de entrega de refeições delivery. Nesse período, o benefício tributário chegou a R$ 336,11 milhões, apesar do aumento da atividade de entregas por aplicativo durante o isolamento social.
O iFood deixou de ser contemplado pela lei em 2024, mas continuou recebendo o benefício por uma decisão da Justiça. A empresa argumentou no Judiciário que, uma vez concedido o benefício com previsão de cinco anos, ele não poderia ser encerrado durante a sua vigência, sob prejuízo para ela como contribuinte. Além disso, a companhia argumenta que está entre os setores contemplados por fazer a intermediação entre consumidores e restaurantes.
Procurado, o IFood afirmou que “o Perse foi criado para apoiar empresas ligadas direta ou indiretamente ao setor de eventos, incluindo bares e restaurantes”. A atividade de intermediação, feita por plataformas como o iFood, também foi incluída no escopo do programa, afirmou a empresa. Foi justamente essa atividade que deixou de ser enquadrada no benefício.
A empresa alegou ainda que apoiou restaurantes parceiros durante a pandemia, reduziu a comissão cobrada dos estabelecimentos, adiantou repasses e destinou dinheiro para um fundo de auxílio aos entregadores.
Depois, vem a companhia Azul Linhas Aéreas na lista, com R$ 303,73 milhões de renúncia fiscal, seguido pelo grupo Enotel, de hotéis e resorts, com R$ 171,58 milhões. A lista segue com Atlantica Hotels Internacional (R$ 104,89 milhões); Vila Gale Brasil, também do setor hoteleiro (R$ 84,18 milhões); AirBNB (R$ 82,18 milhões); MSC Cruzeiros (71,19 milhões); Madero Indústria e Comércio (69,45 milhões); J.B World Entretenimentos (R$ 67,76 milhões); e Informa Markets (61,5 milhões).
Segundo dados do Fórum de Operadores Hoteleiros do Brasil (FOHB), o setor registrou 60% de ocupação entre janeiro a setembro deste ano. Além disso, o Ministério do Turismo divulgou recentemente um estudo apontando aquecimento do mercado, com uma receita de R$ 218 bilhões no setor de turismo em 2023 – aumento de 37% em relação ao ano anterior.
O Airbnb, que atua no segmento de turismo e aluguel de hospedagem, argumentou que “o setor foi impactado pela pandemia do covid-19 e pelas necessárias medidas que restringiam o fluxo de pessoas para lazer e trabalho.” A rede de restaurantes Madero, por sua vez, afirmou que o grupo usufrui do Perse “devidamente habilitada pela Receita Federal do Brasil”.
A J. B. World, dona do parque Beto Carreiro World, afirmou, em nota assinada pelo CEO Alex Murad, que o Perse foi essencial para a companhia atravessar pandemia “sem nenhuma demissão”, “mostrando como políticas públicas podem ajudar o setor a superar dificuldades e planejar novos avanços”.
As demais empresas citadas não responderam à reportagem.
Influenciadores digitais também receberam benefício fiscal do governo
A empresa Play9, que tem o influenciador Felipe Neto como um dos sócios, deixou de pagar R$ 14,3 milhões em impostos entre janeiro e agosto deste ano por meio do Perse. A companhia assessora influenciadores digitais, produz vídeos para as redes sociais e faz a gestão de canais de marcas e pessoas.
A Play9 se encaixou no programa em função da produção cinematográfica, uma das atividades que eram contempladas inicialmente no programa, mas acabou ficando de fora na reformulação, em maio deste ano.
A empresa afirmou ao Estadão que seguiu os requisitos da legislação e que conseguiu na Justiça a implementação do benefício ainda no governo Bolsonaro alegando estar entre as companhias afetadas pela pandemia e ter necessidade de atenuar as perdas geradas e garantir empregos.
Quando Lula assinou a medida provisória acabando com o Perse, no ano passado, a produtora entrou na Justiça para manter a isenção, alegando que o benefício tributário não poderia ser extinto no meio da sua vigência, mas a ação foi extinta com a perda de validade da medida. A empresa não explicou por que ainda recebeu os incentivos até agosto, conforme declaração feita à Receita Federal, que também não esclareceu o motivo.
“Como muitas outras empresas do setor de produção, agenciamento ou eventos, a Play9 foi significativamente impactada pela pandemia e, assim como concorrentes, fez uso do benefício para atenuar as perdas geradas, além de garantir empregos”, disse a empresa em nota. “Qualquer tentativa de deslegitimar o uso do benefício soa como um ato de má-fé, especialmente ao tentar associá-lo a questões ideológicas e políticas, ignorando, inclusive, que a Lei Perse foi criada no governo anterior e é utilizada por milhares de empresas afetadas economicamente pela pandemia do covid-19″, afirmou.
Nas redes sociais, Felipe Neto afirmou que é sócio minoritário da Play9 e que não participa da gestão financeira da produtora. O nome dele consta na relação de sócios da empresa na Receita Federal. Além disso, o nome de Felipe Neto serve como atrativo da Play9 para divulgar sua marca.
“Minha crença é que o Perse foi uma das poucas boas iniciativas da gestão Bolsonaro, mas, ao que tudo indica, foi incrivelmente mal executado, o que justifica o desejo do atual governo em derrubá-lo. Parece que inúmeras empresas fora do escopo de entretenimento e eventos foram e seguem sendo beneficiadas, até mesmo do agronegócio. Que seja investigado!”, escreveu Felipe Neto no X.
A influenciadora Virgínia Fonseca, que só no Instagram tem 51 milhões de seguidores, foi outra contemplada pelo Perse, deixando de pagar R$ 4,5 milhões em impostos entre janeiro e agosto deste ano. A empresa de Virgínia também é voltada para a produção de conteúdo e publicidade nas redes sociais.
Virgínia se notabilizou na internet produzindo conteúdos sobre maquiagem e mostrando o dia a dia da família, uma vez que ela é nora do cantor sertanejo Leonardo e casada com o cantor e também influenciador Zé Felipe. Virgínia lançou uma marca própria de cosméticos e atualmente é apresentadora do SBT.
A influenciadora declarou à Receita Federal exercer as atividades de agenciamento de profissionais para atividades esportivas, culturais e artísticas, além de artes cênicas e espetáculos, atividades contempladas pelo Perse, para ganhar o benefício. O marido dela, Zé Felipe, que além de cantor também é influenciador digital, usufruiu do benefício deixando de pagar R$ 2,7 milhões em tributos federais no mesmo período.
“A relação de beneficiados não se justifica. Ninguém desse pessoal está errado. Se você tem um benefício à sua disposição, você tem que usar, é otimização financeira. O erro está na política pública. O programa não foi desenhado da maneira correta”, comenta a tributarista Maria Carolina Gontijo.
A apresentadora de TV Sabrina Sato também foi beneficiada com o Perse com R$ 4,2 milhões neste ano. Ela tem uma empresa com os irmãos Karina e Karin, que administra a carreira de Sabrina e de outros artistas. O agenciamento de profissionais para atividades esportivas, culturais e artísticas é uma das atividades declaradas para a Receita Federal e incluída no programa. Também aparecem na lista a empresa do comediante Whindersson Nunes, com R$ 426 mil, e a companhia da atriz Deborah Secco, com R$ 932,8 mil.
Procurados, Virgínia, Zé Felipe, Sabrina Sato, Whindersson Nunes e Débora Secco não se manifestaram.
A relação de beneficiados inclui ainda grandes artistas do mundo musical, como Gusttavo Lima (R$ 20,9 milhões), Wesley Safadão (R$ 6,8 milhões), Luan Santana (R$ 6,2 milhões), Leonardo (R$ 6 milhões) e Alok (R$ 4,9 milhões). Os músicos declaram à Receita exercer atividades culturais relacionadas a shows e produções musicais, que foram contempladas pelo Perse.
Na pandemia, os shows foram restritos em função do isolamento social, o que levou artistas a receberem os incentivos fiscais. O benefício, porém, foi prorrogado e as renúncias fiscais continuando ocorrendo. Os valores declarados são de janeiro a agosto deste ano, período em que todos eles fizeram shows normalmente. Gusttavo Lima, por exemplo, cobrou R$ 900 mil em cachê para uma apresentação no São João de Petrolina (PE) em junho deste ano. Wesley Safadão recebeu R$ 750 mil para um show em Curvelo (MG) em julho.
Artistas dizem que benefício foi concedido conforme as regras
Procurados, os artistas disseram que suas empresas foram beneficiadas pelo Perse de acordo com as regras do programa e que o incentivo fiscal foi usado para mitigar os efeitos da pandemia de covid-19.
A assessoria do DJ Alok afirmou que as empresas dele cumpriram as exigências para entrar no programa e que pediu o benefício para alcançar a recuperação dos negócios, após, segundo ele, não ter receita na pandemia e não ter demitido nenhum funcionário. “Graças à retomada das atividades e ao Perse, foi possível reestruturar as empresas acima, tendo inclusive possibilitado a contratação de novos funcionários no período ‘pós-pandemia’.”
A chefe de cozinha Paola Carosella disse que seu restaurante, o Arturito, entrou no Perse em abril deste ano. A atividade é parte do programa desde o início, disse ela, por meio da assessoria de imprensa. O CNPJ em questão diz respeito somente ao restaurante, segundo a chefe.
O cantor Kevinho disse que a empresa Portuga Records hoje se chama Love Records e gerencia as carreiras de 80 artistas. “Regularmente cadastrada no Perse, conforme prevê a legislação vigente, a empresa usufrui dos benefícios do programa, que impactam diretamente as atividades artísticas realizadas pelos artistas do seu casting, especialmente na comercialização de shows e apresentações artísticas”, diz. A empresa diz ainda que não possui relação com a carreira artística de Kevinho, que é gerenciada por outra firma.
Os outros artistas e influenciadores citados pela reportagem não se manifestaram.
Governo limitou custo do Perse, mas empresas ainda tentam manter benefícios na Justiça
Além de limitar o custo a R$ 15 bilhões até 2026, mudanças na lei feitas entre 2022 e 2024 diminuíram o rol de empresas beneficiadas, deixando de fora pensões, produtoras de filmes, aluguel de veículos e outras atividades. Por outro lado, o governo manteve os restaurantes, mas excluiu as lanchonetes.
“O limite de R$ 15 bilhões faz com que beneficiários concorram entre si pelo programa. Quando o Felipe Neto ou o iFood entram, eles estão tirando recursos de outras empresas e negócios que realmente sofreram e ainda sofrem com o impacto da pandemia”, afirma o tributarista Fernando Franco.
Além disso, algumas novas regras foram criadas, como a exigência de a empresa ter sido criada e oferecer aquele serviço antes da pandemia e as atividades diretamente relacionadas a eventos e turismo somarem a maior parte da arrecadação.
O Perse ainda é tema de controvérsia sobre quem tem direito e quem não tem direito de receber o benefício. Algumas companhias, como o iFood e a produtora de Felipe Neto, recorreram à Justiça para deixar de pagar os tributos. Além disso, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) ainda vai julgar se é necessário ou não que a empresa esteja previamente inscrito no Cadastro de Prestadores de Serviços Turísticos (Cadastur) e se os negócios do Simples Nacional, como pequenos restaurantes, podem se beneficiar do programa.
“Invariavelmente, qualquer tipo de correção vai recair em judicialização. Esse é o preço que a gente paga pelo tipo de política pública atropelada que é feita pelo Congresso”, diz Maria Carolina Gontijo.