O outro lado do noticiário

Opinião|Críticas a ‘Kamalanomics’ vão além de Trump e da direita e ‘quebram encanto’ da candidata democrata


Programa econômico heterodoxo de Kamala Harris, que inclui controle de preços dos alimentos, teto para aumento dos aluguéis e um gasto público estimado em US$ 1,7 trilhão em dez anos, abriu novo flanco para ataques contra sua campanha num campo que está no topo das prioridades dos eleitores

Por José Fucs
Atualização:

Nas semanas que antecederam a Convenção Nacional do Partido Democrata, realizada de 19 a 22 de agosto em Chicago, no meio oeste dos Estados Unidos, tudo parecia caminhar às mil maravilhas para a vice-presidente do país, Kamala Harris, que foi confirmada como candidata da legenda à presidência, nas eleições de 5 de novembro.

Com a desistência do atual presidente Joe Biden de concorrer à reeleição, após forte pressão da cúpula democrata, e seu apoio à escolha de Kamala para substituí-lo na disputa, um novo astral tomou conta da campanha do partido. Mesmo sem ter passado pelas primárias para chegar à convenção na condição de pré-candidata, como reza o rito partidário, Kamala conseguiu reverter rapidamente a situação desfavorável aos democratas nas pesquisas, deixando o ex-presidente Donald Trump, candidato pelo Partido Republicano, na defensiva.

Kamala Harris: percepção negativa sobre seu programa econômico inclui os democratas mais moderados Foto: Brendan Smialowski/BRENDAN SMIALOWSKI
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Em alguns levantamentos nacionais e em vários dos chamados swing states (aqueles que costumam oscilar entre candidatos democratas ou republicanos nas eleições), como Pensilvânia, Michigan e Wisconsin, Kamala chegou até a ultrapassar Trump, que vinha liderando as sondagens, reforçando as chances de o partido continuar no poder até 2028.

Ancorada na palavra “alegria” (joy, em inglês), escolhida pelos marqueteiros para dar o tom de sua campanha e reproduzida em ritmo de bate-estaca por veículos de comunicação do país, Kamala procurou criar um clima positivo em torno de sua candidatura, em oposição à exploração do “medo” (fear) das pessoas, que os democratas consideram como marca registrada de Trump, em quem ela e seus apoiadores tentam colar a pecha de weird (esquisito), assim como em seu vice, o senador J.D. Vance.

Pelo desenrolar dos acontecimentos, a impressão que se tinha até poucos dias atrás era de que a “onda azul” – a cor do Partido Democrata – estava se transformando num tsunami difícil de ser contido. Temas explorados por Trump em sua campanha, que marcaram o governo Biden-Kamala, como a alta da inflação, a explosão da imigração ilegal, o apoio às políticas identitárias, a retirada desastrosa das tropas americanas do Afeganistão e a pressão sobre Israel para selar uma trégua com os terroristas do Hamas, pareciam não ser suficientes para o candidato republicano superar sua rejeição junto a uma parcela considerável dos eleitores e abalar a escalada de Kamala – vista por seus opositores como uma espécie de “rainha” do “wokerismo” no país – rumo à Casa Branca.

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O otimismo que tomou conta das fileiras democratas chegou a tal ponto que o cineasta Michael Moore, um ativista ruidoso da esquerda americana que previu a vitória de Trump em 2016 e a vitória de Biden em 2020, fez um alerta para Kamala e seus seguidores não entrarem no clima do “já ganhou”. “Estava tão depressivo por tantas semanas e então, subitamente, não estava depressivo. Agora, estou esperançoso, mas cabe a nós não perder a oportunidade – e temos uma história de perder (as oportunidades que surgem)”, afirmou.

De repente, porém, de forma tão súbita quanto a virada ocorrida no astral dos democratas e seus apoiadores após a desistência de Biden, as coisas começaram a mudar, como se as palavras de Moore tivessem se tornado uma espécie de profecia em tempo real no atual estágio da campanha. Apesar da euforia que tomou conta dos democratas durante a convenção do partido, algumas pesquisas voltaram a mostrar Trump na dianteira nos últimos dias, inclusive em swing states como Arizona e Nevada, sugerindo que a eleição não deverá ser a barbada que muitos democratas estavam imaginando e que o aumento da exposição de Kamala e de suas posições em relação a temas caros aos republicanos, consideradas excessivamente “progressistas”, começou a cobrar seu tributo.

A informação divulgada na quarta-feira, 21, de que o candidato independente Robert Kennedy Jr. – que conta com cerca de 5% das preferências nas pesquisas – poderá desistir de sua candidatura e apoiar Trump, também deverá representar, se for confirmada, um duro golpe para Kamala e dará uma contribuição inestimável para o candidato republicano, numa campanha disputada voto a voto.

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Agora, a pior notícia veio da economia – um campo minado que está novamente no topo das prioridades dos eleitores nesta eleição. Com o anúncio das grandes linhas do programa econômico de Kamala na sexta-feira, 16, depois de ela passar semanas sem nada revelar sobre suas propostas e se mantendo distante da imprensa, o “encanto” que cercava sua campanha até agora, unindo os eleitores de esquerda, de centro-esquerda e boa parte do centro político, parece ter se “quebrado”.

Viés de esquerda

Embora alguns economistas mais afinados aos democratas tenham apoiado o plano de Kamala, como o prêmio Nobel Paul Krugman, que o considerou como “uma agenda sólida de centro-esquerda”, ela se tornou alvo de uma saraivada de críticas por suas propostas para a economia. Não apenas de Trump e de seus aliados, que chamaram seu programa de “socialista” e de “comunista”, mas também de democratas mais moderados e de meios de comunicação como o Washington Post e a CNN, considerados pela direita e centro-direita americanas como veículos com viés de esquerda e mais amigáveis a seus adversários.

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Em vez de seguir na trilha do liberalismo econômico abraçada pelos democratas nos tempos de Bill Clinton, nos anos 1990, que levou o partido de volta à Casa Branca após 12 anos na oposição durante os governos de Reagan e Bush (o pai) e que se manteve, de certa forma, nos dois mandatos de Obama (2009-2017), Kamala optou por um programa mais à esquerda, aprofundando o intervencionismo governamental e a gastança desenfreada que marcaram a gestão de Biden, que ela apoiou de forma incondicional.

Batizado de “Kamalanomics”, o programa econômico anunciado por Kamala lembra, em boa medida, os planos heterodoxos implementados no Brasil, como o Cruzado, adotado em meados dos anos 1980, cujos resultados deixaram sequelas por anos a fio, ao desequilibrar o sistema de formação de preços da economia. Lembra também a tentativa fracassada do ex-presidente Richard Nixon (1969-1974) – que era, ironicamente, uma das principais lideranças do Partido Republicano – de controlar os preços no país.

Para enfrentar a inflação, que Kamala atribuiu à “ganância” das grandes empresas no discurso que fez ao lançar seu plano, na Carolina do Norte, na costa leste dos Estados Unidos, ela propôs o controle de preços dos alimentos, que dispararam depois da pandemia e não voltaram mais ao que eram antes. Sua proposta, se ela ganhar as eleições, é trabalhar para que o Congresso aprove em seus primeiros cem dias de governo uma proibição nacional contra o que chamou de “manipulação de preços”.

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Ela afirmou que pretende conceder autoridade à Comissão de Comércio Federal (FTC, na sigla em inglês) e aos promotores dos Estados para penalizar as empresas que promoverem “aumentos injustificados” nos preços dos alimentos e tiverem “lucros exagerados”. Disse também que vai acompanhar de perto as fusões de empresas do setor e investigar “agressivamente” a fixação dos preços da carne ao longo das cadeias de suprimento.

“Essa não é uma política sensata e eu penso que a maior esperança é que ela termine sendo muito de retórica e nada de realidade. Não há upside aqui e há alguns downsides”, afirmou ao New York Times o economista Jason Furman, professor da Universidade Harvard e presidente do Conselho de Assessores Econômicos do governo Obama, resumindo de forma emblemática a reação da ala mais moderada dos democratas às propostas de Kamala.

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O Washington Post e o Wall Street Journal, que trataram a questão em editoriais, foram na mesma linha. “Felizmente, a manobra da sra. Harris foi recebida com um ceticismo quase instantâneo. Em vez de entregar um plano substancial, ela desperdiçou o momento em truques populistas”, disse o Post. “O problema da sra. Harris é que as políticas econômicas do governo Biden-Harris provocaram inflação e queda da renda real, e a resposta da vice-presidente é piorar isso recorrendo a um populismo de esquerda de estilo venezuelano. Isso não é um exagero”, afirmou o Journal.

A colunista do Washington Post e comentarista de política e economia da CNN, Catherine Rampell, foi outra voz que engrossou o coro, sem meias palavras. “É difícil dizer o quanto essa política é ruim. Na melhor hipótese, isso vai levar à escassez, ao mercado negro e ao armazenamento de produtos”, afirmou Catherine, ao analisar o plano num programa da CNN logo após sua divulgação. “O que vai determinar o quanto as mercearias e os supermercados cobram pelo leite e pelos ovos não será a oferta e a procura, mas algum burocrata em Washington, o que me parece algo totalmente inviável.”

“Aumentos injustos”

As propostas heterodoxas de Kamala incluem também medidas controversas para conter a crise habitacional americana, com a concessão de subsídios e incentivos fiscais. Para reduzir o custo da casa própria e aumentar a oferta de imóveis residenciais, Kamala propôs a liberação de US$ 25 mil para compradores da primeira moradia, a concessão de um crédito tributário para as empresas que construírem imóveis para locação a preços acessíveis e a criação de estímulos para viabilizar a construção de três milhões de novas moradias nos próximos quatro anos.

A candidata democrata também defendeu a fixação de um teto para “aumentos injustos” nos aluguéis, prometeu “ir atrás” dos proprietários corporativos de imóveis para locação, limitando o reajuste em 5% durante um período de dois anos para proprietários que têm mais de 50 unidades para alugar, e ameaçou com aumento de impostos quem não seguir o índice de reajuste oficial.

Ela disse que pretende trabalhar com o Congresso para aprovar uma legislação que limite a participação de investidores “predatórios” no mercado de imóveis para locação, acusados por ela de combinar os reajustes entre si, e o uso de ferramentas impulsionadas por algoritmos para definir os aumentos dos aluguéis. “O controle dos aluguéis é algo tão desacreditado quanto qualquer outra política econômica da caixa de ferramentas”, afirmou o economista Jason Furman em outra entrevista, desta vez ao Washington Post. “A ideia de que nós vamos revivê-lo e expandi-lo vai piorar e não melhorar a oferta de imóveis.”

Em relação à saúde, Kamala disse que quer trabalhar com os Estados para cancelar as dívidas dos americanos na área e conter as “práticas abusivas” das companhias farmacêuticas, que puxam para cima os preços dos medicamentos. Ela prometeu expandir para todos os americanos o teto de US$ 35 para o gasto mensal com insulina, hoje em vigor apenas para os idosos que estão no sistema público de saúde (Medicare). Prometeu também ampliar para toda população o teto de US$ 2 mil por ano para os gastos com medicamentos de uso restrito, que deverá entrar em vigor em janeiro de 2025 para os idosos do Medicare. Um vídeo de um comentário feito por Kamala em 2019, ameaçando quebrar patentes de indústrias farmacêuticas que não seguissem as regras do jogo, viralizou nas últimas semanas, com o objetivo de reforçar seu perfil intervencionista e anti-business.

Até agora, porém, Kamala ainda não disse como pretende financiar a gastança embutida em seu programa econômico, que deverá chegar a US$ 1,7 trilhão em dez anos, de acordo com cálculos do Comitê para um Orçamento Federal Responsável, uma organização não partidária voltada para a fiscalização das contas públicas, o que deve ampliar o enorme déficit já existente nas finanças governamentais.

Decepção

“Culpando as grandes empresas, ela prometeu ir atrás das ‘manipulações de preços’ por mercearias, dos proprietários de imóveis, das companhias farmacêuticas e de outros supostos infratores por meio da Comissão de Comércio Federal”, afirmou o editorial sobre o programa econômico de Kamala publicado pelo Washington Post. “Com certeza, toda campanha faz promessas caras que nunca irão se concretizar, especialmente com um Congresso dividido. Mas, mesmo ajustado para os padrões econômicos de campanha, o discurso da sra. Harris se coloca como uma decepção.”

Por enquanto, a percepção negativa do plano de Kamala ainda não se refletiu plenamente nas pesquisas eleitorais. Só nos próximos dias e semanas será possível medir com mais precisão a extensão do estrago, se é que ele vai se confirmar. Mas desde já se pode dizer, sem medo de errar, que Kamala fez uma aposta de altíssimo risco, que “rachou” os democratas e os simpatizantes do partido. Se, ainda assim, ela ganhar as eleições, não será uma surpresa se uma versão americana dos velhos “fiscais do Sarney”, que surgiram na época do Cruzado para fiscalizar o congelamento de preços, aparecer na terra do Tio Sam, por mais inverossímil que isso possa parecer quando se leva em conta a história dos Estados Unidos.

Nas semanas que antecederam a Convenção Nacional do Partido Democrata, realizada de 19 a 22 de agosto em Chicago, no meio oeste dos Estados Unidos, tudo parecia caminhar às mil maravilhas para a vice-presidente do país, Kamala Harris, que foi confirmada como candidata da legenda à presidência, nas eleições de 5 de novembro.

Com a desistência do atual presidente Joe Biden de concorrer à reeleição, após forte pressão da cúpula democrata, e seu apoio à escolha de Kamala para substituí-lo na disputa, um novo astral tomou conta da campanha do partido. Mesmo sem ter passado pelas primárias para chegar à convenção na condição de pré-candidata, como reza o rito partidário, Kamala conseguiu reverter rapidamente a situação desfavorável aos democratas nas pesquisas, deixando o ex-presidente Donald Trump, candidato pelo Partido Republicano, na defensiva.

Kamala Harris: percepção negativa sobre seu programa econômico inclui os democratas mais moderados Foto: Brendan Smialowski/BRENDAN SMIALOWSKI

Em alguns levantamentos nacionais e em vários dos chamados swing states (aqueles que costumam oscilar entre candidatos democratas ou republicanos nas eleições), como Pensilvânia, Michigan e Wisconsin, Kamala chegou até a ultrapassar Trump, que vinha liderando as sondagens, reforçando as chances de o partido continuar no poder até 2028.

Ancorada na palavra “alegria” (joy, em inglês), escolhida pelos marqueteiros para dar o tom de sua campanha e reproduzida em ritmo de bate-estaca por veículos de comunicação do país, Kamala procurou criar um clima positivo em torno de sua candidatura, em oposição à exploração do “medo” (fear) das pessoas, que os democratas consideram como marca registrada de Trump, em quem ela e seus apoiadores tentam colar a pecha de weird (esquisito), assim como em seu vice, o senador J.D. Vance.

Pelo desenrolar dos acontecimentos, a impressão que se tinha até poucos dias atrás era de que a “onda azul” – a cor do Partido Democrata – estava se transformando num tsunami difícil de ser contido. Temas explorados por Trump em sua campanha, que marcaram o governo Biden-Kamala, como a alta da inflação, a explosão da imigração ilegal, o apoio às políticas identitárias, a retirada desastrosa das tropas americanas do Afeganistão e a pressão sobre Israel para selar uma trégua com os terroristas do Hamas, pareciam não ser suficientes para o candidato republicano superar sua rejeição junto a uma parcela considerável dos eleitores e abalar a escalada de Kamala – vista por seus opositores como uma espécie de “rainha” do “wokerismo” no país – rumo à Casa Branca.

O otimismo que tomou conta das fileiras democratas chegou a tal ponto que o cineasta Michael Moore, um ativista ruidoso da esquerda americana que previu a vitória de Trump em 2016 e a vitória de Biden em 2020, fez um alerta para Kamala e seus seguidores não entrarem no clima do “já ganhou”. “Estava tão depressivo por tantas semanas e então, subitamente, não estava depressivo. Agora, estou esperançoso, mas cabe a nós não perder a oportunidade – e temos uma história de perder (as oportunidades que surgem)”, afirmou.

De repente, porém, de forma tão súbita quanto a virada ocorrida no astral dos democratas e seus apoiadores após a desistência de Biden, as coisas começaram a mudar, como se as palavras de Moore tivessem se tornado uma espécie de profecia em tempo real no atual estágio da campanha. Apesar da euforia que tomou conta dos democratas durante a convenção do partido, algumas pesquisas voltaram a mostrar Trump na dianteira nos últimos dias, inclusive em swing states como Arizona e Nevada, sugerindo que a eleição não deverá ser a barbada que muitos democratas estavam imaginando e que o aumento da exposição de Kamala e de suas posições em relação a temas caros aos republicanos, consideradas excessivamente “progressistas”, começou a cobrar seu tributo.

A informação divulgada na quarta-feira, 21, de que o candidato independente Robert Kennedy Jr. – que conta com cerca de 5% das preferências nas pesquisas – poderá desistir de sua candidatura e apoiar Trump, também deverá representar, se for confirmada, um duro golpe para Kamala e dará uma contribuição inestimável para o candidato republicano, numa campanha disputada voto a voto.

Agora, a pior notícia veio da economia – um campo minado que está novamente no topo das prioridades dos eleitores nesta eleição. Com o anúncio das grandes linhas do programa econômico de Kamala na sexta-feira, 16, depois de ela passar semanas sem nada revelar sobre suas propostas e se mantendo distante da imprensa, o “encanto” que cercava sua campanha até agora, unindo os eleitores de esquerda, de centro-esquerda e boa parte do centro político, parece ter se “quebrado”.

Viés de esquerda

Embora alguns economistas mais afinados aos democratas tenham apoiado o plano de Kamala, como o prêmio Nobel Paul Krugman, que o considerou como “uma agenda sólida de centro-esquerda”, ela se tornou alvo de uma saraivada de críticas por suas propostas para a economia. Não apenas de Trump e de seus aliados, que chamaram seu programa de “socialista” e de “comunista”, mas também de democratas mais moderados e de meios de comunicação como o Washington Post e a CNN, considerados pela direita e centro-direita americanas como veículos com viés de esquerda e mais amigáveis a seus adversários.

Em vez de seguir na trilha do liberalismo econômico abraçada pelos democratas nos tempos de Bill Clinton, nos anos 1990, que levou o partido de volta à Casa Branca após 12 anos na oposição durante os governos de Reagan e Bush (o pai) e que se manteve, de certa forma, nos dois mandatos de Obama (2009-2017), Kamala optou por um programa mais à esquerda, aprofundando o intervencionismo governamental e a gastança desenfreada que marcaram a gestão de Biden, que ela apoiou de forma incondicional.

Batizado de “Kamalanomics”, o programa econômico anunciado por Kamala lembra, em boa medida, os planos heterodoxos implementados no Brasil, como o Cruzado, adotado em meados dos anos 1980, cujos resultados deixaram sequelas por anos a fio, ao desequilibrar o sistema de formação de preços da economia. Lembra também a tentativa fracassada do ex-presidente Richard Nixon (1969-1974) – que era, ironicamente, uma das principais lideranças do Partido Republicano – de controlar os preços no país.

Para enfrentar a inflação, que Kamala atribuiu à “ganância” das grandes empresas no discurso que fez ao lançar seu plano, na Carolina do Norte, na costa leste dos Estados Unidos, ela propôs o controle de preços dos alimentos, que dispararam depois da pandemia e não voltaram mais ao que eram antes. Sua proposta, se ela ganhar as eleições, é trabalhar para que o Congresso aprove em seus primeiros cem dias de governo uma proibição nacional contra o que chamou de “manipulação de preços”.

Ela afirmou que pretende conceder autoridade à Comissão de Comércio Federal (FTC, na sigla em inglês) e aos promotores dos Estados para penalizar as empresas que promoverem “aumentos injustificados” nos preços dos alimentos e tiverem “lucros exagerados”. Disse também que vai acompanhar de perto as fusões de empresas do setor e investigar “agressivamente” a fixação dos preços da carne ao longo das cadeias de suprimento.

“Essa não é uma política sensata e eu penso que a maior esperança é que ela termine sendo muito de retórica e nada de realidade. Não há upside aqui e há alguns downsides”, afirmou ao New York Times o economista Jason Furman, professor da Universidade Harvard e presidente do Conselho de Assessores Econômicos do governo Obama, resumindo de forma emblemática a reação da ala mais moderada dos democratas às propostas de Kamala.

O Washington Post e o Wall Street Journal, que trataram a questão em editoriais, foram na mesma linha. “Felizmente, a manobra da sra. Harris foi recebida com um ceticismo quase instantâneo. Em vez de entregar um plano substancial, ela desperdiçou o momento em truques populistas”, disse o Post. “O problema da sra. Harris é que as políticas econômicas do governo Biden-Harris provocaram inflação e queda da renda real, e a resposta da vice-presidente é piorar isso recorrendo a um populismo de esquerda de estilo venezuelano. Isso não é um exagero”, afirmou o Journal.

A colunista do Washington Post e comentarista de política e economia da CNN, Catherine Rampell, foi outra voz que engrossou o coro, sem meias palavras. “É difícil dizer o quanto essa política é ruim. Na melhor hipótese, isso vai levar à escassez, ao mercado negro e ao armazenamento de produtos”, afirmou Catherine, ao analisar o plano num programa da CNN logo após sua divulgação. “O que vai determinar o quanto as mercearias e os supermercados cobram pelo leite e pelos ovos não será a oferta e a procura, mas algum burocrata em Washington, o que me parece algo totalmente inviável.”

“Aumentos injustos”

As propostas heterodoxas de Kamala incluem também medidas controversas para conter a crise habitacional americana, com a concessão de subsídios e incentivos fiscais. Para reduzir o custo da casa própria e aumentar a oferta de imóveis residenciais, Kamala propôs a liberação de US$ 25 mil para compradores da primeira moradia, a concessão de um crédito tributário para as empresas que construírem imóveis para locação a preços acessíveis e a criação de estímulos para viabilizar a construção de três milhões de novas moradias nos próximos quatro anos.

A candidata democrata também defendeu a fixação de um teto para “aumentos injustos” nos aluguéis, prometeu “ir atrás” dos proprietários corporativos de imóveis para locação, limitando o reajuste em 5% durante um período de dois anos para proprietários que têm mais de 50 unidades para alugar, e ameaçou com aumento de impostos quem não seguir o índice de reajuste oficial.

Ela disse que pretende trabalhar com o Congresso para aprovar uma legislação que limite a participação de investidores “predatórios” no mercado de imóveis para locação, acusados por ela de combinar os reajustes entre si, e o uso de ferramentas impulsionadas por algoritmos para definir os aumentos dos aluguéis. “O controle dos aluguéis é algo tão desacreditado quanto qualquer outra política econômica da caixa de ferramentas”, afirmou o economista Jason Furman em outra entrevista, desta vez ao Washington Post. “A ideia de que nós vamos revivê-lo e expandi-lo vai piorar e não melhorar a oferta de imóveis.”

Em relação à saúde, Kamala disse que quer trabalhar com os Estados para cancelar as dívidas dos americanos na área e conter as “práticas abusivas” das companhias farmacêuticas, que puxam para cima os preços dos medicamentos. Ela prometeu expandir para todos os americanos o teto de US$ 35 para o gasto mensal com insulina, hoje em vigor apenas para os idosos que estão no sistema público de saúde (Medicare). Prometeu também ampliar para toda população o teto de US$ 2 mil por ano para os gastos com medicamentos de uso restrito, que deverá entrar em vigor em janeiro de 2025 para os idosos do Medicare. Um vídeo de um comentário feito por Kamala em 2019, ameaçando quebrar patentes de indústrias farmacêuticas que não seguissem as regras do jogo, viralizou nas últimas semanas, com o objetivo de reforçar seu perfil intervencionista e anti-business.

Até agora, porém, Kamala ainda não disse como pretende financiar a gastança embutida em seu programa econômico, que deverá chegar a US$ 1,7 trilhão em dez anos, de acordo com cálculos do Comitê para um Orçamento Federal Responsável, uma organização não partidária voltada para a fiscalização das contas públicas, o que deve ampliar o enorme déficit já existente nas finanças governamentais.

Decepção

“Culpando as grandes empresas, ela prometeu ir atrás das ‘manipulações de preços’ por mercearias, dos proprietários de imóveis, das companhias farmacêuticas e de outros supostos infratores por meio da Comissão de Comércio Federal”, afirmou o editorial sobre o programa econômico de Kamala publicado pelo Washington Post. “Com certeza, toda campanha faz promessas caras que nunca irão se concretizar, especialmente com um Congresso dividido. Mas, mesmo ajustado para os padrões econômicos de campanha, o discurso da sra. Harris se coloca como uma decepção.”

Por enquanto, a percepção negativa do plano de Kamala ainda não se refletiu plenamente nas pesquisas eleitorais. Só nos próximos dias e semanas será possível medir com mais precisão a extensão do estrago, se é que ele vai se confirmar. Mas desde já se pode dizer, sem medo de errar, que Kamala fez uma aposta de altíssimo risco, que “rachou” os democratas e os simpatizantes do partido. Se, ainda assim, ela ganhar as eleições, não será uma surpresa se uma versão americana dos velhos “fiscais do Sarney”, que surgiram na época do Cruzado para fiscalizar o congelamento de preços, aparecer na terra do Tio Sam, por mais inverossímil que isso possa parecer quando se leva em conta a história dos Estados Unidos.

Nas semanas que antecederam a Convenção Nacional do Partido Democrata, realizada de 19 a 22 de agosto em Chicago, no meio oeste dos Estados Unidos, tudo parecia caminhar às mil maravilhas para a vice-presidente do país, Kamala Harris, que foi confirmada como candidata da legenda à presidência, nas eleições de 5 de novembro.

Com a desistência do atual presidente Joe Biden de concorrer à reeleição, após forte pressão da cúpula democrata, e seu apoio à escolha de Kamala para substituí-lo na disputa, um novo astral tomou conta da campanha do partido. Mesmo sem ter passado pelas primárias para chegar à convenção na condição de pré-candidata, como reza o rito partidário, Kamala conseguiu reverter rapidamente a situação desfavorável aos democratas nas pesquisas, deixando o ex-presidente Donald Trump, candidato pelo Partido Republicano, na defensiva.

Kamala Harris: percepção negativa sobre seu programa econômico inclui os democratas mais moderados Foto: Brendan Smialowski/BRENDAN SMIALOWSKI

Em alguns levantamentos nacionais e em vários dos chamados swing states (aqueles que costumam oscilar entre candidatos democratas ou republicanos nas eleições), como Pensilvânia, Michigan e Wisconsin, Kamala chegou até a ultrapassar Trump, que vinha liderando as sondagens, reforçando as chances de o partido continuar no poder até 2028.

Ancorada na palavra “alegria” (joy, em inglês), escolhida pelos marqueteiros para dar o tom de sua campanha e reproduzida em ritmo de bate-estaca por veículos de comunicação do país, Kamala procurou criar um clima positivo em torno de sua candidatura, em oposição à exploração do “medo” (fear) das pessoas, que os democratas consideram como marca registrada de Trump, em quem ela e seus apoiadores tentam colar a pecha de weird (esquisito), assim como em seu vice, o senador J.D. Vance.

Pelo desenrolar dos acontecimentos, a impressão que se tinha até poucos dias atrás era de que a “onda azul” – a cor do Partido Democrata – estava se transformando num tsunami difícil de ser contido. Temas explorados por Trump em sua campanha, que marcaram o governo Biden-Kamala, como a alta da inflação, a explosão da imigração ilegal, o apoio às políticas identitárias, a retirada desastrosa das tropas americanas do Afeganistão e a pressão sobre Israel para selar uma trégua com os terroristas do Hamas, pareciam não ser suficientes para o candidato republicano superar sua rejeição junto a uma parcela considerável dos eleitores e abalar a escalada de Kamala – vista por seus opositores como uma espécie de “rainha” do “wokerismo” no país – rumo à Casa Branca.

O otimismo que tomou conta das fileiras democratas chegou a tal ponto que o cineasta Michael Moore, um ativista ruidoso da esquerda americana que previu a vitória de Trump em 2016 e a vitória de Biden em 2020, fez um alerta para Kamala e seus seguidores não entrarem no clima do “já ganhou”. “Estava tão depressivo por tantas semanas e então, subitamente, não estava depressivo. Agora, estou esperançoso, mas cabe a nós não perder a oportunidade – e temos uma história de perder (as oportunidades que surgem)”, afirmou.

De repente, porém, de forma tão súbita quanto a virada ocorrida no astral dos democratas e seus apoiadores após a desistência de Biden, as coisas começaram a mudar, como se as palavras de Moore tivessem se tornado uma espécie de profecia em tempo real no atual estágio da campanha. Apesar da euforia que tomou conta dos democratas durante a convenção do partido, algumas pesquisas voltaram a mostrar Trump na dianteira nos últimos dias, inclusive em swing states como Arizona e Nevada, sugerindo que a eleição não deverá ser a barbada que muitos democratas estavam imaginando e que o aumento da exposição de Kamala e de suas posições em relação a temas caros aos republicanos, consideradas excessivamente “progressistas”, começou a cobrar seu tributo.

A informação divulgada na quarta-feira, 21, de que o candidato independente Robert Kennedy Jr. – que conta com cerca de 5% das preferências nas pesquisas – poderá desistir de sua candidatura e apoiar Trump, também deverá representar, se for confirmada, um duro golpe para Kamala e dará uma contribuição inestimável para o candidato republicano, numa campanha disputada voto a voto.

Agora, a pior notícia veio da economia – um campo minado que está novamente no topo das prioridades dos eleitores nesta eleição. Com o anúncio das grandes linhas do programa econômico de Kamala na sexta-feira, 16, depois de ela passar semanas sem nada revelar sobre suas propostas e se mantendo distante da imprensa, o “encanto” que cercava sua campanha até agora, unindo os eleitores de esquerda, de centro-esquerda e boa parte do centro político, parece ter se “quebrado”.

Viés de esquerda

Embora alguns economistas mais afinados aos democratas tenham apoiado o plano de Kamala, como o prêmio Nobel Paul Krugman, que o considerou como “uma agenda sólida de centro-esquerda”, ela se tornou alvo de uma saraivada de críticas por suas propostas para a economia. Não apenas de Trump e de seus aliados, que chamaram seu programa de “socialista” e de “comunista”, mas também de democratas mais moderados e de meios de comunicação como o Washington Post e a CNN, considerados pela direita e centro-direita americanas como veículos com viés de esquerda e mais amigáveis a seus adversários.

Em vez de seguir na trilha do liberalismo econômico abraçada pelos democratas nos tempos de Bill Clinton, nos anos 1990, que levou o partido de volta à Casa Branca após 12 anos na oposição durante os governos de Reagan e Bush (o pai) e que se manteve, de certa forma, nos dois mandatos de Obama (2009-2017), Kamala optou por um programa mais à esquerda, aprofundando o intervencionismo governamental e a gastança desenfreada que marcaram a gestão de Biden, que ela apoiou de forma incondicional.

Batizado de “Kamalanomics”, o programa econômico anunciado por Kamala lembra, em boa medida, os planos heterodoxos implementados no Brasil, como o Cruzado, adotado em meados dos anos 1980, cujos resultados deixaram sequelas por anos a fio, ao desequilibrar o sistema de formação de preços da economia. Lembra também a tentativa fracassada do ex-presidente Richard Nixon (1969-1974) – que era, ironicamente, uma das principais lideranças do Partido Republicano – de controlar os preços no país.

Para enfrentar a inflação, que Kamala atribuiu à “ganância” das grandes empresas no discurso que fez ao lançar seu plano, na Carolina do Norte, na costa leste dos Estados Unidos, ela propôs o controle de preços dos alimentos, que dispararam depois da pandemia e não voltaram mais ao que eram antes. Sua proposta, se ela ganhar as eleições, é trabalhar para que o Congresso aprove em seus primeiros cem dias de governo uma proibição nacional contra o que chamou de “manipulação de preços”.

Ela afirmou que pretende conceder autoridade à Comissão de Comércio Federal (FTC, na sigla em inglês) e aos promotores dos Estados para penalizar as empresas que promoverem “aumentos injustificados” nos preços dos alimentos e tiverem “lucros exagerados”. Disse também que vai acompanhar de perto as fusões de empresas do setor e investigar “agressivamente” a fixação dos preços da carne ao longo das cadeias de suprimento.

“Essa não é uma política sensata e eu penso que a maior esperança é que ela termine sendo muito de retórica e nada de realidade. Não há upside aqui e há alguns downsides”, afirmou ao New York Times o economista Jason Furman, professor da Universidade Harvard e presidente do Conselho de Assessores Econômicos do governo Obama, resumindo de forma emblemática a reação da ala mais moderada dos democratas às propostas de Kamala.

O Washington Post e o Wall Street Journal, que trataram a questão em editoriais, foram na mesma linha. “Felizmente, a manobra da sra. Harris foi recebida com um ceticismo quase instantâneo. Em vez de entregar um plano substancial, ela desperdiçou o momento em truques populistas”, disse o Post. “O problema da sra. Harris é que as políticas econômicas do governo Biden-Harris provocaram inflação e queda da renda real, e a resposta da vice-presidente é piorar isso recorrendo a um populismo de esquerda de estilo venezuelano. Isso não é um exagero”, afirmou o Journal.

A colunista do Washington Post e comentarista de política e economia da CNN, Catherine Rampell, foi outra voz que engrossou o coro, sem meias palavras. “É difícil dizer o quanto essa política é ruim. Na melhor hipótese, isso vai levar à escassez, ao mercado negro e ao armazenamento de produtos”, afirmou Catherine, ao analisar o plano num programa da CNN logo após sua divulgação. “O que vai determinar o quanto as mercearias e os supermercados cobram pelo leite e pelos ovos não será a oferta e a procura, mas algum burocrata em Washington, o que me parece algo totalmente inviável.”

“Aumentos injustos”

As propostas heterodoxas de Kamala incluem também medidas controversas para conter a crise habitacional americana, com a concessão de subsídios e incentivos fiscais. Para reduzir o custo da casa própria e aumentar a oferta de imóveis residenciais, Kamala propôs a liberação de US$ 25 mil para compradores da primeira moradia, a concessão de um crédito tributário para as empresas que construírem imóveis para locação a preços acessíveis e a criação de estímulos para viabilizar a construção de três milhões de novas moradias nos próximos quatro anos.

A candidata democrata também defendeu a fixação de um teto para “aumentos injustos” nos aluguéis, prometeu “ir atrás” dos proprietários corporativos de imóveis para locação, limitando o reajuste em 5% durante um período de dois anos para proprietários que têm mais de 50 unidades para alugar, e ameaçou com aumento de impostos quem não seguir o índice de reajuste oficial.

Ela disse que pretende trabalhar com o Congresso para aprovar uma legislação que limite a participação de investidores “predatórios” no mercado de imóveis para locação, acusados por ela de combinar os reajustes entre si, e o uso de ferramentas impulsionadas por algoritmos para definir os aumentos dos aluguéis. “O controle dos aluguéis é algo tão desacreditado quanto qualquer outra política econômica da caixa de ferramentas”, afirmou o economista Jason Furman em outra entrevista, desta vez ao Washington Post. “A ideia de que nós vamos revivê-lo e expandi-lo vai piorar e não melhorar a oferta de imóveis.”

Em relação à saúde, Kamala disse que quer trabalhar com os Estados para cancelar as dívidas dos americanos na área e conter as “práticas abusivas” das companhias farmacêuticas, que puxam para cima os preços dos medicamentos. Ela prometeu expandir para todos os americanos o teto de US$ 35 para o gasto mensal com insulina, hoje em vigor apenas para os idosos que estão no sistema público de saúde (Medicare). Prometeu também ampliar para toda população o teto de US$ 2 mil por ano para os gastos com medicamentos de uso restrito, que deverá entrar em vigor em janeiro de 2025 para os idosos do Medicare. Um vídeo de um comentário feito por Kamala em 2019, ameaçando quebrar patentes de indústrias farmacêuticas que não seguissem as regras do jogo, viralizou nas últimas semanas, com o objetivo de reforçar seu perfil intervencionista e anti-business.

Até agora, porém, Kamala ainda não disse como pretende financiar a gastança embutida em seu programa econômico, que deverá chegar a US$ 1,7 trilhão em dez anos, de acordo com cálculos do Comitê para um Orçamento Federal Responsável, uma organização não partidária voltada para a fiscalização das contas públicas, o que deve ampliar o enorme déficit já existente nas finanças governamentais.

Decepção

“Culpando as grandes empresas, ela prometeu ir atrás das ‘manipulações de preços’ por mercearias, dos proprietários de imóveis, das companhias farmacêuticas e de outros supostos infratores por meio da Comissão de Comércio Federal”, afirmou o editorial sobre o programa econômico de Kamala publicado pelo Washington Post. “Com certeza, toda campanha faz promessas caras que nunca irão se concretizar, especialmente com um Congresso dividido. Mas, mesmo ajustado para os padrões econômicos de campanha, o discurso da sra. Harris se coloca como uma decepção.”

Por enquanto, a percepção negativa do plano de Kamala ainda não se refletiu plenamente nas pesquisas eleitorais. Só nos próximos dias e semanas será possível medir com mais precisão a extensão do estrago, se é que ele vai se confirmar. Mas desde já se pode dizer, sem medo de errar, que Kamala fez uma aposta de altíssimo risco, que “rachou” os democratas e os simpatizantes do partido. Se, ainda assim, ela ganhar as eleições, não será uma surpresa se uma versão americana dos velhos “fiscais do Sarney”, que surgiram na época do Cruzado para fiscalizar o congelamento de preços, aparecer na terra do Tio Sam, por mais inverossímil que isso possa parecer quando se leva em conta a história dos Estados Unidos.

Nas semanas que antecederam a Convenção Nacional do Partido Democrata, realizada de 19 a 22 de agosto em Chicago, no meio oeste dos Estados Unidos, tudo parecia caminhar às mil maravilhas para a vice-presidente do país, Kamala Harris, que foi confirmada como candidata da legenda à presidência, nas eleições de 5 de novembro.

Com a desistência do atual presidente Joe Biden de concorrer à reeleição, após forte pressão da cúpula democrata, e seu apoio à escolha de Kamala para substituí-lo na disputa, um novo astral tomou conta da campanha do partido. Mesmo sem ter passado pelas primárias para chegar à convenção na condição de pré-candidata, como reza o rito partidário, Kamala conseguiu reverter rapidamente a situação desfavorável aos democratas nas pesquisas, deixando o ex-presidente Donald Trump, candidato pelo Partido Republicano, na defensiva.

Kamala Harris: percepção negativa sobre seu programa econômico inclui os democratas mais moderados Foto: Brendan Smialowski/BRENDAN SMIALOWSKI

Em alguns levantamentos nacionais e em vários dos chamados swing states (aqueles que costumam oscilar entre candidatos democratas ou republicanos nas eleições), como Pensilvânia, Michigan e Wisconsin, Kamala chegou até a ultrapassar Trump, que vinha liderando as sondagens, reforçando as chances de o partido continuar no poder até 2028.

Ancorada na palavra “alegria” (joy, em inglês), escolhida pelos marqueteiros para dar o tom de sua campanha e reproduzida em ritmo de bate-estaca por veículos de comunicação do país, Kamala procurou criar um clima positivo em torno de sua candidatura, em oposição à exploração do “medo” (fear) das pessoas, que os democratas consideram como marca registrada de Trump, em quem ela e seus apoiadores tentam colar a pecha de weird (esquisito), assim como em seu vice, o senador J.D. Vance.

Pelo desenrolar dos acontecimentos, a impressão que se tinha até poucos dias atrás era de que a “onda azul” – a cor do Partido Democrata – estava se transformando num tsunami difícil de ser contido. Temas explorados por Trump em sua campanha, que marcaram o governo Biden-Kamala, como a alta da inflação, a explosão da imigração ilegal, o apoio às políticas identitárias, a retirada desastrosa das tropas americanas do Afeganistão e a pressão sobre Israel para selar uma trégua com os terroristas do Hamas, pareciam não ser suficientes para o candidato republicano superar sua rejeição junto a uma parcela considerável dos eleitores e abalar a escalada de Kamala – vista por seus opositores como uma espécie de “rainha” do “wokerismo” no país – rumo à Casa Branca.

O otimismo que tomou conta das fileiras democratas chegou a tal ponto que o cineasta Michael Moore, um ativista ruidoso da esquerda americana que previu a vitória de Trump em 2016 e a vitória de Biden em 2020, fez um alerta para Kamala e seus seguidores não entrarem no clima do “já ganhou”. “Estava tão depressivo por tantas semanas e então, subitamente, não estava depressivo. Agora, estou esperançoso, mas cabe a nós não perder a oportunidade – e temos uma história de perder (as oportunidades que surgem)”, afirmou.

De repente, porém, de forma tão súbita quanto a virada ocorrida no astral dos democratas e seus apoiadores após a desistência de Biden, as coisas começaram a mudar, como se as palavras de Moore tivessem se tornado uma espécie de profecia em tempo real no atual estágio da campanha. Apesar da euforia que tomou conta dos democratas durante a convenção do partido, algumas pesquisas voltaram a mostrar Trump na dianteira nos últimos dias, inclusive em swing states como Arizona e Nevada, sugerindo que a eleição não deverá ser a barbada que muitos democratas estavam imaginando e que o aumento da exposição de Kamala e de suas posições em relação a temas caros aos republicanos, consideradas excessivamente “progressistas”, começou a cobrar seu tributo.

A informação divulgada na quarta-feira, 21, de que o candidato independente Robert Kennedy Jr. – que conta com cerca de 5% das preferências nas pesquisas – poderá desistir de sua candidatura e apoiar Trump, também deverá representar, se for confirmada, um duro golpe para Kamala e dará uma contribuição inestimável para o candidato republicano, numa campanha disputada voto a voto.

Agora, a pior notícia veio da economia – um campo minado que está novamente no topo das prioridades dos eleitores nesta eleição. Com o anúncio das grandes linhas do programa econômico de Kamala na sexta-feira, 16, depois de ela passar semanas sem nada revelar sobre suas propostas e se mantendo distante da imprensa, o “encanto” que cercava sua campanha até agora, unindo os eleitores de esquerda, de centro-esquerda e boa parte do centro político, parece ter se “quebrado”.

Viés de esquerda

Embora alguns economistas mais afinados aos democratas tenham apoiado o plano de Kamala, como o prêmio Nobel Paul Krugman, que o considerou como “uma agenda sólida de centro-esquerda”, ela se tornou alvo de uma saraivada de críticas por suas propostas para a economia. Não apenas de Trump e de seus aliados, que chamaram seu programa de “socialista” e de “comunista”, mas também de democratas mais moderados e de meios de comunicação como o Washington Post e a CNN, considerados pela direita e centro-direita americanas como veículos com viés de esquerda e mais amigáveis a seus adversários.

Em vez de seguir na trilha do liberalismo econômico abraçada pelos democratas nos tempos de Bill Clinton, nos anos 1990, que levou o partido de volta à Casa Branca após 12 anos na oposição durante os governos de Reagan e Bush (o pai) e que se manteve, de certa forma, nos dois mandatos de Obama (2009-2017), Kamala optou por um programa mais à esquerda, aprofundando o intervencionismo governamental e a gastança desenfreada que marcaram a gestão de Biden, que ela apoiou de forma incondicional.

Batizado de “Kamalanomics”, o programa econômico anunciado por Kamala lembra, em boa medida, os planos heterodoxos implementados no Brasil, como o Cruzado, adotado em meados dos anos 1980, cujos resultados deixaram sequelas por anos a fio, ao desequilibrar o sistema de formação de preços da economia. Lembra também a tentativa fracassada do ex-presidente Richard Nixon (1969-1974) – que era, ironicamente, uma das principais lideranças do Partido Republicano – de controlar os preços no país.

Para enfrentar a inflação, que Kamala atribuiu à “ganância” das grandes empresas no discurso que fez ao lançar seu plano, na Carolina do Norte, na costa leste dos Estados Unidos, ela propôs o controle de preços dos alimentos, que dispararam depois da pandemia e não voltaram mais ao que eram antes. Sua proposta, se ela ganhar as eleições, é trabalhar para que o Congresso aprove em seus primeiros cem dias de governo uma proibição nacional contra o que chamou de “manipulação de preços”.

Ela afirmou que pretende conceder autoridade à Comissão de Comércio Federal (FTC, na sigla em inglês) e aos promotores dos Estados para penalizar as empresas que promoverem “aumentos injustificados” nos preços dos alimentos e tiverem “lucros exagerados”. Disse também que vai acompanhar de perto as fusões de empresas do setor e investigar “agressivamente” a fixação dos preços da carne ao longo das cadeias de suprimento.

“Essa não é uma política sensata e eu penso que a maior esperança é que ela termine sendo muito de retórica e nada de realidade. Não há upside aqui e há alguns downsides”, afirmou ao New York Times o economista Jason Furman, professor da Universidade Harvard e presidente do Conselho de Assessores Econômicos do governo Obama, resumindo de forma emblemática a reação da ala mais moderada dos democratas às propostas de Kamala.

O Washington Post e o Wall Street Journal, que trataram a questão em editoriais, foram na mesma linha. “Felizmente, a manobra da sra. Harris foi recebida com um ceticismo quase instantâneo. Em vez de entregar um plano substancial, ela desperdiçou o momento em truques populistas”, disse o Post. “O problema da sra. Harris é que as políticas econômicas do governo Biden-Harris provocaram inflação e queda da renda real, e a resposta da vice-presidente é piorar isso recorrendo a um populismo de esquerda de estilo venezuelano. Isso não é um exagero”, afirmou o Journal.

A colunista do Washington Post e comentarista de política e economia da CNN, Catherine Rampell, foi outra voz que engrossou o coro, sem meias palavras. “É difícil dizer o quanto essa política é ruim. Na melhor hipótese, isso vai levar à escassez, ao mercado negro e ao armazenamento de produtos”, afirmou Catherine, ao analisar o plano num programa da CNN logo após sua divulgação. “O que vai determinar o quanto as mercearias e os supermercados cobram pelo leite e pelos ovos não será a oferta e a procura, mas algum burocrata em Washington, o que me parece algo totalmente inviável.”

“Aumentos injustos”

As propostas heterodoxas de Kamala incluem também medidas controversas para conter a crise habitacional americana, com a concessão de subsídios e incentivos fiscais. Para reduzir o custo da casa própria e aumentar a oferta de imóveis residenciais, Kamala propôs a liberação de US$ 25 mil para compradores da primeira moradia, a concessão de um crédito tributário para as empresas que construírem imóveis para locação a preços acessíveis e a criação de estímulos para viabilizar a construção de três milhões de novas moradias nos próximos quatro anos.

A candidata democrata também defendeu a fixação de um teto para “aumentos injustos” nos aluguéis, prometeu “ir atrás” dos proprietários corporativos de imóveis para locação, limitando o reajuste em 5% durante um período de dois anos para proprietários que têm mais de 50 unidades para alugar, e ameaçou com aumento de impostos quem não seguir o índice de reajuste oficial.

Ela disse que pretende trabalhar com o Congresso para aprovar uma legislação que limite a participação de investidores “predatórios” no mercado de imóveis para locação, acusados por ela de combinar os reajustes entre si, e o uso de ferramentas impulsionadas por algoritmos para definir os aumentos dos aluguéis. “O controle dos aluguéis é algo tão desacreditado quanto qualquer outra política econômica da caixa de ferramentas”, afirmou o economista Jason Furman em outra entrevista, desta vez ao Washington Post. “A ideia de que nós vamos revivê-lo e expandi-lo vai piorar e não melhorar a oferta de imóveis.”

Em relação à saúde, Kamala disse que quer trabalhar com os Estados para cancelar as dívidas dos americanos na área e conter as “práticas abusivas” das companhias farmacêuticas, que puxam para cima os preços dos medicamentos. Ela prometeu expandir para todos os americanos o teto de US$ 35 para o gasto mensal com insulina, hoje em vigor apenas para os idosos que estão no sistema público de saúde (Medicare). Prometeu também ampliar para toda população o teto de US$ 2 mil por ano para os gastos com medicamentos de uso restrito, que deverá entrar em vigor em janeiro de 2025 para os idosos do Medicare. Um vídeo de um comentário feito por Kamala em 2019, ameaçando quebrar patentes de indústrias farmacêuticas que não seguissem as regras do jogo, viralizou nas últimas semanas, com o objetivo de reforçar seu perfil intervencionista e anti-business.

Até agora, porém, Kamala ainda não disse como pretende financiar a gastança embutida em seu programa econômico, que deverá chegar a US$ 1,7 trilhão em dez anos, de acordo com cálculos do Comitê para um Orçamento Federal Responsável, uma organização não partidária voltada para a fiscalização das contas públicas, o que deve ampliar o enorme déficit já existente nas finanças governamentais.

Decepção

“Culpando as grandes empresas, ela prometeu ir atrás das ‘manipulações de preços’ por mercearias, dos proprietários de imóveis, das companhias farmacêuticas e de outros supostos infratores por meio da Comissão de Comércio Federal”, afirmou o editorial sobre o programa econômico de Kamala publicado pelo Washington Post. “Com certeza, toda campanha faz promessas caras que nunca irão se concretizar, especialmente com um Congresso dividido. Mas, mesmo ajustado para os padrões econômicos de campanha, o discurso da sra. Harris se coloca como uma decepção.”

Por enquanto, a percepção negativa do plano de Kamala ainda não se refletiu plenamente nas pesquisas eleitorais. Só nos próximos dias e semanas será possível medir com mais precisão a extensão do estrago, se é que ele vai se confirmar. Mas desde já se pode dizer, sem medo de errar, que Kamala fez uma aposta de altíssimo risco, que “rachou” os democratas e os simpatizantes do partido. Se, ainda assim, ela ganhar as eleições, não será uma surpresa se uma versão americana dos velhos “fiscais do Sarney”, que surgiram na época do Cruzado para fiscalizar o congelamento de preços, aparecer na terra do Tio Sam, por mais inverossímil que isso possa parecer quando se leva em conta a história dos Estados Unidos.

Nas semanas que antecederam a Convenção Nacional do Partido Democrata, realizada de 19 a 22 de agosto em Chicago, no meio oeste dos Estados Unidos, tudo parecia caminhar às mil maravilhas para a vice-presidente do país, Kamala Harris, que foi confirmada como candidata da legenda à presidência, nas eleições de 5 de novembro.

Com a desistência do atual presidente Joe Biden de concorrer à reeleição, após forte pressão da cúpula democrata, e seu apoio à escolha de Kamala para substituí-lo na disputa, um novo astral tomou conta da campanha do partido. Mesmo sem ter passado pelas primárias para chegar à convenção na condição de pré-candidata, como reza o rito partidário, Kamala conseguiu reverter rapidamente a situação desfavorável aos democratas nas pesquisas, deixando o ex-presidente Donald Trump, candidato pelo Partido Republicano, na defensiva.

Kamala Harris: percepção negativa sobre seu programa econômico inclui os democratas mais moderados Foto: Brendan Smialowski/BRENDAN SMIALOWSKI

Em alguns levantamentos nacionais e em vários dos chamados swing states (aqueles que costumam oscilar entre candidatos democratas ou republicanos nas eleições), como Pensilvânia, Michigan e Wisconsin, Kamala chegou até a ultrapassar Trump, que vinha liderando as sondagens, reforçando as chances de o partido continuar no poder até 2028.

Ancorada na palavra “alegria” (joy, em inglês), escolhida pelos marqueteiros para dar o tom de sua campanha e reproduzida em ritmo de bate-estaca por veículos de comunicação do país, Kamala procurou criar um clima positivo em torno de sua candidatura, em oposição à exploração do “medo” (fear) das pessoas, que os democratas consideram como marca registrada de Trump, em quem ela e seus apoiadores tentam colar a pecha de weird (esquisito), assim como em seu vice, o senador J.D. Vance.

Pelo desenrolar dos acontecimentos, a impressão que se tinha até poucos dias atrás era de que a “onda azul” – a cor do Partido Democrata – estava se transformando num tsunami difícil de ser contido. Temas explorados por Trump em sua campanha, que marcaram o governo Biden-Kamala, como a alta da inflação, a explosão da imigração ilegal, o apoio às políticas identitárias, a retirada desastrosa das tropas americanas do Afeganistão e a pressão sobre Israel para selar uma trégua com os terroristas do Hamas, pareciam não ser suficientes para o candidato republicano superar sua rejeição junto a uma parcela considerável dos eleitores e abalar a escalada de Kamala – vista por seus opositores como uma espécie de “rainha” do “wokerismo” no país – rumo à Casa Branca.

O otimismo que tomou conta das fileiras democratas chegou a tal ponto que o cineasta Michael Moore, um ativista ruidoso da esquerda americana que previu a vitória de Trump em 2016 e a vitória de Biden em 2020, fez um alerta para Kamala e seus seguidores não entrarem no clima do “já ganhou”. “Estava tão depressivo por tantas semanas e então, subitamente, não estava depressivo. Agora, estou esperançoso, mas cabe a nós não perder a oportunidade – e temos uma história de perder (as oportunidades que surgem)”, afirmou.

De repente, porém, de forma tão súbita quanto a virada ocorrida no astral dos democratas e seus apoiadores após a desistência de Biden, as coisas começaram a mudar, como se as palavras de Moore tivessem se tornado uma espécie de profecia em tempo real no atual estágio da campanha. Apesar da euforia que tomou conta dos democratas durante a convenção do partido, algumas pesquisas voltaram a mostrar Trump na dianteira nos últimos dias, inclusive em swing states como Arizona e Nevada, sugerindo que a eleição não deverá ser a barbada que muitos democratas estavam imaginando e que o aumento da exposição de Kamala e de suas posições em relação a temas caros aos republicanos, consideradas excessivamente “progressistas”, começou a cobrar seu tributo.

A informação divulgada na quarta-feira, 21, de que o candidato independente Robert Kennedy Jr. – que conta com cerca de 5% das preferências nas pesquisas – poderá desistir de sua candidatura e apoiar Trump, também deverá representar, se for confirmada, um duro golpe para Kamala e dará uma contribuição inestimável para o candidato republicano, numa campanha disputada voto a voto.

Agora, a pior notícia veio da economia – um campo minado que está novamente no topo das prioridades dos eleitores nesta eleição. Com o anúncio das grandes linhas do programa econômico de Kamala na sexta-feira, 16, depois de ela passar semanas sem nada revelar sobre suas propostas e se mantendo distante da imprensa, o “encanto” que cercava sua campanha até agora, unindo os eleitores de esquerda, de centro-esquerda e boa parte do centro político, parece ter se “quebrado”.

Viés de esquerda

Embora alguns economistas mais afinados aos democratas tenham apoiado o plano de Kamala, como o prêmio Nobel Paul Krugman, que o considerou como “uma agenda sólida de centro-esquerda”, ela se tornou alvo de uma saraivada de críticas por suas propostas para a economia. Não apenas de Trump e de seus aliados, que chamaram seu programa de “socialista” e de “comunista”, mas também de democratas mais moderados e de meios de comunicação como o Washington Post e a CNN, considerados pela direita e centro-direita americanas como veículos com viés de esquerda e mais amigáveis a seus adversários.

Em vez de seguir na trilha do liberalismo econômico abraçada pelos democratas nos tempos de Bill Clinton, nos anos 1990, que levou o partido de volta à Casa Branca após 12 anos na oposição durante os governos de Reagan e Bush (o pai) e que se manteve, de certa forma, nos dois mandatos de Obama (2009-2017), Kamala optou por um programa mais à esquerda, aprofundando o intervencionismo governamental e a gastança desenfreada que marcaram a gestão de Biden, que ela apoiou de forma incondicional.

Batizado de “Kamalanomics”, o programa econômico anunciado por Kamala lembra, em boa medida, os planos heterodoxos implementados no Brasil, como o Cruzado, adotado em meados dos anos 1980, cujos resultados deixaram sequelas por anos a fio, ao desequilibrar o sistema de formação de preços da economia. Lembra também a tentativa fracassada do ex-presidente Richard Nixon (1969-1974) – que era, ironicamente, uma das principais lideranças do Partido Republicano – de controlar os preços no país.

Para enfrentar a inflação, que Kamala atribuiu à “ganância” das grandes empresas no discurso que fez ao lançar seu plano, na Carolina do Norte, na costa leste dos Estados Unidos, ela propôs o controle de preços dos alimentos, que dispararam depois da pandemia e não voltaram mais ao que eram antes. Sua proposta, se ela ganhar as eleições, é trabalhar para que o Congresso aprove em seus primeiros cem dias de governo uma proibição nacional contra o que chamou de “manipulação de preços”.

Ela afirmou que pretende conceder autoridade à Comissão de Comércio Federal (FTC, na sigla em inglês) e aos promotores dos Estados para penalizar as empresas que promoverem “aumentos injustificados” nos preços dos alimentos e tiverem “lucros exagerados”. Disse também que vai acompanhar de perto as fusões de empresas do setor e investigar “agressivamente” a fixação dos preços da carne ao longo das cadeias de suprimento.

“Essa não é uma política sensata e eu penso que a maior esperança é que ela termine sendo muito de retórica e nada de realidade. Não há upside aqui e há alguns downsides”, afirmou ao New York Times o economista Jason Furman, professor da Universidade Harvard e presidente do Conselho de Assessores Econômicos do governo Obama, resumindo de forma emblemática a reação da ala mais moderada dos democratas às propostas de Kamala.

O Washington Post e o Wall Street Journal, que trataram a questão em editoriais, foram na mesma linha. “Felizmente, a manobra da sra. Harris foi recebida com um ceticismo quase instantâneo. Em vez de entregar um plano substancial, ela desperdiçou o momento em truques populistas”, disse o Post. “O problema da sra. Harris é que as políticas econômicas do governo Biden-Harris provocaram inflação e queda da renda real, e a resposta da vice-presidente é piorar isso recorrendo a um populismo de esquerda de estilo venezuelano. Isso não é um exagero”, afirmou o Journal.

A colunista do Washington Post e comentarista de política e economia da CNN, Catherine Rampell, foi outra voz que engrossou o coro, sem meias palavras. “É difícil dizer o quanto essa política é ruim. Na melhor hipótese, isso vai levar à escassez, ao mercado negro e ao armazenamento de produtos”, afirmou Catherine, ao analisar o plano num programa da CNN logo após sua divulgação. “O que vai determinar o quanto as mercearias e os supermercados cobram pelo leite e pelos ovos não será a oferta e a procura, mas algum burocrata em Washington, o que me parece algo totalmente inviável.”

“Aumentos injustos”

As propostas heterodoxas de Kamala incluem também medidas controversas para conter a crise habitacional americana, com a concessão de subsídios e incentivos fiscais. Para reduzir o custo da casa própria e aumentar a oferta de imóveis residenciais, Kamala propôs a liberação de US$ 25 mil para compradores da primeira moradia, a concessão de um crédito tributário para as empresas que construírem imóveis para locação a preços acessíveis e a criação de estímulos para viabilizar a construção de três milhões de novas moradias nos próximos quatro anos.

A candidata democrata também defendeu a fixação de um teto para “aumentos injustos” nos aluguéis, prometeu “ir atrás” dos proprietários corporativos de imóveis para locação, limitando o reajuste em 5% durante um período de dois anos para proprietários que têm mais de 50 unidades para alugar, e ameaçou com aumento de impostos quem não seguir o índice de reajuste oficial.

Ela disse que pretende trabalhar com o Congresso para aprovar uma legislação que limite a participação de investidores “predatórios” no mercado de imóveis para locação, acusados por ela de combinar os reajustes entre si, e o uso de ferramentas impulsionadas por algoritmos para definir os aumentos dos aluguéis. “O controle dos aluguéis é algo tão desacreditado quanto qualquer outra política econômica da caixa de ferramentas”, afirmou o economista Jason Furman em outra entrevista, desta vez ao Washington Post. “A ideia de que nós vamos revivê-lo e expandi-lo vai piorar e não melhorar a oferta de imóveis.”

Em relação à saúde, Kamala disse que quer trabalhar com os Estados para cancelar as dívidas dos americanos na área e conter as “práticas abusivas” das companhias farmacêuticas, que puxam para cima os preços dos medicamentos. Ela prometeu expandir para todos os americanos o teto de US$ 35 para o gasto mensal com insulina, hoje em vigor apenas para os idosos que estão no sistema público de saúde (Medicare). Prometeu também ampliar para toda população o teto de US$ 2 mil por ano para os gastos com medicamentos de uso restrito, que deverá entrar em vigor em janeiro de 2025 para os idosos do Medicare. Um vídeo de um comentário feito por Kamala em 2019, ameaçando quebrar patentes de indústrias farmacêuticas que não seguissem as regras do jogo, viralizou nas últimas semanas, com o objetivo de reforçar seu perfil intervencionista e anti-business.

Até agora, porém, Kamala ainda não disse como pretende financiar a gastança embutida em seu programa econômico, que deverá chegar a US$ 1,7 trilhão em dez anos, de acordo com cálculos do Comitê para um Orçamento Federal Responsável, uma organização não partidária voltada para a fiscalização das contas públicas, o que deve ampliar o enorme déficit já existente nas finanças governamentais.

Decepção

“Culpando as grandes empresas, ela prometeu ir atrás das ‘manipulações de preços’ por mercearias, dos proprietários de imóveis, das companhias farmacêuticas e de outros supostos infratores por meio da Comissão de Comércio Federal”, afirmou o editorial sobre o programa econômico de Kamala publicado pelo Washington Post. “Com certeza, toda campanha faz promessas caras que nunca irão se concretizar, especialmente com um Congresso dividido. Mas, mesmo ajustado para os padrões econômicos de campanha, o discurso da sra. Harris se coloca como uma decepção.”

Por enquanto, a percepção negativa do plano de Kamala ainda não se refletiu plenamente nas pesquisas eleitorais. Só nos próximos dias e semanas será possível medir com mais precisão a extensão do estrago, se é que ele vai se confirmar. Mas desde já se pode dizer, sem medo de errar, que Kamala fez uma aposta de altíssimo risco, que “rachou” os democratas e os simpatizantes do partido. Se, ainda assim, ela ganhar as eleições, não será uma surpresa se uma versão americana dos velhos “fiscais do Sarney”, que surgiram na época do Cruzado para fiscalizar o congelamento de preços, aparecer na terra do Tio Sam, por mais inverossímil que isso possa parecer quando se leva em conta a história dos Estados Unidos.

Opinião por José Fucs

É repórter especial do Estadão. Jornalista desde 1983, foi repórter especial e editor de Economia da revista Época, editor-chefe da revista Pequenas Empresas & Grandes Negócios, editor-executivo da Exame e repórter do Estadão, da Gazeta Mercantil e da Folha. Leia publicações anteriores a 18/4/23 em www.estadao.com.br/politica/blog-do-fucs/

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