BRASÍLIA - Enquanto a equipe econômica estuda medidas para cortar gastos e tentar recuperar a confiança nas contas públicas, uma nova fonte de preocupação cresce no Ministério da Previdência: a concessão de Benefício de Prestação Continuada (BPC) pelas vias judiciais. Nos últimos três anos, decisões de tribunais triplicaram os benefícios para pessoas com deficiência, que saltaram de 48,4 mil em 2021 para 155,8 mil em 2024.
Com esse crescimento acelerado, a fatia que as decisões jurídicas representam no total concedido para pessoas com deficiência subiu de 21,3% para 30% (a outra forma de concessão é via perícia do INSS) de 2022 a 2024. O entendimento, segundo apurou a reportagem, é de que isso dificulta o planejamento orçamentário da pasta, já que as determinações da Justiça deixam técnicos do ministério sem controle sobre essas despesas.
Segundo dados do Tesouro Nacional, o BPC representou um gasto de R$ 73 bilhões de janeiro a agosto deste ano, com R$ 107 bilhões em despesas no acumulado em 12 meses. O benefício é dividido em duas categorias, ambas para pessoas de baixa renda: o BPC Idoso, para quem tem pelo menos 65 anos, e o BPC pessoas com deficiência (PcD), de qualquer idade, mas que sejam diagnosticadas como inaptas para trabalhar.
Segundo o especialista em contas públicas Fábio Serrano, economista do BTG Pactual, o aumento das concessões pela via jurídica ajuda a entender o crescimento acelerado do BPC para pessoas com deficiência em relação ao benefício para os idosos.
“O porcentual de BPC para pessoas com deficiência em relação aos benefícios totais ficou ao redor de 54% nos últimos anos, mas começou a aumentar a partir do terceiro trimestre de 2023 e se encontra em 56% atualmente. Em agosto, o número de beneficiários do BPC PcD cresceu 15,7% em relação ao mesmo mês de 2023, enquanto os benéficios para idoso cresceram 8%”, afirmou.
O BPC tem um agravante para as contas públicas porque, diferentemente das aposentadorias e pensões, não é necessário ter tempo de contribuição ao INSS para receber o benefício, uma vez que o objetivo da Constituição de 1988 foi proteger os mais vulneráveis.
O problema é que, nos últimos anos, três fatores fizeram disparar o orçamento dessa despesa: a indexação do salário mínimo ao PIB pelo governo Lula em 2023; uma decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de 2021 que afrouxou parâmetros de renda para dar direito ao benefício; e as decisões judiciais de tribunais federais regionais, que não seguem regras de perícias internacionais para definir o que são pessoas com deficiências graves, que as tornam inaptas para trabalhar por um período prolongado.
‘Indústria do BPC’
No Ministério da Previdência, há a visão de que a reforma trabalhista empurrou advogados para o chamado “direito previdenciário”. Com o endurecimento das regras no direito do trabalho e a queda no número de processos, advogados enxergaram no BPC um novo ramo, oferecendo gratuitamente o serviço a clientes para entrarem na Justiça e conseguir o benefício. A cobrança muitas vezes acontece posteriormente e não há custos em caso de perda da causa.
Este mês, o Estadão revelou que esse movimento está beneficiando até venezuelanos que entram no País pelo Estado de Roraima. A lei garante o direito ao BPC a estrangeiros que residem no País com a documentação correta; mas, na região, há um mercado de intermediários que usa falsos comprovantes para que venezuelanos usufruam dos benefícios sem que façam jus.
Em todo o País, segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), houve uma explosão de requerimentos para o recebimento de BPC a pessoas com deficiência. Em 2020, foram 101 mil pedidos. Em 2023, o número já havia subido para 562 mil. Neste ano, foram 413 mil de janeiro a agosto.
No caso do BPC para idosos, a judicialização é menor porque é preciso comprovar apenas a idade de 65 anos e a renda per capita, que tem de se enquadrar nos parâmetros do programa assistencial.
Propaganda nas redes
Nas redes sociais, há inúmeros escritórios de advocacia oferecendo o serviço de entrada de requerimentos para o BPC, com posterior judicialização, em caso de negativa pelo INSS. “Autismo leve dá direito a BPC”, “Quem recebe BPC Loas pode comprar carro popular” e “Nova lei garante benefício a pessoas com deficiência leve” são alguns dos chamativos utilizados para atrair “clientes”.
“A explosão de requerimentos (para o BPC) se deve à busca ativa feita junta a população. Existe ampla publicidade nesse sentido nas redes sociais e na internet em geral”, afirmou o secretário do Regime Geral de Previdência Social, Adroaldo da Cunha Portal.
Procurada, a Ordem Dos Advogados do Brasil (OAB) afirmou que lançou uma cartilha para orientar advogados sobre publicidade ética na profissão, além de criar um Comitê Regulador do Marketing jurídico para tratar do tema.
Segundo técnicos da Previdência ouvidos pela reportagem, essa explosão de pedidos tem tido também o efeito colateral de sobrecarregar as perícias do INSS. Este ano, as solicitações para o recebimento do benefício tiveram um aumento mensal médio de 50%, saltando de 96 mil em 2023 para 142 mil em 2024 (de janeiro a outubro).
No Nordeste, a alta nos pedidos chega a 66%, com crescimento de 120% no Piauí, 88% no Maranhão, e 87% em Alagoas. No Norte, houve alta de 44%, com aumento de 76% em Rondônia, e 64% em Tocantins.
A Associação Nacional dos Médicos Peritos (ANMP) diz que já vem alertando há anos para o problema, e que é preciso reforçar a perícia médica federal.
“As mais diversas autoridades dos Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário já receberam inúmeros ofícios da Associação com a previsão sobre o colapso que a concessão do BPC sem a correta avaliação técnica por parte da Perícia Médica Federal causaria aos cofres públicos, como se observa agora”, afirmou.
No livro “A reforma Inacabada - o Futuro da Previdência Social no Brasil”, os economistas Fábio Giambiagi e Fábio Tafner explicam que há “zonas cinzentas” na concessão do BPC, já que há “flexibilidade interpretativa” da legislação para definir o que seriam “impedimentos de longo prazo” de natureza física, sensorial ou intelectual.
Segundo o secretário Adroaldo Portal, a Justiça Federal não segue a Classificação Internacional de Funcionalidade (CIF), adotada pelos peritos do INSS - e, por isso, acaba sendo mais flexível para a concessão do BPC do que o instituto.
“A grande divergência que há entre a concessão administrativa do BPC e a judicial é que o INSS segue a lei, que determina seguir a Classificação Internacional de Funcionalidade. Assim, leva-se em conta também as barreiras sociais e econômicas que aquela deficiência impõe à pessoa”, diz o secretário. “O Judiciário, não. Faz avaliação biomédica, e, se tem a deficiência, dá o benefício. Além disso, a Justiça Federal também flexibiliza em muitos casos os critérios de renda.”
AGU acompanha, Previdência acha pouco
A Advocacia-Geral da União (AGU), órgão que tem a função de defender o governo em teses que têm impacto fiscal contra a União, afirmou que “tem acompanhado o aumento” da judicialização do BPC. Duas ações foram criadas para tentar diminuir os litígios, o “DesjudicializaPrev” e o “Pacifica”.
“A Advocacia-Geral da União tem acompanhado o aumento da judicialização do BPC/LOAS e sobre os gastos judiciais decorrentes dessas ações. Para enfrentar essa situação, a AGU tem trabalhado conjuntamente com o INSS, o Poder Judiciário e as demais pastas ministeriais para aprimorar a defesa judicial e auxiliar na correta concessão dos benefícios para que sejam beneficiados aqueles que demonstrem ter esse direito”, afirmou a pasta.
O DesjudicializaPrev é fruto de uma parceria com o CNJ, que prevê a redução de litígios previdenciários e assistenciais. O objetivo é buscar acordo para que haja desistência de recursos. Segundo a pasta, a previsão é de que 137 mil ações deixem de ser ajuizadas no próximo ano por causa do programa. “A AGU considera que parcerias como esta são fundamentais para reduzir a judicialização”, diz a nota.
Já o Pacifica (Plataforma de Autocomposição Imediata e Final de Conflitos Administrativos) é uma plataforma online, criada em julho deste ano para resolver de forma mais ágil litígios entre cidadãos e a administração pública federal. “Neste primeiro momento de implementação, o foco da plataforma são as questões previdenciárias”, diz a AGU.
Para o secretário Adroaldo Cunha Portal, no entanto, as medidas ainda não insuficientes para resolver o problema. Em linhas gerais, a AGU acaba por seguir as regras definidas pelo Poder Judiciário - o que, no fim, representa mais gastos.
“Desjudicialização não é solução para o problema. Fazer acordo significa aderir às teses que o Judiciário tem feito prevalecer nas suas decisões”, diz Cunha Portal.
STF e governo Lula agravaram problema
Segundo o Ministério do Desenvolvimento Social, podem requerer o BPC pessoas com renda per capita familiar menor do que um quarto do salário mínimo. A atuação de advogados, em muitos casos, auxilia pessoas a se enquadrar nesta regra, sugerindo até o divórcio de casais para que formalmente a renda de cada um fique mais baixa.
Uma decisão do STF de 2021 também afrouxou esse cálculo, permitindo a dedução de despesas médicas para a composição da renda. Gastos com medicamentos (R$ 45), consultas e tratamentos médicos (R$ 90), fraldas (R$ 99) e alimentação especial (R$ 121) são abatidos da renda bruta familiar.
Fábio Giambiagi, pesquisador da Fundação Getúlio Vargas (FGV), diz que a despesa com BPC como proporção do PIB era de 0,2% do PIB em 2001 e chegará a 1% no ano que vem. Na sua visão, contudo, o que mais agrava o problema, neste momento, é a indexação do salário mínimo feita pelo governo Lula, ao crescimento do PIB.
“O governo precisa se convencer de que, sem mexer na regra do salário mínimo, a despesa com BPC continuará aumentando. Ela era 0,1 % do PIB em 1997 e será 1,0 % do PIB em 2025″, diz Giambiagi.
O presidente Lula, porém, vem demonstrando, até o momento, resistência a essa desvinculação. Procurado, o Ministério do Desenvolvimento Social não se manifestou sobre essa questão.