“Você terá o CPF de quem está apostando, tudo sigiloso, mas ele abrirá essa conta. Teremos um sistema de alerta para pessoas com dependência do jogo”, afirmou o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, em resposta a pedido do presidente Lula para proibir o uso do Bolsa Família em apostas virtuais.
O Banco Central divulgou um perfil dos apostadores, revelando que cinco milhões de beneficiários do Bolsa Família destinaram R$ 3 bilhões a apostas virtuais apenas em agosto, 21% do total pago pelo governo no mesmo mês. Esses números são chocantes. No entanto, alterar o Bolsa Família ou monitorar as compras dos beneficiários por isso seria um erro.
A preocupação de Lula não é desmedida. O Progressa, que durou 20 anos em formato similar ao do Bolsa Família, foi encerrado no México em 2019 pela narrativa incorreta de ineficácia. Há evidências de que programas como o Bolsa Família reduzem a pobreza e aumentam a escolaridade, entre outros efeitos positivos. Ainda assim, programas de transferência de renda enfrentam resistência, e a ideia de que os pobres “desperdiçam” o benefício com vícios é uma arma potente dos críticos, apesar de evidências contrárias.
Os dados sobre apostadores devem ser encarados como um sintoma do problema de saúde pública que a indústria das apostas gera, tornando famílias pobres ainda mais vulneráveis. O governo deveria regular as empresas de apostas, como se faz com a indústria do cigarro, para mitigar os efeitos colaterais que a população já sofre.
O governo arriscará o programa se cada “desperdício” – facilmente rastreável com o Pix – for sujeito a proibição. Além disso, monitorar CPF por CPF pode ser perigoso, sujeitando os mais pobres à vigilância excessiva. Vale lembrar que muitas famílias e empresários recebem transferências e benefícios do governo. Por que apenas o orçamento das famílias pobres está sendo monitorado, e não o dos beneficiários de “bolsa empresário” ou bolsas do CNPQ?
Enquanto escrevíamos este artigo, lembramos de um jantar com colegas economistas. Apesar de reconhecerem que doar dinheiro é melhor do que doar bens, eles preferiam doar cestas básicas, temendo que os pedintes usassem o dinheiro para bebidas. No jantar, havia várias garrafas de vinho abertas. A liberdade que desejamos para nós mesmos deve ser estendida a quem não tem os mesmos privilégios.
Esta coluna foi escrita em colaboração com Diana Moreira, professora de economia da Universidade da Califórnia-Davis, e Joana Naritomi, professora de políticas públicas na London School of Economics.