O acesso ao patrimônio genético e a repartição justa de benefícios aos indígenas e às comunidades tradicionais são temas sempre delicados tanto no Brasil quanto no mundo. E estão sendo discutidos há pelo menos três décadas.
No Brasil, a legislação aprovada em 2015 está ainda em fase de consolidação e precisa ser mais bem aceita por todos os setores que exploram a biodiversidade brasileira, seja para o desenvolvimento de cosméticos, seja para a produção de medicamentos ou outros usos. A boa aplicação da lei serve tanto para beneficiar os verdadeiros detentores do conhecimento tradicional quanto para evitar a biopirataria.
Após a aprovação da Lei de Acesso ao Patrimônio Genético e ao Conhecimento Tradicional Associado, em 2015, a Associação Brasileira da Indústria de Higiene Pessoal, Perfumaria e Cosméticos (Abihpec) produziu o Guia Orientativo para Acesso à Biodiversidade Brasileira, com informações técnicas detalhadas sobre o tema.
Fragrâncias, extratos, óleos, aromas e manteigas são muitas vezes desenvolvidos a partir da descoberta de novas propriedades em insumos naturais já conhecidos ou que até então nem haviam sido explorados. O material da Abihpec explica que todas as matérias-primas desenvolvidas com base no acesso ao patrimônio genético do País devem ser registradas num cadastro próprio para isso, como etapa prévia ao pedido de patente ou qualquer comercialização.
O Conhecimento Tradicional Associado, também protegido pela lei, diz respeito à sabedoria acumulada por populações indígenas, agricultores e comunidades tradicionais no vínculo com a natureza ao longo dos séculos. São aquelas práticas, passadas de geração a geração, envolvendo a biodiversidade – ou seja, o patrimônio genético. O acesso a esses conhecimentos não necessariamente ocorre de forma direta, in loco. Pode se dar também por meio de feiras, artigos científicos e filmes, por exemplo – mesmo assim, devem ser reconhecidos e registrados pelas empresas que se beneficiam deles.
Pela lei, quando o conhecimento é utilizado, as comunidades devem autorizar previamente o uso dele para que as pesquisas evoluam. E quando o produto chegar ao mercado, o que nem sempre ocorre, parte das vendas deve retornar em benefícios, não necessariamente financeiros, para os povos da floresta. (MO)
Brasil abriga 20% das espécies do planeta
A Lei de Acesso ao Patrimônio Genético e ao Conhecimento Tradicional Associado (Lei 13.123, de 2015) é uma referência fundamental para a consolidação no Brasil de um modelo de preservação ambiental alinhado ao desenvolvimento econômico. Trata-se da preocupação em proteger um grande patrimônio nacional, a biodiversidade.
Além dos benefícios sociais e econômicos decorrentes diretamente da conservação e da utilização sustentável da biodiversidade brasileira, há também o grande potencial representado pelo patrimônio genético. O País abriga cerca de 20% do total de espécies do planeta. Mais de 116 mil espécies animais e 46 mil espécies vegetais podem ser encontradas no território brasileiro – e novas descobertas continuam sendo feitas.
A preocupação internacional com o tema ganhou impulso a partir da realização, em 1992, no Rio de Janeiro, da Eco-92, a Conferência das Nações Unidades sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento. Durante o evento foi estabelecida a Convenção da Diversidade Biológica (CDB), que envolveu uma série de compromissos por parte dos países signatários, incluindo o Brasil.
Com o passar dos anos, a CDB foi se consolidando como fórum de discussão sobre diversidade e referência legal e política para outros acordos e convenções mais específicos envolvendo questões ambientais. Um deles foi o Protocolo de Nagoya (cidade japonesa), que teve a adesão brasileira aprovada pelo Congresso Nacional apenas no ano passado, uma década depois de ter sido estabelecido.
O tratado define regras para a divisão entre os países dos benefícios resultantes de pesquisas genéticas com a biodiversidade e a utilização do conhecimento tradicional de comunidades locais e indígenas. Esses benefícios incluem o pagamento de royalties, o financiamento de pesquisas, a associação de empresas (joint ventures), o compartilhamento de resultados e a transferência de tecnologias. O acordo estabelece também que um país precisa consentir previamente pesquisas com seus recursos genéticos. (MO)
Ricardo Abramovay, Autor de Amazônia. Por Uma Economia do Conhecimento da Natureza (Ed. Elefante). Professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP. Twitter: @abramovay
A responsabilidade social das empresas é dar lucro: se conseguem pagar seus funcionários, seus fornecedores, seus impostos, obedecer às leis e, no final das contas, remunerar seus acionistas, é que elas fizeram aquilo que delas a sociedade espera. Cinquenta anos atrás, Milton Friedman, Prêmio Nobel de Economia, era ferrenho adepto dessa ideia, que foi perdendo prestígio à medida que ficava claro que muitos dos custos de funcionamento das atividades empresariais não eram pagos e que essa gratuidade acabava por destruir serviços ecossistêmicos dos quais todos (inclusive as próprias empresas) dependemos.
Em 2019, o custo do capital natural usado pelas 1.200 empresas globais listadas no S&P 500 correspondia a 90% de seus lucros, segundo o State of Green Business de 2021. Se tivessem que pagar pelas emissões, pela água, pelo lixo, pela poluição e pela destruição da biodiversidade a que conduzem suas atividades, elas fechariam as portas.
Inúmeras organizações empresariais abandonaram de suas narrativas a ideia de que a natureza é um generoso e infinito ofertório de recursos. Passaram então a preconizar que a vida econômica não pode conformar-se em destruir um pouco menos. Ela tem que se converter em atividade regenerativa dos tecidos socioambientais que têm sido sistematicamente destruídos pelas formas convencionais de gestão dos negócios.
O exemplo global mais emblemático nessa direção é a Aliança para a Ambição Climática que reunia ao final de 2020 nada menos que 826 cidades, 103 regiões e mais de 1.500 empresas comprometidas com a meta de emissões zero de gases de efeito estufa. Essa Aliança vincula-se a outro movimento global importante que é a Iniciativa dos Objetivos Baseados em Ciência. Fundada em 2015, essa Iniciativa preconiza que as estratégias empresariais se apoiem no que as evidências científicas dizem sobre a crise climática. São mais de mil empresas alinhadas a esse objetivo e esse número vem aumentando rapidamente. No ano passado, a adesão dobrou, com relação ao período entre 2015 e 2019. O mais recente relatório dessa Iniciativa mostra resultados quantificados bem significativos.
Converter o respeito às evidências científicas em bússola que norteia as empresas é uma verdadeira revolução cultural. É introduzir uma dimensão ética na atividade empresarial que vai muito além de simplesmente respeitar as leis. Mas é claro que isso é insuficiente: o comprometimento dos governos da União Europeia e dos Estados Unidos com ambiciosas metas de redução de gases de efeito é estratégico para que as próprias empresas sintam a segurança e a confiança necessárias para alterar o rumo de suas atividades convencionais. Embora o governo não responda pela oferta de bens e serviços, ele sinaliza aos atores privados o rumo que as sociedades democráticas optam por lhes imprimir.
O fanatismo ideológico e o negacionismo científico, que fizeram do Brasil o epicentro global da pandemia de coronavírus, são os mais poderosos obstáculos para que o País exerça o papel ao qual parecia destinado, o de potência ambiental. E com isso se abrem as comportas pelas quais o atraso entra como enxurrada.
*Autor de Amazônia. Por Uma Economia do Conhecimento da Natureza (Ed. Elefante). Professor sênior do Instituto de Energia e Ambiente da USP. Twitter: @abramovay