O debate econômico atual tem gravitado em torno das vicissitudes da política fiscal de um país em que o Estado foi sequestrado por interesses privados e suas conexões com o combate à inflação baseado exclusivamente na manipulação da taxa Selic. Rende muito assunto, mas a “financeirização” da discussão sobre os rumos da economia restringe o alcance das ideias. O leitor interessado é exposto a uma procissão de argumentos simplórios e repetitivos expostos por analistas que vivem sob o jugo do Ibovespa, da curva de juros e da taxa de câmbio.
O Banco Central, para piorar, reverbera essa obsessão e leva a sério a previsão que o mercado faz para o IPCA de 2026 (está em 3,6%), apesar dos mesmos analistas não conseguirem acertar a “previsão” da inflação do mês passado. “Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia”, já dizia Eça de Queiroz.
Há alento, no entanto. Dois livros lançados em 2024 avançam muito além dos jargões no entendimento das complexidades brasileiras. Extremos (Zahar, 2024), de Pedro Nery, relata com precisão técnica e farta documentação o esforço do autor em compreender a extrema desigualdade que marca o País que construímos – tema que rende excomunhão na Faria Lima.
Na profusão de dados e análises, uma informação pula do papel e morde os olhos do leitor: o grupo de homens brancos que faz parte do 1% mais rico da população tem uma renda que é maior que a renda da totalidade das mulheres negras. Isso mesmo. Apesar de avançar em detalhes neste tipo de aberração, o autor consegue escapar do pessimismo terminal e avança em propostas que merecem ser debatidas.
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Bruno Carazza, por sua vez, se propõe a tarefa não menos ambiciosa. O País dos Privilégios (Companhia das Letras, 2024) é o primeiro de três volumes que abordarão as regras que permitem a extração de vantagens do erário. Nessa primeira obra, o autor avalia, com evidências e sem preconceitos, a multiplicidade de privilégios de militares, juízes, promotores, auditores e outros apaniguados.
Talvez a maior contribuição do livro seja a tarefa, concluída com sucesso, de mergulhar nas entranhas do corporativismo que caracteriza carreiras de Estado, indo muito além da avaliação rasa e apressada da maioria dos analistas do mercado, incapazes de ver que o Estado, mais do que refletir a conveniência oportunista dos governantes, é o espelho da sociedade. Existe um outro Brasil que não se vê nem mesmo do último andar do prédio mais alto da Faria Lima. Ele é mais pobre, mais populoso e muito mais difícil de entender. Mas ele tem uma vantagem: ele existe de verdade.