Economista e ex-diretor de Política Monetária do Banco Central, Luís Eduardo Assis escreve quinzenalmente

Opinião|‘Financeirização’ da discussão sobre os rumos da economia restringe o alcance das ideias


Em direção contrária, dois livros lançados em 2024 avançam muito além dos jargões no entendimento das complexidades brasileiras

Por Luís Eduardo Assis

O debate econômico atual tem gravitado em torno das vicissitudes da política fiscal de um país em que o Estado foi sequestrado por interesses privados e suas conexões com o combate à inflação baseado exclusivamente na manipulação da taxa Selic. Rende muito assunto, mas a “financeirização” da discussão sobre os rumos da economia restringe o alcance das ideias. O leitor interessado é exposto a uma procissão de argumentos simplórios e repetitivos expostos por analistas que vivem sob o jugo do Ibovespa, da curva de juros e da taxa de câmbio.

O Banco Central, para piorar, reverbera essa obsessão e leva a sério a previsão que o mercado faz para o IPCA de 2026 (está em 3,6%), apesar dos mesmos analistas não conseguirem acertar a “previsão” da inflação do mês passado. “Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia”, já dizia Eça de Queiroz.

Banco Central leva a sério a previsão que o mercado faz para o IPCA de 2026 (está em 3,6%), apesar dos mesmos analistas não conseguirem acertar a “previsão” da inflação do mês passado  Foto: DIDA SAMPAIO/ESTADAO
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Há alento, no entanto. Dois livros lançados em 2024 avançam muito além dos jargões no entendimento das complexidades brasileiras. Extremos (Zahar, 2024), de Pedro Nery, relata com precisão técnica e farta documentação o esforço do autor em compreender a extrema desigualdade que marca o País que construímos – tema que rende excomunhão na Faria Lima.

Na profusão de dados e análises, uma informação pula do papel e morde os olhos do leitor: o grupo de homens brancos que faz parte do 1% mais rico da população tem uma renda que é maior que a renda da totalidade das mulheres negras. Isso mesmo. Apesar de avançar em detalhes neste tipo de aberração, o autor consegue escapar do pessimismo terminal e avança em propostas que merecem ser debatidas.

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Bruno Carazza, por sua vez, se propõe a tarefa não menos ambiciosa. O País dos Privilégios (Companhia das Letras, 2024) é o primeiro de três volumes que abordarão as regras que permitem a extração de vantagens do erário. Nessa primeira obra, o autor avalia, com evidências e sem preconceitos, a multiplicidade de privilégios de militares, juízes, promotores, auditores e outros apaniguados.

Talvez a maior contribuição do livro seja a tarefa, concluída com sucesso, de mergulhar nas entranhas do corporativismo que caracteriza carreiras de Estado, indo muito além da avaliação rasa e apressada da maioria dos analistas do mercado, incapazes de ver que o Estado, mais do que refletir a conveniência oportunista dos governantes, é o espelho da sociedade. Existe um outro Brasil que não se vê nem mesmo do último andar do prédio mais alto da Faria Lima. Ele é mais pobre, mais populoso e muito mais difícil de entender. Mas ele tem uma vantagem: ele existe de verdade.

O debate econômico atual tem gravitado em torno das vicissitudes da política fiscal de um país em que o Estado foi sequestrado por interesses privados e suas conexões com o combate à inflação baseado exclusivamente na manipulação da taxa Selic. Rende muito assunto, mas a “financeirização” da discussão sobre os rumos da economia restringe o alcance das ideias. O leitor interessado é exposto a uma procissão de argumentos simplórios e repetitivos expostos por analistas que vivem sob o jugo do Ibovespa, da curva de juros e da taxa de câmbio.

O Banco Central, para piorar, reverbera essa obsessão e leva a sério a previsão que o mercado faz para o IPCA de 2026 (está em 3,6%), apesar dos mesmos analistas não conseguirem acertar a “previsão” da inflação do mês passado. “Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia”, já dizia Eça de Queiroz.

Banco Central leva a sério a previsão que o mercado faz para o IPCA de 2026 (está em 3,6%), apesar dos mesmos analistas não conseguirem acertar a “previsão” da inflação do mês passado  Foto: DIDA SAMPAIO/ESTADAO

Há alento, no entanto. Dois livros lançados em 2024 avançam muito além dos jargões no entendimento das complexidades brasileiras. Extremos (Zahar, 2024), de Pedro Nery, relata com precisão técnica e farta documentação o esforço do autor em compreender a extrema desigualdade que marca o País que construímos – tema que rende excomunhão na Faria Lima.

Na profusão de dados e análises, uma informação pula do papel e morde os olhos do leitor: o grupo de homens brancos que faz parte do 1% mais rico da população tem uma renda que é maior que a renda da totalidade das mulheres negras. Isso mesmo. Apesar de avançar em detalhes neste tipo de aberração, o autor consegue escapar do pessimismo terminal e avança em propostas que merecem ser debatidas.

Bruno Carazza, por sua vez, se propõe a tarefa não menos ambiciosa. O País dos Privilégios (Companhia das Letras, 2024) é o primeiro de três volumes que abordarão as regras que permitem a extração de vantagens do erário. Nessa primeira obra, o autor avalia, com evidências e sem preconceitos, a multiplicidade de privilégios de militares, juízes, promotores, auditores e outros apaniguados.

Talvez a maior contribuição do livro seja a tarefa, concluída com sucesso, de mergulhar nas entranhas do corporativismo que caracteriza carreiras de Estado, indo muito além da avaliação rasa e apressada da maioria dos analistas do mercado, incapazes de ver que o Estado, mais do que refletir a conveniência oportunista dos governantes, é o espelho da sociedade. Existe um outro Brasil que não se vê nem mesmo do último andar do prédio mais alto da Faria Lima. Ele é mais pobre, mais populoso e muito mais difícil de entender. Mas ele tem uma vantagem: ele existe de verdade.

O debate econômico atual tem gravitado em torno das vicissitudes da política fiscal de um país em que o Estado foi sequestrado por interesses privados e suas conexões com o combate à inflação baseado exclusivamente na manipulação da taxa Selic. Rende muito assunto, mas a “financeirização” da discussão sobre os rumos da economia restringe o alcance das ideias. O leitor interessado é exposto a uma procissão de argumentos simplórios e repetitivos expostos por analistas que vivem sob o jugo do Ibovespa, da curva de juros e da taxa de câmbio.

O Banco Central, para piorar, reverbera essa obsessão e leva a sério a previsão que o mercado faz para o IPCA de 2026 (está em 3,6%), apesar dos mesmos analistas não conseguirem acertar a “previsão” da inflação do mês passado. “Sobre a nudez forte da verdade, o manto diáfano da fantasia”, já dizia Eça de Queiroz.

Banco Central leva a sério a previsão que o mercado faz para o IPCA de 2026 (está em 3,6%), apesar dos mesmos analistas não conseguirem acertar a “previsão” da inflação do mês passado  Foto: DIDA SAMPAIO/ESTADAO

Há alento, no entanto. Dois livros lançados em 2024 avançam muito além dos jargões no entendimento das complexidades brasileiras. Extremos (Zahar, 2024), de Pedro Nery, relata com precisão técnica e farta documentação o esforço do autor em compreender a extrema desigualdade que marca o País que construímos – tema que rende excomunhão na Faria Lima.

Na profusão de dados e análises, uma informação pula do papel e morde os olhos do leitor: o grupo de homens brancos que faz parte do 1% mais rico da população tem uma renda que é maior que a renda da totalidade das mulheres negras. Isso mesmo. Apesar de avançar em detalhes neste tipo de aberração, o autor consegue escapar do pessimismo terminal e avança em propostas que merecem ser debatidas.

Bruno Carazza, por sua vez, se propõe a tarefa não menos ambiciosa. O País dos Privilégios (Companhia das Letras, 2024) é o primeiro de três volumes que abordarão as regras que permitem a extração de vantagens do erário. Nessa primeira obra, o autor avalia, com evidências e sem preconceitos, a multiplicidade de privilégios de militares, juízes, promotores, auditores e outros apaniguados.

Talvez a maior contribuição do livro seja a tarefa, concluída com sucesso, de mergulhar nas entranhas do corporativismo que caracteriza carreiras de Estado, indo muito além da avaliação rasa e apressada da maioria dos analistas do mercado, incapazes de ver que o Estado, mais do que refletir a conveniência oportunista dos governantes, é o espelho da sociedade. Existe um outro Brasil que não se vê nem mesmo do último andar do prédio mais alto da Faria Lima. Ele é mais pobre, mais populoso e muito mais difícil de entender. Mas ele tem uma vantagem: ele existe de verdade.

Opinião por Luís Eduardo Assis

Economista. Autor de 'O Poder das Ideias Erradas' (Ed.Almedina). Foi diretor de Política Monetária do Banco Central e professor de Economia da PUC-SP e FGV-SP

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