A reforma tributária será o grande e talvez único legado estrutural do governo Lula, avalia o ex-ministro da Fazenda e sócio da Tendências Consultoria, Maílson da Nóbrega. “Seja como for, esse projeto é a melhor reforma estrutural do País desde o regime militar”, diz o economista, em entrevista ao Estadão.
O ministro da Fazenda, Fernando Haddad, entregou ontem, 24, um dos projetos de regulamentação da reforma tributária ao Congresso. A mudança nas regras do sistema tributário brasileiro, considerado um dos mais complexos do mundo, foi aprovada no fim do ano passado, em Emenda Constitucional, mas ainda depende da regulamentação. Haddad argumenta que o sistema brasileiro será um dos mais modernos do mundo.
Maílson da Nóbrega acredita que é importante não ampliar o rol de exceções, no debate da regulamentação, e fechar possíveis brechas para garantir que, na prática, elas não sejam alargadas. Ele também defende a criação do Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) - um segundo projeto de lei complementar da reforma tributária, os aspectos específicos de gestão e fiscalização do IBS, será enviado pela Fazenda ao Congresso em maio. “Sem o comitê gestor, a reforma não vai existir”, afirma Maílson.
O ex-ministro da Fazenda critica o que chama de “privilégios aos mais favorecidos”, como o abatimento da tributação dos profissionais liberais como advogados, e diz que quanto mais exceções, mais os mais pobres pagarão.
Qual a avaliação do sr. sobre a mais recente etapa da Reforma Tributária, a de regulamentação?
O fundamental já foi aprovado, que é o conjunto de métricas da nova tributação de consumo no Brasil, mas o projeto sucumbiu às pressões dos grupos de interesse, sobretudo dos representantes de classes mas favorecidas. Quem consome serviços é a parte mais rica da sociedade, que paga escola, universidade, viagens, esses vão pagar 40% da alíquota padrão. Não tem nenhuma justifica de ordem econômica ou social para esse privilégio. Havia um privilégio histórico, porque os serviços são tributados pelo ISS, e a alíquota é de 5%, enquanto a alíquota de bens, que é de IPI, é de 18% ou mais. Houve uma pressão muito grande.
A Emenda Constitucional (da reforma tributária) criou um número muito grande de exceções. No mundo inteiro, exceções costumam ser muito restritas, são basicamente para a área de crédito, seguros, mas não essa coisa que aconteceu no Brasil. Profissional liberal vai pagar 70% da alíquota, isso foi uma pressão da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) que vai representar privilégio aos mais favorecidos.
Há algo que preocupe o sr. nesta etapa de regulamentação da reforma?
A regulamentação deveria ser uma coisa muito tranquila, porque não é a regulamentação que vai definir a alíquota. A alíquota vai ser definida por esse teste (transição) de dois anos, mas tem duas coisas que a regulamentação vai definir: a base de cálculo e as hipóteses de incidência. Nessa definição pode ter mais privilégios.
Há ainda uma pressão inacreditável, a meu ver, de pessoas condenando o comitê gestor. Se o Comitê Gestor for eliminado da regulamentação, a reforma acabou. Ela não funciona sem o comitê gestor.
Por que a reforma não funciona sem o comitê gestor?
O comitê gestor faz um papel semelhante ao que fazem os bancos atualmente. Primeiro, o Comitê Gestor vai destinar os recursos de acordo com compromisso de não perder receita por um período. Segundo ponto: a reforma torna possível a desoneração integral das exportações e a devolução rápida dos créditos acumulados pelos exportadores. Hoje, isso depende da boa vontade de cada secretário (estadual) de Fazenda. Além disso, a desoneração da exportação total não é viável pois é impossível saber quanto de PIS, Cofins e ISS tem em cada produto. Isso será possível agora, porque tudo será sobre valor agregado.
Sem o Comitê Gestor não terá a transição prometida e será letra morta a desoneração integral, porque cairemos no sistema de cada secretário.
Isso é um risco, mas eu acho que, seja como for, esse projeto é a melhor reforma estrutural do País desde o regime militar e esse é o grande e talvez único legado estrutural do governo Lula.
O sr. está otimista...
Mesmo com todas as exceções, a reforma aprovada e a regulamentação vão preservar pilares básicos: acaba com tributação entre as etapas, o que se chama de não cumulatividade; desonera integralmente as exportações e investimentos; as regras serão uniformes em todo o território nacional. Atualmente, cada um faz a sua regra. Isso vai acabar. Vai ser estável e uniforme.
E, finalmente, a carga tributária sobre o consumo vai cair, ao contrário do que muita gente pensa. A alíquota estimada pela Fazenda assusta muita gente porque, se for de 27%, será igual a da Hungria, a maior do mundo. Só que hoje paga-se 34%. É que o contribuinte não percebe, porque 34% vem da soma de várias coisas.
E a reforma tem uma vantagem adicional: será muito mais eficiente, muito mais racional.
Essa é a primeira grande reforma estrutural do Brasil cujo projeto nasceu fora do governo, por um grupo de pessoas experientes, que trabalharam no governo e na academia, e que conseguiram operar quase um milagre. Vai ser um enorme avanço para o País.
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Os principais pontos de atenção a partir de agora, na avaliação do sr., devem ser a não inclusão de novas exceções e a permanência do comitê gestor?
Espero que nenhuma das minhas preocupações se materialize, que os lobbies não obtenham mais benefício do que já obtiveram.
Duas coisas que assustam as pessoas tem razão para existirem. A primeira, o fato de ter um projeto com mais de 300 páginas. Mas, se olhar, acho que pelo menos cinco páginas serão só para revogar dispositivos. Temos quase 60 anos de regras confusas, incompatíveis entre si. Em segundo lugar, como têm muitas exceções, é preciso estabelecer regras que fechem ao máximo possíveis brechas. Os 500 artigos existem porque não se sai do caos para a normalidade de maneira impune e é preciso restringir os riscos que levam a uma ineficiência do processo.
É bom lembrar que quanto mais exceções e privilégios, maior a carga de imposto para os pobres, porque os pobres não se organizam como essas áreas de interesse. Como a arrecadação tem de ser preservada, quanto mais exceções, mais os pobres vão pagar.
Sobre o Comitê Gestor, há quem argumente que não se precisa de um órgão público para isso, e que ele pode ferir o pacto federativo. Como o sr. responde?
Eu vi pessoas ultra liberais que criticam o comitê gestor. Mas criar um órgão público não é necessariamente ruim. Por exemplo: temos de ter polícia, que precisa ser organizada, ter carreiras, etc. A mesma coisa o comitê gestor. Temos de ter um pequeno grupo de pessoas que estejam numa carreira e analisem permanentemente o funcionamento do sistema, para propor modificações, avanços, melhorias. Não é ruim criar esse comitê gestor como uma autarquia. Sem o comitê gestor, a reforma não vai existir. Ao contrário do que se tem dito, ele não viola o pacto federativo, ele vai ter menos poderes do que tem hoje o Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz).