BRASÍLIA E SÃO PAULO - Defendida pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no último sábado, 30, e já proposta pelo ministro da Economia, Paulo Guedes, a criação de uma moeda única na América Latina é vista com ceticismo por especialistas. Ainda que a adoção de uma política monetária unificada em diferentes países possa resultar em uma maior eficiência, aumentando o potencial de crescimento dos mercado envolvidos, colocar uma medida dessas seria muito difícil dadas as discrepâncias econômicas entre países como Brasil e Argentina.
Por outro lado, analistas admitem que o sistema financeiro está mudando, as criptomoedas ganharam força com as sanções implementadas contra a Rússia após a invasão da Ucrânia, e os mercados passaram a buscar alternativas para não depender do dólar.
A criação de união monetária na região voltou a ser tema de discussões após o ex-presidente Lula afirmar, no fim de semana, que o Brasil voltaria a restabelecer relação com a América Latina e que uma moeda única faria com que o País deixasse de depender do dólar. No mês passado, o candidato do PT ao governo do Estado de São Paulo, o ex-prefeito Fernando Haddad, e o economista Gabriel Galípolo (ex-presidente do banco Fator que tem colaborado com o partido) já haviam publicado um artigo no jornal Folha de S.Paulo em que defendiam a ideia, mas a adoção seria nos países da América do Sul – e não da América Latina.
Guedes também defendeu a criação de uma moeda única e a volta das negociações para a implantação do acordo da União Europeia com o bloco sul-americano de olho no interesse maior dos europeus em se aproximar do Brasil depois da crise energética causada pela guerra. Em frentes opostas na campanha eleitoral, o governo Bolsonaro e o PT se alinham nessa proposta, mas especialistas não acreditam que ela será tema de debate e muito menos garantia de votos nas eleições. Os problemas mais centrais do País, como inflação e desemprego, devem dominar a agenda eleitoral.
Para o economista José Júlio Senna, do Instituto Brasileiro de Economia (FGV/Ibre), o primeiro desafio para se criar uma moeda única no Mercosul ou na América do Sul seria a determinação política. Na zona do euro, o projeto de unificação monetária tem suas raízes no pós-II Guerra Mundial, quando os países europeus buscaram uma reaproximação, e ganhou força com a reunificação alemã. “Sem motivação política forte, essa ideia não anda em hipótese nenhuma. Onde está a determinação aqui? Quem vai empurrar isso politicamente?”, questiona.
Além da determinação política, os países enfrentariam o desafio de convergir suas economias: inflação e dívida, principalmente, precisam estar em patamares próximos para a adoção de uma moeda comum. Isso porque, nesse caso, há também um único Banco Central com ferramentas reais para controlar a inflação. Hoje, porém, enquanto o Brasil registra uma inflação de 11,3% nos últimos 12 meses, na Argentina, o aumento dos preços é de 55,1%.
“A ideia como objetivo de longo prazo é sedutora. O que não teve ainda foram as etapas a serem vencidas antes que isso possa ser considerado com seriedade. A ideia de uma integração econômica mais profunda é atraente, o problema é que não fizemos ainda o dever de casa. Nem nacionalmente e nem regionalmente”, diz o embaixador Marcos Azambuja, conselheiro emérito do Centro Brasileiro de Relações Internacionais (Cebri).
A economista-chefe da Tendências Consultoria, Alessandra Ribeiro, destaca que os países da região têm arcabouços econômicos diferentes que dificultam uma convergência. A Argentina, por exemplo, não tem um Banco Central independente, explica.“Antes de uma moeda única, os países precisam ter fluidez de mercadorias e mão de obra. Aí poderíamos começar a discussão de união monetária.”
O ex-secretário de comércio exterior e sócio da BMJ Consultoria Associados, Welber Barral, também afirma que o processo de unificação de moedas seria complexo, assim como foi na zona do euro. Ele pondera, no entanto, que a ideia “não é ruim”, pois permitiria uma certa independência do dólar, algo que a China também vem tentando e que ganhou relevância com a guerra na Ucrânia. “O mundo das moedas está mudando. O que vai ser não sabemos. Vamos ter que pensar em modelos de moedas escriturais, de criptomoedas, de compensação entre Bancos Centrais, antes de pensar que você vai ter conta corrente ou pagamento numa moeda comum.”
De acordo com o pesquisador da Universidade Harvard Hussein Kalout, as criptomoedas podem ser “o futuro” das transações financeiras e de comércio entre os países, mas será muito difícil fugir do padrão dólar. “Especialmente tendo em consideração que boa parte das reservas brasileiras está em dólar.”
Propostas
A moeda única proposta por Haddad e Galípolo seria utilizada para fluxos comerciais e financeiros entre os mercados da região e teria um câmbio flutuante entre as moedas dos países – que poderiam adotá-la ou não domesticamente. A estratégia por trás de sua criação é a de “acelerar o processo de integração regional, constituindo um poderoso instrumento de coordenação política e econômica para os povos sul-americanos”, diz o texto.
Já a sugestão de Paulo Guedes apareceu pela primeira vez em junho de 2019, quando o presidente Jair Bolsonaro visitou a Argentina, então comandada pelo ex-presidente Mauricio Macri. À época, o ministro disse a jornalistas se tratar de uma “conjectura”, mas lançou a ideia (que já havia sido discutida em reunião fechada com a equipe de Macri) em um encontro com empresários e ministros argentinos. Na ocasião, surgiu até um nome para a moeda (peso-real) e a proposta era de adoção apenas nos dois países.
Em agosto do ano passado, Guedes voltou a tocar no assunto em uma reunião da Comissão de Relações Exteriores do Senado. O ministro afirmou, então, que em até 20 anos deverão existir no máximo seis moedas relevantes no mundo – o dólar, o euro e o renminbi, da China, seriam três delas, e uma moeda única da América Latina poderia ser uma também. “Poderíamos ter uma integração completa e, neste sentido, o Brasil assumiria uma função como a da Alemanha na Europa”, disse na ocasião. Na União Europeia, a Alemanha serve como uma espécie de âncora para as economias da região.